Danilo Giroldo é reitor da Universidade Federal do Rio Grande, autor de “O canteiro das flores de metal e o jardim de areia” (Patuá, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, pela natureza do meu trabalho e pelo fato de ter filhos em diferentes idades, as rotinas matinais fazem parte da minha vida, ainda que completamente alteradas pela pandemia neste momento. As minhas manhãs se iniciam com café e são bastante corridas para possibilitar os encaminhamentos necessários às crianças e ao início do meu trabalho como professor universitário. Nos últimos 10 anos, tenho me dedicado muito mais à atividade de gestão universitária como pró-reitor, vice-reitor e atualmente reitor da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, no extremo sul do Brasil, do que propriamente à atividade acadêmica. Isso tem deixado não só minhas manhãs, mas as tardes e, eventualmente as noites, bastante ocupadas com rotinas de trabalho voltadas à universidade. É cansativo, mas suficientemente intenso para constituir uma fonte inesgotável de material para a escrita. Os conflitos, as conquistas, frustrações e experiências vivenciadas na gestão produzem constantemente reflexões e observações do comportamento humano e das barreiras que se impõe à transformação da realidade por meio da universidade que, para mim, possibilitam um olhar poético sobre a existência e a finitude da vida perante o tamanho dos sonhos. Geralmente escrevo pouco de manhã, mas eu não sei se pelo fato da minha maior agilidade mental ou pela luminosidade dos dias claros, ou ainda a falta dela nos dias chuvoso, é bastante comum eu ter pensamentos poéticos pela manhã, que geram notas e textos desenvolvidos nas tardes e noites, que são os períodos em que mais escrevo textos literários.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No trabalho como gestor e professor universitário, sem dúvida, a manhã é o período de maior agilidade mental e de maior produtividade também. Já o trabalho como escritor e a materialização dos processos criativos é sempre melhor a noite, eventualmente a tarde. Não tenho rituais para a escrita. Eu apenas tomo notas no celular o tempo todo e elas, em geral, já pressupõem uma concepção inicial do poema ou da narrativa, de modo que o texto seja desenvolvido assim que eu consiga tempo para isso. Às vezes a potência da anotação é tão grande que não hesito em cavar um espaço no meio do trabalho na universidade para desenvolver a ideia. Também é comum que o poema ou a estrutura da narrativa venham quase prontos, de modo que sejam desenvolvidos rapidamente e passem a demandar apenas ajustes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo em períodos esparsos. Não diria que nem períodos concentrados intermitentes e nem diários. Não consigo escrever diariamente, eu gostaria e idealizo estabelecer alguma rotina neste sentido no futuro, mas infelizmente ainda não consegui. Como disse a Maria Fernanda Maglio no colofão do seu maravilhoso Enfim Imperatriz (Patuá, 2017), “Maria Fernanda tem dois filhos e escreveu este livro enquanto esquentava o leite com chocolate, apartava as brigas no sofá, trocava o desenho da televisão. Se a felicidade se acha nas horinhas de descuido, a literatura também”. Embora eu também não consiga dedicar longos períodos intermitentes para a escrita, posso dizer que os curtos períodos são caracterizados por muita concentração mental e acontecem basicamente em duas situações. A primeira é quando consigo um tempinho no dia para me dedicar a escrita, seja um texto novo, o desenvolvimento de alguma ideia ou a análise de textos já escritos e não publicados. A segunda é quando as notas ou a vontade de desenvolver logo uma ideia me sufoca, ocupa a minha mente insistentemente e eu paro o que quer que seja para desenvolvê-la, de modo a obter um pouco de paz.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo é sempre iniciado a partir de algo da realidade que me cerca. Não considero inspiração, mas sim a capacidade de perceber e captar a poesia em uma dobra do tempo que se forma, tanto para uma situação como para um objeto, e permite a integração entre observação e reflexão instantaneamente. Podem ser campos alagados em um dia de chuva, uma fila de pessoas embaixo de um viaduto para receber refeições doadas por algum grupo, um gato preso em uma árvore, uma contusão no jogo de futebol, uma frustração intensa, embora previsível e inevitável, uma lembrança de infância, enfim, a mente trabalha e eu anoto rapidamente no celular para não perder a essência da reflexão. As notas normalmente, mas nem sempre, já traduzem o tema e a ideia que pretendo desenvolver. Quando isso acontece, é bastante rápido o desenvolvimento do texto, mas depois ele passa por um longo período de ajustes até que eu aceite a combinação de palavras que melhor pode expressar a ideia, tanto pela precisão, quanto pela sonoridade. De modo esquemático, quase todos os meus poemas nascem de uma anotação, passam por uma fase de desenvolvimento e outra de análise para ajustes, antes que eu decida publicar no meu Instagram ou levar a um projeto. Tenho muitos poemas escritos que