Débora Cristina Rezende de Almeida é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não acordo muito cedo, antes das 7h só em casos de urgência. Gosto de acordar aos poucos, ler e-mails e notícias. Esperamos nossa filha acordar para tomarmos café juntos. O começo da manhã é a hora de dar atenção para ela, arrumá-la para a escola, organizar a mochila (porque fica em período integral), e só depois de todos os afazeres começo efetivamente a trabalhar, sempre depois das 9h.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre fui mais produtiva pela manhã, mas ultimamente com todas as tarefas de mãe e professora, nem sempre é possível. Gosto de dar aula pelas manhãs, justamente porque estou mais bem-disposta e porque as salas de aula da universidade são insuportavelmente quentes no período da tarde. Com o tempo escasso pela manhã, surpreendentemente para mim, em alguns momentos a inspiração tem surgido bem tarde, por volta das 21h, depois que a casa silencia, e quando isso ocorre tento aproveitar ao máximo. Mas não sou notívaga, então não consigo ir muito além das 23h. Quando trabalho até tarde preciso de um tempo de relaxamento antes de dormir para acalmar o cérebro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria muito de escrever um pouco todos os dias, mas ultimamente a escrita acompanha a ordem dos “post-it” que ficam na minha frente, pregados na tela do computador, me lembrando o tempo todo dos prazos. Acho que infelizmente a academia (e suas infindáveis tarefas) está matando nossa criatividade e prazer pela escrita. Eu realmente sinto prazer no que a profissão me permite, estudar, achar novas interpretações e ter ideias, mas estes momentos acabam sendo penosos porque eles vêm acompanhados de um prazo que é sempre muito curto, seguidos de outros prazos que nunca acabam.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou muito disciplinada, organizada, todas estas características que atribuem aos capricornianos (risos). Mas tenho muita dificuldade de escrever, acho que isso tem a ver não apenas com minha personalidade, mas com a pouca bagagem acumulada de leitura e escrita ao longo do meu histórico de vida. Vinda de família pobre e sem recursos educacionais – fui a primeira da família a entrar na universidade – e de escola pública de uma cidade do interior, o incentivo à leitura e à escrita ou o contato contínuo com a leitura nunca existiram. Quando me vi em um curso de Ciências Sociais na graduação na UFJF, em que a base era a escrita, posso dizer que a demanda constante pela produção de textos foi um sofrimento. Não que eu não gostasse de estudar, gostava demais, por isso lutei muito para entrar na universidade, mas aquilo não era natural. Ainda não é. Além do mais sou muito perfeccionista e vou muito rápido do encantamento pela ideia inicial ao completo pavor do que escrevi. Enfim, gostaria de escrever todo dia, mas não há tempo. O que faço é que leio ou releio textos todos os dias. Sempre que estou lendo eu tenho alguma ideia de como isso me ajudaria em cada coisa que escrevo, então abro um arquivo e começo a colocar todas as ideias que vão aparecendo. Um artigo inicial meu é sempre uma coletânea de frases, como se fosse um quebra-cabeças, cujo trabalho posterior é dar sentido às partes. Às vezes, por razões ainda não compreendidas, a inspiração aparece e aquilo vai tomando forma. Por exemplo, tem séculos que você me pede esta entrevista e eu nunca tenho tempo ou inspiração. Hoje consegui fazer isso em 30 minutos.
Além disso, minhas melhores ideias são quando eu saio da zona de trabalho. Caminhar é ótimo para ter ideias, mas para mim o banho é algo impressionante, às vezes saio correndo para anotar em um papel alguma ideia. Já tive sonhos em que o argumento foi construído. Uma professora no mestrado uma vez me disse para sempre deixar um bloco de papel na cabeceira da cama, acho que é uma boa ideia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Meu maior inimigo hoje é a internet. Esta busca constante por informação ou por responder e-mails tem me atrapalhado demais. Eu preciso aprender a desligá-la, porque já comecei a notar que está me fazendo mal, me tornando uma pessoa ansiosa de uma maneira que nunca fui. Quando estou escrevendo e acontece a “trava”, a melhor maneira é simplesmente parar. Como falei acima, um banho é algo que magicamente me faz pensar.
