Débora Regina Pastana é professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Embora não goste muito de rotina, acabo reproduzindo alguns comportamentos. Quando dou aula pela manhã acordo muito cedo, por volta das 6h. Isso me faz ter tempo para me conectar com a realidade. Quando não dou aula, acordo um pouco mais tarde. Sempre tomo meu café com leite devagar e pensativa. Depois me jogo no mundo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não me considero propriamente uma escritora, principalmente porque só escrevo quando minhas outras tantas tarefas me permitem. Dar aulas é, no momento, a atividade que mais me consome. Escrever é quase um ato de rebeldia para docentes em regime de dedicação exclusiva. A sobrecarga de trabalho nos afasta da pesquisa e, consequentemente, da escrita. Ao mesmo tempo, a pós-graduação nos exige produção e isso é sempre muito angustiante.
Geralmente escrevo durante a noite, momento em que estou mais relaxada. Não tenho propriamente um ritual para escrever, apenas procuro uma maneira de me aproximar cada vez mais do meu objeto de análise. Antes de escrever sobre um assunto, me cerco de muita leitura. Sou sempre muito insegura quando escrevo. Por isso, antes de fazer qualquer afirmação, me amparo nos estudos já realizados. Ainda quando o tema é relativamente novo e, portanto, pouco estudado, gosto de dialogar com as inquietações que o tema provoca.
Também tenho um pouco de anarquia nesse processo. Começo vários textos ao mesmo tempo e, muitas vezes, abandono alguns pelo caminho. Até mesmo um romance, que comecei a escrever em 2007, está perdido em algum arquivo meu, com quase cem páginas, mas sem finalização. Isso porque às vezes escrever é só um meio de destravar o pensamento. Um exercício de reflexão. Por isso, também não publico tudo que escrevo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Hoje não escrevo mais todos os dias. Quando estamos cursando o mestrado ou o doutorado isso é inevitável. Depois o processo de pesquisar e escrever se altera sensivelmente. Em primeiro lugar as pesquisas se tornam variadas. Algumas são muito complexas e demandam muito tempo. Nesses casos a escrita acompanha o desenrolar da pesquisa, podendo ser mais demorada. Estou, por exemplo, pesquisando a consolidação de um Estado Punitivo no Brasil por quase sete anos. Já publiquei alguns artigos sobre o assunto, durante esse período, mas ainda não me debrucei sobre a totalidade dos meus dados para a redação de um relatório final. Ainda sinto que o tema não se exauriu, portanto, continuo com ele em aberto. Talvez, no futuro, todas as minhas reflexões oriundas dessa pesquisa, possam compor um livro. Em outras situações as pesquisas podem ser breves. Em 2014, por exemplo, participei de uma pesquisa nacional sobre violência escolar que durou pouco mais de um ano. Foi um estudo coletivo, com metodologia preestabelecida e que tinha prazos muito rígidos. A escrita, nesse caso, foi também bastante rápida.
Parto agora em agosto de 2017 para o meu pós-doutorado que farei em Criminologia na Universidad de Buenos Aires. Ficarei um ano estudando as políticas de controle social argentinas. Como ficarei integralmente dedicada à pesquisa penso que minha escrita também fluirá mais intensamente. Sem tanta pressão posso escrever continuamente, e nesses casos, o resultado é muito melhor.
