Davi Araújo é poeta, ficcionista e tradutor, autor de Livro Ruído (Eucleia, 2011), Ficções paralelas e Visões para lê-las (Substânsia, 2016), e O físsil (Urutau, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sei se meu dia começa ao despertar, o que apenas ocasionalmente faço pela manhã, já que não tenho um emprego há mais de uma década e durmo apenas quando e enquanto possuo em obra um sono a que me consagrar, numa hora qualquer, e por vezes só após sóis em vigília. Jamais há propriamente rotina, mas acredito ser possível dizer que desde que acordo — ainda com algo muito vivo de monstro primal dos sonhos — estranho tudo devagar: desencalacro-me da cama e rastejo pela sempre artificial escuridão com os olhos engantinhando no sentido de um novelo de luz qualquer, até reaprender o antinatural andar ereto para fazer passar a ereção e passar a passar o café, que tomo em meu jardim selvagem (exceto pela amoreira, a primavera e o chorão, semeados), cotejando a contextura das sujidades do chão e do céu; e já sei que ainda sei ler, e então me iludo que lido com o texto das notícias que por ludo elido com notas de texto. E se o amor encarnado dentro de uma aliança de ouro e titânio igual à minha me abraça, grunho algo para me fazer reconhecer pela beleza, pela mulher, que sorri de quando articulo a primeira inteligível palavra que os gatos com razão tanto estranham. Esta palavra, então já sei, conclui um poema que começa o meu dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo a qualquer hora, só em casa, após horas pensando em tudo, de cabeça vazia. Penso que o que componho e me compõe me ocupa todo sempre antes por muito tempo, não como trabalho, senão do próprio sentido tempo, mas uma despreocupada ocupação, um ócio de não sair do início, um profano ofício de acordar e permanecer despertando. Algo de ritual é o pretender-me culto em meu múnus, munido do informe das escrituras (dicionários, ensaios, poemários), que invoquem em meu nome o demônio de incerto estado (enquanto maneira de ser que a matéria apresenta) da arte, em que, espirituoso, chafurdo, a verter irreverentes releituras que me paramentem dos hábitos que desvistam de dogma toda antitradição sub, supra e intertextual que identifique, não sem paradoxo, com o fundo comum de toda não-ortodoxa grande obra, das artes secretas da indiscreta ordem da eleição mais gratuita, só de graça. É sério. Aí estou no humor certo para começar, em pé de brincadeira, amoral, pronto para fazer um poema na minha língua como se maltraduzindo-o de uma língua alienígena para um vernáculo nuclear que, no vácuo, é preciso antes hackear. Mas isso é mais propriamente para preparar meu terreno, o campo material com que vou lidar, do que a mim; como John Cage preparava o piano com elementos estranhos, obstáculos à perfeita execução da peça, o que afina o músico, para que não tenha como estar preparado. Jamais se está pronto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Mentalmente, diariamente as escritas me escrevem. Porém, porem-se tinta sobre papel, pixelssobre tela, nem todo dia. Essa frequentação da página pode ser mais frequente, sobretudo havendo um livro em vista por montar, quando, com os parâmetros da edição por publicar, por meses perco sono e refeições, e exagero em tabaco e café, até chegar ao conceito principal e a todas as linhas de força que irradia, e então me concentro na montagem como escrita, na escrita como curadoria, relendo poemas guardados aos milhares para as operações de seleção e ordenação, de eventual agrupamento em subseções, em tudo emulando uma poemática escrita do livro, que muitas vezes demanda a reescrita de trechos, cortes, colagens, permutas, e a escrita de novos poemas que sirvam de elos, junções articulares entre os prévios, ou de pé e cabeça a esse corpusalgo mônada e nômada, esferizado até que role, que tudo participe do todo, perfazendo-se as frações uma multiplicidade de sinergias que aperfeiçoem a unidade, mas uma equivalente a zero, ao mero autodestrutivo constructo da entrópica bomba de silêncio, de