Débora Thomé é cientista política, autora de “50 Brasileiras incríveis para conhecer antes de crescer”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
(Nunca tinha parado para pensar sobre a minha rotina matinal neste contexto, mas, agora tendo que refletir sobre ela, talvez ela tenha, sim, impacto na minha escritura.) Por mais que eu seja bastante ativa mentalmente nas primeiras horas do dia, eu nunca começo o dia escrevendo, mas, justamente, esvaziando a mente: correndo (ou fazendo qualquer tipo de exercício). Não sei se é algo de toda pessoa que escreve sentir-se em constante diálogo mental, mas preciso deste momento de exaustão do corpo, de um certo torpor justamente para ordenar algumas ideias na minha cabeça, ou para deixá-las de lado. Parece paradoxal, mas funciona muito bem para mim a ideia de sair dos pensamentos mais óbvios e viajar junto com a música que vou ouvindo e com o próprio cansaço. É um processo de limpeza mental e, claro, muito saudável. No fim do exercício, tomado um banho, minha sensação é de que estou pronta para o dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu escrevo o dia inteiro. Sejam pequenos contos, pensamentos, diário, ensaios, artigos acadêmicos. A escrita, então, é como se fosse a própria extensão da minha vida. No caso específico de um livro, acho que o dia funciona melhor como o tempo de acumular a informação – o que consigo fazer com o entra e sai da casa e das coisas – e a noite como o tempo de execução, de soltar, ordenar, repensar tudo aquilo que foi engolido ao longo do dia. Por mais que tenha uma boa concentração para aprender, para escrever bonito, preciso do silêncio e da solidão. Seja como for, gosto de escrever com o computador no colo, sentada no chão ou no sofá, como o faço agora. Quando se trata de texto criativo, acho que tenho ainda mais a necessidade deste espaço “não-mesa” “não-escritório” para burilar as palavras. No caso do 50 Brasileiras Incríveis, foi uma experiência bastante catártica, porque ao longo do dia sugava e ruminava as mulheres que tinha que perfilar na madrugada, umas duas por dia. Escutava músicas, via vídeos, chorava muito, ria. Só por volta de meia-noite começava a escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Deveria ter uma meta, mas não tenho. De fato, escrevo muito rápido e costumo dizer que sou bem volúvel nisso de texto, o que dificulta o trânsito de linguagens. No final do dia, muitas vezes, escrevi uma poesia, uma crônica para o Facebook, um trecho de um artigo acadêmico e uma reportagem. Pela natureza das coisas, sofro muito mais com o artigo acadêmico, porque tenho uma dificuldade com o formato. Mas gosto bastante de variar: sair de um estilo de texto a outro, descansar também escrevendo (ou lendo). Mas se é para dar conselho, no dia em que eu conseguir aplicar a monogamia do romance, acho bom ter uma meta diária, sim. Vou por ela.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que o mais difícil quando se trata de um texto não-acadêmico é fazer a primeira frase. Eu sou obcecada por começos de livro e os respeito muito. Se o livro não me captura na primeira frase, no primeiro parágrafo, na primeira página, o esforço para ele me seduzir será muito maior. Por exemplo, evito começar um texto infantil com “Era uma vez”. Também implico com aqueles começos do New Journalism, todos iguaizinhos, descrevendo a roupa da pessoa ou o tempo que fazia. É óbvio, é pobre. A linguagem nos dá infinitas possibilidades para começos desafiadores. Existem inícios primorosos, como o de Charlotte (David Foenkinos), Cem anos de solidão ou O Amor dos Homens Avulsos (Victor Henringer). Esses princípios me fizeram querer aqueles livros à primeira vista. Somos como escritoras um reflexo de nós mesmas como leitoras. Posso demorar horas para uma primeira frase, mas ela será a minha guia, com ela estarei conversando nas linhas que se seguirem. Na escola, chegava até mesmo a chorar nas aulas de redação em busca desta primeira frase. O bom é que, depois que ela ganha vida, o texto costuma fluir. Uma estratégia que uso é respirar fundo, fechar os olhos e lembrar justamente desses grandes princípios: como eu seduziria quem me lê? Como eu posso introduzir esta história da maneira mais integral com a verdade do fato que vou narrar.
Quanto ao texto acadêmico, ainda me deparo com uma enorme falta de traquejo com as citações e a obrigatoriedade de demonstrar erudição, mas escrevo por mera questão de prazo de entrega.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Minha trava existe sobretudo no que concerne aos textos acadêmicos – olha eles de novo; os bichos são danados! Em relação aos demais, já desenvolvi alguma confiança.
Vamos lá: procrastinação. Quanto a isso, não conheço outra saída: o único jeito é estabelecer meta e alguém que possa te cobrar, nem que seja uma amiga, uma coautora ou um congresso. Tem que ter prazo. O que não tem prazo não acaba. Outra ideia quando o prazo não está sendo suficiente ou eficaz é começar a ler mais e mais textos análogos ao que você vai fazer, como forma de inspiração. Uma terceira é aproveitar para ir fazendo fichamentos. Na minha dissertação, que virou um livro depois, fazia resumos dos textos-base e tecia comentários sobre o que havia lido nos tais resumos. Muitos desses parágrafos acabei aproveitando no texto final, fazendo um corte-cola.