Não tenho metas para escrever. Acho isso violento em qualquer processo criativo. Por isso sou crítica dessa lógica produtivista que hoje impera na pós-graduação brasileira. Não se faz ciência de forma acelerada. Isso é até irresponsável.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrever é quase tão pessoal quanto interpretar. No meu caso acho mais difícil desenvolver a ideia do que propriamente a escrita. Quando penso em um assunto, fico semanas pensando como vou desenvolvê-lo. Antes mesmo de começar a redigir, tenho que ter um planejamento de como vou abordar aquele tema. Começar por onde? Quais os recortes (temporal, espacial, metodológico)? Quais aspectos privilegiar (políticos, jurídicos, culturais, sociais)? Com que autores(as) começo a reflexão? Minhas hipóteses são plausíveis? Todas essas perguntas precisam estar respondidas na minha cabeça antes do começo da redação. Costumo até fazer um esquema provisório destacando esses pontos. Depois me sinto mais ancorada para dar início à escrita. Claro que durante a redação continuo pesquisando e, por vezes, a pesquisa me faz alterar a direção inicial rascunhada provisoriamente. Sem sofrimento revejo o que for preciso. Só não consigo começar a escrever sem qualquer horizonte de desenvolvimento.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho bloqueios, mas sim inseguranças. Costumo escrever e guardar o texto para que ele possa amadurecer. Parece engraçado, mas é verdade. Escrevo um texto e guardo por um tempo (às vezes até um ano). Depois abro novamente o arquivo e faço uma releitura crítica. Se vejo potencial no texto procuro melhorá-lo. Agrego outras leituras, me aprofundo em algumas discussões, proponho outras perspectivas de análise sobre aquele tema, etc. Se durante a releitura não julgo mais tão pertinente o argumento, simplesmente o descarto. Esse é o meu maior pesadelo. Sou minha julgadora mais severa. Não acho que isso seja procrastinar e em alguma medida é até bom. Só não dá para fazer isso quando os prazos são muito rígidos, ou quando é um texto encomendado. Quanto à ansiedade de trabalhar em projetos longos, na verdade também não é bem o que sinto. Apenas fico sempre achando que ainda faltam elementos importantes para a análise.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso várias vezes e quando o texto é somente meu não costumo mostrar para muita gente até estar segura de que vale a pena publicá-lo. Faço isso não porque não me importo com a opinião dos(as) colegas. Ao contrário. Quando mostro para alguém um texto ainda inacabado e essa pessoa sugere alguma coisa, geralmente começo tudo de novo! Esse é outro pesadelo. Por isso parei de pedir opiniões com tanta frequência. Já quando o texto é coletivo ou em parceria, procuro debater o texto várias vezes com os autores(as). Detesto impor minha visão.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje posso dizer que minha relação com a tecnologia está melhor. Mas já foi muito tensa. Sou de uma geração que demorou a desvendar as inúmeras propriedades do computador, um pouco mesmo por resistência. No final dos anos noventa, sempre que um arquivo meu era contaminado por vírus eu ficava enfurecida e voltava a escrever à mão. Perdi muito texto com arquivos danificados. Também demorei a dominar algumas ferramentas de pesquisa virtual. Hoje voltei a escrever apenas no computador, mas tenho mil pen drives com backup (cópias de segurança). Às vezes fico procurando aquele que possui a última atualização e isso também me irrita um pouco. Mas nada comparado aos meus primeiros contatos tecnológicos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm geralmente da indignação. É a necessidade de denunciar violências e autoritarismos que me move a pesquisar. Acho que tudo que escrevo é fruto do meu compromisso político de descortinar processos de dominação e injustiças sociais. Nesse sentido minha Sociologia é um pouco passional.
Não me considero muito criativa. Na verdade criativos são aqueles que operam as ferramentas opressivas. Escrever sobre esses temas é sempre doloroso, mas a criatividade pode estar em conseguir explicitar com clareza e de forma contundente as mais variadas formas de opressão. Para isso sigo um refrão de Caetano Veloso: “É preciso estar atento e forte!”
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Hoje estou mais cautelosa com as certezas. Envelhecer também contribui para nos colocar mais atentos às armadilhas que a própria ciência nos coloca. Tenho me interessado muito pelo debate pós-colonialista, por exemplo. Reconheço agora que meu universo teórico é ainda muito eurocêntrico. Assim tento me despir de algumas premissas e busco cada vez mais olhar para os processos de dominação de forma a respeitar diversas alteridades. Como meu doutorado foi muito penoso e cheio de dúvidas, se pudesse voltar no tempo acho que me daria um único conselho: não desista porque vai valer a pena! Está valendo…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Depois do meu pós-doutorado, quero estudar a rua. As exclusões sociais que desembocam nela. As interações violentas que se estabelecem nas “vidas nuas” vividas na rua. A rua que já foi um espaço de infinitas sociabilidades é agora palco das mais variadas formas de violência. Como deixamos esse espaço se tornar uma arena? Quero também conhecer vivências de rua e entender algumas formas de resistência que também na rua se constroem. Enfim, quero desbravar a rua!
Um livro que ainda não existe é só aquele que ainda não encontramos. Buscarei a vida inteira por esses livros; principalmente por aqueles que despertam e emancipam.