ainda não foram publicados nos meus livros e nem no Instagram, pois considero que a fase de análise ainda não está concluída. Não jogo nenhum texto fora, por pior que eu pense que ele seja. As narrativas seguem o mesmo esquema, mas eu não estou publicando ainda, estou reunindo material para um projeto futuro e apenas mostro para algumas pessoas opinarem e, eventualmente, participo de concursos literários com elas. Mais raramente a fase de desenvolvimento é também demorada e a ideia vai se moldando aos poucos, lentamente, podendo levar meses até ser concluída e entrar na fase de análise. Às vezes a conclusão da ideia se perde, ou a nota não é suficiente para desenvolver um poema ou narrativa e a materialização da ideia em texto pode demorar bastante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu respeito a procrastinação, embora este, atualmente, não seja o meu maior problema, pois o meu desafio é buscar um espaço entre muitas coisas urgentes para fazer, incluindo o descanso, para que eu consiga escrever. Se estou cansado demais, não escrevo, mas é frustrante quando eu encontro o espaço, tenho motivação e a escrita não acontece. Porém, eu aceito as travas da escrita quando elas me vencem. Se a poesia não sai, insisto, busco as notas, reflexões antigas, tento encontrar novos temas, variar entre a poesia e a narrativa, mas se não está saindo nada, eu deixo e vou analisar textos antigos. Obviamente que tenho medo de não atender às expectativas de qualidade da minha escrita, mas depois que eu comecei a publicar livros e também nas redes sociais, aceitei melhor este sentimento, pois ele é inevitável. Eu estudo para melhorar sempre e tenho claro que reconhecimento literário é algo que não se pede e não se clama. Se alguém clama por reconhecimento, é porque ainda não mereceu recebê-lo. Da mesma forma, quem já é reconhecido fez para merecer e o reconhecimento é o resultado do seu próprio trabalho. Obviamente os processos de invisibilidade literária de mulheres, da população negra e dos grupos em vulnerabilidade social e outras minorias continuam muito presentes. É extremamente necessário fomentar essa visibilidade para que os talentos destes grupos sejam desenvolvidos e reconhecidos. Eu me referia ao meu lugar de fala, um homem branco, heterossexual e privilegiado em um país de profunda injustiça social. Neste contexto, procuro fazer o melhor que posso, dentro da capacidade que tenho. Nas redes sociais eu recebo feedbacks muito legais que me motivam e diminuem o medo da minha produção não ter relevância ou qualidade. Eu tenho tentado trabalhar a minha ansiedade em relação a projetos longos. Tenho na mente já o desenho e bastante material para o meu próximo livro de poesia e quero muito publicar o meu primeiro livro de contos, que ainda não tem material e acúmulo suficiente. Porém, não tenho ideia de quando vou terminá-los e isso não tem me incomodado, até porque sigo produzindo e publicando nas redes sociais, o que alivia um pouco essa ansiedade de divulgar a produção.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso até que se forme na minha mente a ilusão de que o texto está pronto e a ideia totalmente trabalhada, depois de passar pelo esquema que mencionei acima da anotação, desenvolvimento e análise. A conclusão da fase de análise é bastante subjetiva e passa por uma certa paz interior gerada pelo fato de que aquela ideia está suficientemente trabalhada. Na verdade, nunca está, e essa sensação é muito enganosa ao ponto de um texto nunca estar realmente pronto, mas é a partir dessa ilusão, formada em algum momento, que eu publico um texto, seja em material impresso ou no Instagram. Arrependimentos são comuns. De modo geral, eu só mostro para outras pessoas depois de concluída a fase da análise. Às vezes ela é rápida, menos de uma semana, e às vezes leva meses requerendo ajustes pontuais no texto, sem subverter o modo como a ideia foi trabalhada na fase de desenvolvimento. Acontece também de eu chegar à conclusão de que a ideia foi mal desenvolvida, então eu retomo a fase de desenvolvimento. Procuro respeitar as três fases, mas a duração delas é muito variável entre dias ou meses até que desenvolvimento e análise estejam concluídos. No caso de preparar um manuscrito original para submeter a uma editora, eu sempre submeto à leitura de outro autor que tenha intimidade suficiente comigo para me apontar problemas e fazer sugestões. Lido muito bem como esses apontamentos e nem considero a possibilidade de publicar sem que pelo menos uma leitura como essa tenha sido feita. Nas publicações em redes sociais, raramente peço leituras prévias para amigos autores ou leitores. O Instagram é um tipo de teste para o texto, embora nem sempre as preferências dos leitores se coadunam com as minhas, o que eu acho muito bom para não influenciar a minha escrita somente pelos feedbacks. Há poemas que eu gosto com poucas interações e outros que não gosto tanto com mais curtidas e comentários, então também tomo cuidado para não me influenciar pelas reações dos leitores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nunca escrevo à mão, nem