leminiscata linguagem em que tudo tenha e faça sentido de mão dupla, a ser sentido pelo leitor. Aprecio menos a magia do que o truque, mais o passe do que a mágica. Se possuo meta, é não na acepção do substantivo latino, de “fim”, mas na do prefixo grego, de “meio”: procuro fazer poemas-noemas como uma perfeita impostura absolutamente equívoca, bem-composta de e para o mal-entendido; em que cada palavra opere a ressignificação de si e da obra a cada ângulo recontextual de leitura, os versos sempre simultaneamente uma tridimensionalidade melofanologopaica poundiana, cada peça como aquele lustre de teatro de que falou Baudelaire: “um belo objeto luminoso, cristalino, complicado, circular e simétrico”. Mas antes também gosto de fazer do acaso que refaz o caos os meus impróprios materiais, organicamente, no mais duro e escuro subsolo deste mundo: a destransubstanciar pão em carne, vinho em sangue, ouro em chumbo, diamante em carvão, até libertar a pedra bruta de dentro da escultura. A escrita é um serviço braçal, de esboços seriais, cansativa escansão; então conservo o meu poema o quanto possível no plano da canção, na mnemoamniótica sede de mente e coração, até que tudo por si só se decante. Esse negativo interno da escrita se revela para mim ainda mais concentrado: são aqueles períodos a que outros chamam de bloqueio, em que nada escrevo, os em que me sinto o mais gravemente impregnado, possuído pela não-linguagem que não domino, e cujo absoluto domínio sobre mim é para mim, em si, uma linguagem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Conforme Wittgenstein, há toda uma mitologia arraigada na língua. Aí leio dicionários, o etimólógico e o analógico, como quem lê a Ilíada e a Odisséia. Frequento-os como à feira e ao mercado, em busca de ingredientes. Li um meme que dizia que uma vez que você leu o dicionário, cada outro livro que leia é somente um remix. Misturo palavras com certos métodos, numa certa ordem; preparo-as; algumas servem servidas cruas. O movimento para a redação pode ser de volição, de vomitiva vontade, e acorro à página como quem se socorre ao vaso sanitário. Mas, dependendo das substâncias prétextuais que ingeri, varia o esforço com que arrojo as matérias que contenho. Então, sendo bulímico para as palavras, como nem sempre posso ser o mais orgânico comensal crudívoro, tenho me acostumado a ingerir processados pré-prontos de difícil digestão, coisas de impossível síntese, que não me nutram nem sejam passíveis de assimilar, eméticos em essência. É um processo demorado, de tentativa e erro, o de aprender a degustar, deglutir… absorver talvez; então dou ênfase ao cozimento ou só mesmo ao preparo, que já me entretém, como no ofício da feitura de massas diversas, o pastifício. Ou menos, como quem costura um cachecol que ninguém usará, e é longo o tricotar de símbolos e sentidos como se se fizesse uma obra áudiovisual só com palavras. O filme não passa inteiro antes na minha cabeça, sendo necessária essa pré-produção do texto, e assim ensaio e enceno inestreáveis as mais estrais e menos magistrais sem-cerimônias, impublicáveis atos entre o automático e o concreto, paródias sacrílegas de missa leiga mesmo dos mais consagrados e eternos textos e termos, sublimando sentidos em imagens e sons feitos caos e efeitos pretextos de novo em novo pré-dicionarizado estado (no sentido de conjunto de circunstâncias em que se está e se permanece), devolvendo-os ao revolvido nigredo por versar. E ao mundo, do que está escrito, livro. Re-solvida a destrutiva criação dessa confusão de artifício, o meu ponto zero de não-retorno, de início, em que tudo está feito para que volte a ser escrito o que se recoagula. É o poema como composteira, a página um negativo de húmus vivo, a poesia das fezes. Nada está feito: toda obra é matéria-prima, toda matéria é obra-prima. Eis um poema de que não me envergonho, de mera reordenação de todas as palavras em Gênesis 11:6:
REBABEL
Vinde, vinde, vinde todos ver:
eis sobre o Senaar uma só torre de pedra de homens
que penetre o de nome de fogo.