Já o medo de não corresponder às expectativas sempre existe, especialmente para nós mulheres que não fomos socializadas para nos sentirmos empoderadas. Costumo dizer que um homem falando mil besteiras às vezes convence mais o público do que uma mulher com muito conteúdo, mas insegura. É algo que precisamos mudar, não só por meio do encorajamento das mulheres e sua inclusão nos espaços de fala e de poder, mas também por uma mudança nos processos de socialização das mulheres, de maneira a romper com a naturalização de alguns espaços e tarefas como sendo exclusivas de homens. É isso que tenho tentado fazer no nível micro com minha filha e seria fundamental as escolas se conscientizarem para isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meu principal espaço de procrastinação é justamente este. A cada dia que começo a escrever perco uma hora relendo tudo que já fiz e revisando. É uma revisão constante. O texto já foi publicado e eu ainda estou lendo de novo e achando erros. Às vezes converso sobre, mas geralmente não mostro para outra pessoa antes de publicar. Este processo acaba sendo feito na universidade pelos congressos que a gente participa e apresenta versões preliminares. O nosso grupo de pesquisa aqui na UnB, o Resocie, também tem esta prática bacana de discutir o trabalho dos autores. Nestes casos, tem sido muito útil.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu escrevo no computador, mas durante o processo, a revisão precisa ser feita à mão. Eu imprimo versões ao longo do tempo e corrijo escrevendo manualmente. Tenho uma memória muito fotográfica e a visualização impressa do texto muda completamente a forma de eu lidar com a informação. A última revisão será sempre impressa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sou uma leitora voraz. Quando vejo algum texto que me interessa, baixo e começo a ler na mesma hora, interrompendo o que estou fazendo, principalmente se for sobre um dos meus temas: participação e representação. Tenho uma curiosidade muito grande por tudo que aparece de novo. Além disso, sempre anoto ideias, um bloquinho costuma me acompanhar dentro da bolsa, ou mesmo o aplicativo de notas do celular. Nem sempre as ideias fazem sentido depois, mas eu sempre escrevo quando tenho um insight.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Não sei se mudaria alguma coisa. Tudo é um aprendizado. Acho que ainda não tenho a receita para escrever e talvez nós cientistas sociais não sejamos bem “treinados” para isso, como parece ocorrer melhor com o pessoal da comunicação. Mas cada um tem uma forma de raciocinar. Meu orientador do doutorado dizia sempre que eu tinha que ir direto ao ponto e sempre me recomendava um capítulo metodológico do Marx no “Grundisse” que, segundo ele, expressava justamente isso, minha mania de ir à fundo nos acontecimentos de tentar entender todo o percurso. Fui tão resistente que nunca li este trecho que ele falou (risos). Para mim, uma ideia só faz sentido se eu entender o seu percurso. Talvez seja por isso que no doutorado eu tenha me encantado tanto com teoria política e com a história do conceito de representação, fazendo com que meu percurso fortemente analítico e empírico fosse se transformando em cada vez mais teórico. Enfim, embora como orientadora eu sempre diga para os alunos que é preciso ter um problema claro de pesquisa desde o começo, para mim, este problema geralmente só aparece ou toma forma completa no final. Não devem aprender comigo. O que aprendi prestando atenção no estilo da escrita dos textos em inglês é que, mesmo que a ideia apareça no final, é preciso retomar todo o texto e fazê-la aparecer no primeiro parágrafo!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu único projeto e sonho de vida agora é um pós-doc para voltar a ser estudante. Eu falo sempre com os doutorandos que a gente sofre tanto nesta fase para descobrir depois que ela foi a melhor da nossa vida (e não estou esquecendo aqui de todas as angústias que acompanham esta fase). Poder ter tempo de se dedicar só ao seu tema, às suas questões é algo precioso. Tem vários livros que compro e ainda não consegui ler, então não saberia elencar um. Uma disciplina nova é sempre minha estratégia para ler coisas que eu preciso e não encontro tempo.