O importante é não ter medo do papel, como se dizia antigamente. Aliás, hoje é ainda mais fácil, com o apoio do “salvar como” e do “delete”. Esses e outros ajudam muito a vida do escritor. O melhor conselho, que dou sempre, é: ESCREVA! Depois revise, depois veja o que aumentar, o que cortar, mas faça do momento inicial – passada a tal primeira frase – um exercício de soltar conhecimento e criatividade. Tente não ser a sua própria censora. No momento dois, aí seja bem má. Porém, no um, apenas escreva.
Quanto aos projetos longos, meu maior problema está na exclusividade que eles pedem. Não sou boa nisso, gosto de fazer mil coisas ao mesmo tempo. Pensar em ficar três anos em um mesmo tema – e apenas nele – me dá urticária. Mas eu chego lá.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Impossível saber quantas vezes eu reviso um texto. Faço isso até quando o livro está publicado. Há quase duas décadas, trabalho revisando, então checo tudo em que meus olhos esbarram. Acho que o texto nunca está de fato pronto, fechado. Na realidade, o que marca o “estar pronto” é o dia em que você combina com a editora: olha, é a última revisão, tá? Aí está pronto. O mesmo vale se for com a orientadora. Sai incompleto, cheio de imperfeição, mas sai. Nesse processo, é fundamental ter leitoras que vão entender o seu trabalho. Às vezes, elas servem para checar as informações mesmo, o tom, o ritmo. No 50 Brasileiras, contei com várias amigas e amigos que revisaram temas sobre os quais eu não era grande entendedora. Minha lista de agradecimentos acabou enorme. O mesmo no “Mulheres e Poder”, que é um livro para graduandas e graduandos. Em um dos capítulos, pedimos socorro a uma professora mais versada no tema sobre o qual discorríamos. No início, eu tinha terror e pânico de dar meu texto para outras pessoas lerem. Depois de um tempo – muito por causa do treinamento na academia – percebi que a crítica é para melhorar o trabalho; papel que ela, muitas vezes, realmente cumpre. Há algum tempo, o que eu deixei de fazer foi a consulta do estilo “você gostou? É bom?” Particularmente, acredito que, se a gente escreveu e gostou, algum bom senso temos. Prefiro pedir opinião em pontos específicos: o final funciona? Qual melhor estrutura? Viu erros de português e de informação? Prefiro deixar às editoras e orientadoras (e depois às leitoras e aos leitores) as críticas mais gerais relacionadas ao gosto em si.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Só escrevo à mão textos no estilo diário. No entanto, uso o Word como uma máquina de escrever, com consultas pontuais ao Google. Ainda prefiro recorrer ao dicionário de papel, por exemplo. Tirando isso, minha relação com a tecnologia é escassa, pareço alguém de noventa anos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
No meu braço esquerdo, tem uma tatuagem escrita amar-sentir-bailar-vivir (amo o espanhol, que me ajuda também na escrita, na expansão das expressões e do meu léxico). No meio das palavras, tem uma máscara de carnaval (do bloco que fundei, o Mulheres Rodadas), uma rosa (nome da minha filha), uma ave (que é tanto uma referência ao meu filho, quanto à liberdade) e um livro. Essa é a minha salada mais profunda de onde vem a energia criativa, que é também a da escrita. Acho que, sobretudo, a gente tem que estar aberta ao mundo, estar sempre em carne-viva, sendo tocada pelo entorno. Isso às vezes exaure, porque você passa por vários estágios emocionais ao longo do dia, mas não vejo outra forma de ser criativa que não sendo invadida pela cidade, pelo que se vê, pelas pessoas. Claro, isso é a minha forma, acho que tem gente que se alimenta de outras experiências e interações. Eu preciso ver exposições, ver gente no metrô, dar aula, observar passarinho, andar no silêncio do mato, me jogar na neve, queimar no sol e ler de tudo muito. Mas se fosse resumir em um conceito, diria que gente criativa é quem está disposta a tocar e ser tocada. Porque o mundo sozinho já fornece muito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Vou saber daqui a uns dois anos, quando (espero) eu tiver acabado a minha. Mas neste caso meu recado é para a academia e quem já passou por isso. O que eu diria para a academia é que, se ela continuar valorizando tanto o saber empolado e encastelado, ninguém vai mais querer saber dela. Isso não significa abdicar do rigor da pesquisa, mas, sim, aceitar novas formas de comunicar, estimular a criatividade, as perguntas, a descoberta. Eu amo o saber gerado na academia, é meu espaço neste mundo, por isso defendo que ele recupere a magia na transmissão de ideias e conhecimento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Se eu fosse menos volúvel, acho que partiria para um romance, tenho muita história aqui fervendo na cabeça, mas acho que não quero ainda tanta exclusividade. Tem também uma biografia ausente, de uma das mulheres que perfilei. Mas esta seria coisa de anos. Tenho o mesmo problema. Um dia, quem sabe, viro escritora de verdade. Por ora, como me disse uma amiga certa feita, escrevo pela total incapacidade de não fazê-lo. Como as frases conversam comigo o dia inteiro, não consigo evitar que elas saiam para passear.