Torre da terra ao ápice da Babel que será linguagem,
é começo, foi desígnio.
Desçamos, façamoso outro mundo
como se construído das mesmas iniciativas
que outros céus estabeleceram face ao lá irrealizável.
Construamos a cidade cujo oriente os homens entendam.
Confundamos aos Iahweh!
E os Iahweh e os Iahweh e os Iahweh, um só, desceu para mais,
foi lá e deu-se-lhe aí a mesma linguagem
de que falam os habitantes da terra.
E o povo se disse “eis… cozamo-los!”
E dali ele, o um por todo, dispersou-se.
E uns encontraram sua face nos tijolos,
e uma a uma cessaram de construir o tijolo.
Servia para a terra para um, a terra para nenhum.
E a língua, pois, disseram eles, na terra toda
lhes serviu por betume, por argamassa para a cidade para todos.
Ora, isso vale.
Eles disseram “suas palavras o constituem
e a língua o confundiu e isso o dispersou”.
Para que não emigrassem,
agora tinham toda uma língua por cidade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Desde que não tenho mais nenhuma inspiração, tampouco tenho quaisquer bloqueios. Para não ser brocha, mas bruxo, como dizia Piva, acho bom desejar frustar expectativas.
As poucas vezes que não escrevo são por falta de vontade; alívio possível por estar saciado disso com alguma das outras artes analfabetas que amo, com as quais sem culpa traio a minha, que por se saber a preferida, a mais gostosa, deixa-me à solta, e logo sinto saudade. Respondo assim pois essa formulação me provocou, o que Freud explica. Sem tabu, uso brinquedos para estímulo bilido da literária libido: leio voyeuristicamante; cobiço e roubo o melhor do próximo; folheio revistas de mulher polida; faço exercícios aeróbicos eróticos mais tradutórios que me preparem para o tântrico poema de fôlego; recorro a dildos dadás nas preliminares da preparação; às próteses dos aplicativos de encontros em linha; ilumino-me imenso de capitulares tesões; esgazeio-me em gozos pornobibliográficos; entro em joguinhos sex-surrealistas; visto as fantasias, vendas e algemas da literatura constrangida; sirvo-me de técnicas S&M de mutilação cut-up; e faço texto oral; só afim de escrita não-(pro)criativa; tomo do azulzinho, via de regra Bic. Atraio-me mais por pessoas do texto oposto, mas meu desejo é ser pantextual.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Atualmente, a cada primeira versão terminada de um poema, peço à minha musamada que seja a sua segunda leitora, em voz alta, e que o comente. E às vezes ainda testo o texto em leituras ao vivo ou publicações em revistas. Reviso muito, e mais e mais a cada fase, porque escrevo bastante e os guardados se acumulam exponencialmente; seu repositório me servindo como um imenso manancial de estranhamentos que revisito, e, como não publico nem pretendo publicar tanto, e os livros são curtos, espero estar conseguindo salvar de mim somente o essencial. Os meus livros compilam textos escritos e reescritos ao longo de toda a década anterior. Quando vejo um meu livro publicado, aquilo é de repente para mim como uma velha pele abandonada de serpente, porque então já me revisto de outras escamas que sempre malemolentemente elaborava por sob a aparência dura, e só dura como capa de obra, cobra em permanente intermuda. Não ganhar dinheiro com a escrita, também, se por um lado tem óbvios inconvenientes, dá-me, por outro, uma inevidente liberdade do tempo que também no mercado de arte (quem não o conhece, compre-o) é dinheiro; então aproveito para demorar, deixar que a escrita seja livre e me livre e me e se depure; curto-a toda como um palimpséstico processo de autopoesia, em que cada camada de silêncio que acrescento equivalha à outra, de palavras presas, de que me livro, e para que assim, no parcimonioso limite, baste-me a escassa arte do tempo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A técnica é metade da arte, e não sendo tudo, é imprescindível. Há toda uma tecnologia na própria língua, na escrita, no alfabeto. Toda malabarística