Davi Boaventura é mestre e doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS, autor de Talvez Não Tenha Criança no Céu.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo e tomo banho e me alimento e escrevo. Percebi, depois de muito renegar, que preciso de uma rotina e que essa rotina funciona melhor pela manhã, quando estou com a cabeça mais limpa e sem me perder nas redes sociais. Então tento dormir cedo e acordar cedo, boto uma música animada para escutar, tomo banho, como, lavo os pratos, arrumo a cama, escovo os dentes e sento para escrever. Normalmente já tem algum começo de frase em minha cabeça, a depender de qual trecho estou escrevendo, e a partir daí eu deixo ir. Depois almoço e a vida normal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã, como disse. Mas, na verdade, eu gosto de escrever logo depois de dormir, porque me ajuda bastante na concentração, que é hoje, ou sempre foi, o ponto mais difícil do trabalho criativo. Então, na maioria dos dias, além de escrever pela manhã, eu tiro um cochilo rápido depois do almoço e volto para o texto – uma vez que estou em uma pós-graduação em Escrita Criativa e consigo ter tempo para me dedicar. De todo modo, acho que o importante é você estar comprometido com seu trabalho – que é outro jeito de dizer que seu desejo precisa estar naquela atividade – e aí acontece de escrever em horas meio bagunçadas do dia, quando dá.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acredito, sem dúvida, que é importante ter uma meta, assim como é importante ter um limite também. Gosto de escrever todo dia porque, além de me fazer entender a atividade enquanto um trabalho, faz você avançar tanto no número de páginas quanto no conhecimento que você tem de seu texto. É muito evidente as diferenças de um texto escrito no começo e no final do processo, por isso também é tão importante a revisão. Mas às vezes é preciso descansar, então curtir o fim de semana é quase uma obrigação: a pausa para respirar é tão obrigatório quanto a respiração. E isso vale ainda, acho, para quando você termina a primeira versão do livro e deixa um tempo esquecido para voltar meses depois e retrabalhar tudo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na verdade, eu dificilmente tomo notas. Ou faço planejamentos. Talvez por preguiça. Mas é que, como tenho escrito basicamente fluxos de consciência, eu tenho algumas linhas de base, que dão certos parâmetros tanto para os personagens quanto para a estrutura da história, e aí vou preenchendo com o trabalho de texto. O alerta do professor Assis é muito verdade, sobre como planejar te poupa um bocado de trabalho, já que ninguém vive eternamente e é preciso, afinal de contas, terminar o diabo do livro. Mas me parece que descobrir o seu texto não é tão diferente de uma atividade erótica – e as pulsões são mesmo muito próximas -, então cada vez mais tenho me esforçado para deixar ir e ver o que acontece. O que acaba criando um efeito curioso, que só percebi de fato em um texto muito recente: o fluxo de consciência vira, depressa, em fluxo de inconsciência.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido, para ser sincero. Pelo menos para mim, entender a escrita como um trabalho, independente de ser remunerado ou não, mudou muito a perspectiva, então, mesmo quando o dia está complicado, você precisa sentar e escrever uma linha que seja, e isso vai te animando a continuar até que você já tem uma página por dia e a coisa vai engordando. Também não dá muito para se pegar em expectativa, acho. Claro, de jeito nenhum entro naquele pensamento de que o leitor não importa – isso é realmente uma estupidez. Mas é uma relação entre você e um texto, que se insere dentro de um gênero, de uma história, de uma vontade. A expectativa se cria aí, em querer ter a melhor conversa possível com todo esse cenário. E que coisa maravilhosa que é trabalhar em projetos longos: é sempre bom correr uma maratona, de algum modo você cresce junto com sua corrida. Não à toa tantos escritores estão fazendo da corrida uma atividade paralela, o que é ótimo para eles, mas não para mim, meu negócio é hidroginástica, que foi sem dúvida nenhuma o melhor exercício que eu já fiz na vida.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Até quando você sente que não aguenta mais. Meu primeiro livro, Talvez Não Tenha Criança no Céu, eu passei um ano e meio entre redação e revisão. No meu segundo livro, que acabei recente, foram quatro anos de trabalho: dois sem conseguir olhar para a primeira versão, porque não conseguia sequer me relacionar com ela, dois anos reescrevendo sem parar, linha por linha. Quando eu terminei a última palavra, estava tão exausto que comecei a chorar por dez minutos, sem parar, uma catarse ao mesmo tempo bizarra e incrível.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Geralmente no computador, hoje em dia. Demorei um tempo para acostumar, mas agora não consigo fazer muito diferente, a não ser que seja uma situação em que eu não tenho acesso ao computador, então você pega qualquer papel e caneta e só vai. Meu problema com a tecnologia é a questão da distração e do quanto as redes sociais podem ser tóxicas, então acabou que eu desativei Facebook, deletei o aplicativo do Instagram do celular por um tempo e, quando sento para escrever, desligo o telefone e às vezes até o modem da internet. Aí consigo me concentrar por umas duas horas e volto para o vício com bem menos culpa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que este é um dos pontos mais interessantes do trabalho criativo: você conseguir extrair ideias das fontes mais diferentes possíveis, tornando um estímulo diverso como algo seu, absolutamente pessoal. Porque pode estar em qualquer lugar mesmo: este livro que passei quatro anos escrevendo, por exemplo, veio de uma ideia que conectou uma foto de Cartier-Bresson com um vídeo pornô distribuído via Whatsapp. A vontade de escrever algo naquela linha já estava lá – vinha de outros livros, de filmes, de música, da vida -, mas acabou acontecendo quando aquelas duas imagens distantes se conectaram. Por isso acho tão importante tentar sair o máximo possível da bolha: de manhã toca um Charlie Brown Jr. no som, de tarde estou escutando Anitta, de noite vendo um filme sério ou lendo, a mistura é, para mim, uma das melhores características. E aí, na cara dura, ainda dá para usar a biologia para justificar, já que é a diversidade que garante a sobrevivência da espécie.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Talvez tenha mudado um pouco a ansiedade por publicar. Quando eu publiquei o primeiro livro, em 2012, eu queria muito tirar um peso das costas. E tudo bem, isso aconteceu e foi ótimo. Mas agora começo a achar que, para publicar, é preciso encontrar as condições nas quais você mais acredita, tanto em termos de texto quanto em edição. Essa medida é diferente para cada um, claro. Mas, para mim, pelo menos no impresso, não quero publicar só por publicar, quero ter um diálogo. Então acho que, se eu pudesse conversar comigo mesmo, eu provavelmente diria “velho, relaxa, vai viver um pouco”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que certamente vou fazer e ainda não comecei é um livro sobre Salvador escrito da forma mais visceral que eu conseguir, é realmente meu projeto dos sonhos. Vai acontecer, daqui a alguns anos. Terminei um em julho e estou terminando outro, agora em outubro. Depois acredito que é importante dar uma pausa, viver um pouco, trabalhar com outras linguagens – quero aprender a fotografar um pouco melhor – e aí as coisas vão começando a andar. Eu e dois grandes amigos meus, Breno Fernandes e Saulo Dourado, estávamos assistindo uma palestra na Flipelô de 2018 com um escritor angolano, Gosciante Patissa, e Patissa disse uma frase sobre a qual temos conversado bastante, indo para todos os lados das ideias: “não se deve queimar etapas”. E eu acho que é isso aí mesmo.