notas e nem rascunhos. Acho um pouco triste essa afirmação, mas é a realidade. Acho até que estou desaprendendo a escrever à mão. Escrever um texto em letra cursiva, por exemplo, creio que não seja mais possível para mim. Atualmente, somente escrevo a mão as notas das inúmeras reuniões que participo pela reitoria da FURG, porque é mais rápido, mas sempre com letras de forma. Triste ou não, é a minha realidade e não pretendo reagir a ela. Faço anotações no celular e desenvolvo os textos em um notebook. Tenho vários backups em nuvens dos meus textos. Às vezes, desenvolvo o poema no próprio bloco de notas do celular, que também tem backup, mas é mais raro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm da minha percepção da realidade, seja do presente, do passado ou do futuro que projeto. Como eu disse acima, as ideias para os poemas surgem do êxito na captação da poesia em uma dobra no tempo que permite instantaneamente observar, refletir e produzir um olhar diferente sobre um fato ou objeto. Creio que há infinitos momentos como esse nos nossos dias, mas nem sempre conseguimos captá-los, por isso eu considero uma dádiva quando se consegue produzir uma anotação com essas características, que se amplia muito quando o texto é desenvolvido e publicado, mesmo que nunca esteja efetivamente pronto. O hábito que procuro cultivar para me manter criativo é tentar ficar atento a estes momentos, com a sensibilidade ativa para percebê-los. Posso citar um exemplo. Um dia saí para trabalhar e, ao chegar na universidade, lembrei que havia esquecido um documento importante, que até poderia ser encaminhado no outro dia, mas eu queria resolver logo e decidi voltar para casa para buscá-lo. Moro perto, então me tomaria apenas cerca de 15 minutos esse retorno. A casa já estava vazia, sem as crianças e a minha esposa, peguei o documento e quando estava entrando no carro, ouvi miados insistentes ao longe. Pensei em deixar pra lá, mas decidi investigar e me dirigi ao quintal pra ver do que se tratava. Vi então o meu gato Marcelo, se equilibrando em um galho fino da paineira cheia de espinhos do meu vizinho. Os cinco cachorros dele somente aguardavam a queda do meu gato para estraçalhá-lo. Eu me desesperei, peguei uma escada, coloquei no muro, mas não conseguia pegar o gato que estava já com as patas sangrando com os ferimentos causados pelos espinhos e quase desistindo para se entregar à queda. Felizmente minha vizinha acordou com o barulho, prendeu os cachorros, e conseguimos tirar o gato da árvore. Seria apenas um fato se o momento não tivesse sido dobrado pela poesia. O que provavelmente sucedeu foi que o gato passou do telhado para a árvore e, ao ser acossado pelos cachorros e sentindo os espinhos o ferindo, ele subiu cada vez mais e não retornou ao telhado seguro. Quantas vezes se continua trajetos que ferem, sem dar um passo atrás, pensando estar acertando quando, na verdade, se está caminhando para a morte? Anotei e estava pronto o poema para ser desenvolvido. Quase todos os meus textos decorrem de observações e reflexões como essa que exemplifiquei.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu creio que aprofundei a capacidade de síntese e tenho identificado melhor a sonoridade dos poemas. Eu tinha uma preocupação exacerbada com o desenvolvimento da ideia, que prejudicava um pouco a síntese. O processo criativo ainda é o mesmo, mas tenho aprimorado a fase da análise. Eu diria para mim mesmo que seria importante aparar alguns versos para deixar mais espaço para o leitor, pois uma das melhores trocas com quem nos lê é perceber leituras absolutamente diversas das motivações que nos levam a escrever aqueles versos, muitas vezes até mais interessantes. Mas eu também já fiz as pazes com os meus primeiros textos e os compreendo integralmente. Estou em uma fase de reconciliação e reconexão com eles.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho me concentrado mais nos meus dois próximos livros e já venho trabalhando neles. Um será o meu terceiro livro de poesia e o outro será o meu primeiro de contos. São dois projetos completamente diferente entre si, mas que venho trabalhando em paralelo, sem pressa. Participo de alguns projetos coletivos que eu adoro e que me ensinam muito, mas creio que não tenho, neste momento, projeto literário idealizado que ainda não tenha começado.
Há tantos excelentes livros publicados que eu ainda não li, que é muito difícil responder essa pergunta, pois posso falar sobre alguma coisa que exista e eu ainda não li. Portanto, posso dizer do que eu gostaria de ler e anda não li, independentemente de o livro existir ou não. Eu gosto de pensar na vida dispersa por todo o universo, a mesma base biológica que temos na terra, mas com diversificações totalmente diferentes. O surgimento de uma inteligência como a humana, que envolve capacidade de comunicação e transformação do meio com inovações constantes e crescentes, autodestrutivas inclusive, pode ou não estar presente, mas a ideia da vida universal baseada em DNA, RNA e síntese proteica me fascina e eu gostaria de ler contos ou romances que tratassem desse tema.