metáfora que eu compacte em um poemarquivo pode ser dele extraída através da velha regra de três composta. Embutida na mais hodierna tecnologia, há toda uma base de precedentes saberes científicos implícitos de que já mal e mal nos apercebemos, por sempre procurarmos novas resoluções para antigas questões, esquecendo-nos de que também se pode aplicar os mais velhos estratagemas para a solução dos novos problemas. Escrevia à mão até 2005, quando passei a fazê-lo direto ao computador. Para a escrita de poemas, são universos com distintos números de dimensões. Usar um processador de texto me foi um verdadeiro advento eidético-ontológico. E, para quem diz léxicos, descansa-me haver em comum, para o bom termo, a rede: permito-me logo dispor de qualquer palavra incomum no poema se a encontro no tecno-oráculo Google, por saber que também meu leitor poderá procurar por ela ali. Eis o que tenho feito: servindo-me de um laborioso aparato de programas e aplicativos de cômputo, geração, mixagem e conversão de texto (qualquer sortilégio de parafernália digital existente para acessar a demoníaca analogia), gero, por exemplo, uma imensa massa de palavras desordenadas a partir do embaralhar de outros textos cujos palavrórios cobice, e do sem-sentido inicial colho ao acaso as junções de palavras que me sugiram ideias, imagens e ritmos inusitados, até o final do texto; às vezes há trechos de dezenas de palavras já poema, tudo ready-made, e reembaralho as sobras e retomo do início, até não sobrar nada que preste, e reelaboro as partes boas analisando-as com contadores de sílabas que me dizem se é um verso espondeu ou esproncedaico, coriâmbico ou ferecrácio. Pode-se escolher um esquema polirrítmico que duble um riff dodecafônico de guitarra de Frank Zappa e os primeiros doze dígitos do número pinuma estrofe diagramada na página com um esquadro de caixa de texto dodecagonal, caligrama do tema “meses”. No buscador de palavras por número e posição das letras, acha-se o segundo vocábulo cujo início forma com o fim de um primeiro a perfeita palavra-valise, e um verso que se alitere bem com esse neologismo jogado num gerador de anagramas. Seleciono as mais esdrúxulas das rimas em um rimário eletrônico… e assim por diante. Aí ordeno os achados em um ou vários poemas. Há inúmeros facilitadores para quem quer criar as maiores dificuldades.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias me vêm de todos os lados, dos problemas do meu tempo e de onde estou, elas vêm do centro, de dentro, do passado remoto e ontemporâneo, das questões filosóficas, pré-históricas, pós-futurísticas, e da curiosidade que nem sei eu, e dos sentidos mesmos, do corpo, do pouco, da escassez de ideias, dos idióticos ideais, da vida como um todo e, porra!, dessa política, desta situação, deste mundo mesmo e talvez de outros, de todos, de tudo. As ideias dão de vir do vulcão da minha profunda ignorância, sempre alheias ao que não se solidifique e encruste em mim como esta ideia mais além de tudo vazia. Ideia de doer. Mas as visitações que mais se demoram não raro partem das palavras, e das leituras, de conceitos e formas que encontro em todas as artes, ciências e conversas que se fazem ou traduzo em palavra. Consumo e fruo arte e entretenimento dito cultural; como e bebo e viajo e transo o mais e melhor possível; procuro estar junto da natureza, saber-me naturalmente um ser cultural, solitário e entre amigos; cultivo a minha vida e me despreparo para a morte; mantenho-me em movimento, rio, choro; enfrento o agora; sou criança ou velho quando encontro a ocasião; procuro acolher meus males, limites, incompreensões, incompletudes e mistérios. Faz-me criativo o que há de recreativo, fazer má-criação. Se respondesse a isto e a todo o resto a dizer “a poesia”, “a poesia”, conforme a entendo, sinto e sei que a tudo respondia. Ofereço uma oficina de escrita poética em três módulos: criação de texto, escrita não-criativa e destruição literária.
Não há como não criar, fazemos isso inconscientemente o tempo todo com tudo, é uma segunda natureza humana, logo após a de destruir, então não me esforço nesse sentido. Não reproduzo as entidades, não me fio no processo fiático, e desprezo a criatividade de insightse esforços empreendedores geradores do progresso que produz frutos e filhos. Faço flores a partir dos podres, perfume que sirva só de respiro de tudo o que se cria, cultivo e vascularizo folhas que façam ar de arte da transpiração, que absorvam toda a iluminação cegante somente a fim de conceder mais sombra contra toda essa luz já feita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo até os 20 anos se orientava por bebida e drogas, por crueldade e rancor, e inspirações mais pesadas como originalidade, melancolia, modernidade e nostalgia, chegando ao fundo de poço dos altos pensamentos e à exacerbação da saída pelo amor, em que palavrões metafísicos não eram nada incomuns. Meu ideal, de horror ao vácuo, só não era maior do que o tempo que passava impotente encarando a página em branco. Acho que era mais performerdo que poeta, desses espíritos líricos de leprosaica obra. Fui lendo mais e melhor e minha maior realização artística poderá ter sido jamais haver publicado nada daquilo. É óbvio que sempre deva haver algo a rever nos meus escritos publicados dez anos atrás, mas foi muito bom para mim e para o mundo ter aguardado até os trinta anos para que o que ainda hoje valido vá lido; o resto está guardado para ser recriado ou destruído. Aos 21 em 2001, já escrevia bem menos arrependimentos futuros. Este século e a minha idade adulta têm sido surpreendentemente bons um com o outro, comigo, apesar de bastante menos com a maioria e consigo mesmos. Não mudei de vida ou estilo de vida, só de estilo. E se desde 2002 não renego o que escrevi desde 2002, e hoje gosto mais do que escrevo hoje, talvez seja porque, tendo então cultivado o gosto por me renegar, haja quem goste de ler o que, sem afirma, escrevo. É mais cínico e subreptício como destilo poesia e a inoculo no poema, que, se a língua não se fendia, envenena. Restou-me a ironia, a rebelião, certa ludicidade, e a aceitação de que esta tara pela poesia não é nada mais do que um simples balbucio de exceção à regra do silêncio, que a confirma; uma reserva de irracionalidade das que mais me anima. Se voltasse no tempo, encontrando-me, não sei se daria mais conselhos do que pediria àquele meu ex-eu tão delirantemente iludido e entusiasmado quanto ingênuo. Hoje acho que, exceto pela escrita ruim, que atribuo a mim, ele era bom. Quem sabe me valesse sugerir-lhe ler já, muito antes da prosa, todos os livros de poesia, e talvez a tristeza fosse mais carnal.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu projeto poético está bem adiantado e caminha para sua não tão lógica conclusão. Gostaria de reescrever uma última vez o primeiro livro, um não publicado romance meio ilegível; escrever também outro romance, em prosa poética, de que já tenho os grandes planos, mas que está me parecendo um experimento tão enlouquecedoramente trabalhoso que não sei se terei saco de levar a cabo; e mais um livro de ficções curtas, que continue o meu último lançamento. Há ainda muitos livros que gostaria de ler apenas porque são coisas que não existem, e, dentre os já existentes, acontece de existir, desde a Antiguidade, uma infinidade a que eu ou outro tradutor poderia dar existência em português a partir de todas as línguas, desde que outros, que por acaso gostassem também de lê-los, existissem — coisa que acontece. Todos os livros são como os mitos dos deuses e do mundo, dos quais disse Salústio: “essas coisas não aconteceram nunca, mas existiram sempre”. E não se disse que tudo que existe existe para acabar num livro? E quem dissesse que todos estamos escrevendo o mesmo livro, que é tudo o que existe? E o que dizer da tão livresca escritura que empreende Pierre Menard, autor do Quixote — se não existe? De resto, já que é tarde demais para morrer jovem, talvez sobreviva-me velho e me sobre muito tempo para escrever aquele impublicável livro sem palavras da minha aposentaria: “Findefinido” — a título provisório —, a obra inacabada que, bem como os livros que insisto que existam, seria demasiado mal ou não remunerada. Ou será que esse livro já não existe?