Danielle Crepaldi Carvalho é crítica de cinema e teatro, doutora em Estudos Literários pela Unicamp e pós-doutora pela Escola de Comunicações e Artes da USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu costumo regrar a minha rotina de escrita a depender do trabalho que tenho de fazer. Durante o Doutorado, por exemplo – o meu mais pesado trabalho de escrita até agora –, chegava a escrever quinze horas por dia, a partir de cerca das 10 da manhã, e até à noite. Como minha tese teve dois volumes, sendo um de anexos anotados, aproveitava o dia em que estava mais cansada, no qual a atividade intelectual rendia menos, para digitar os textos originais (fiz um trabalho com séries cronísticas publicadas em jornais cariocas entre fins do século XIX e primeiras décadas do XX) e fazer as notas de rodapés explicativas ao volume, trabalhos mais informativos e mecânicos. Procurava também trabalhar na organização dos capítulos da tese, realizar esquemas detalhados para desperdiçar o mínimo de material. Tenho dificuldades de cortar textos prontos, então esses projetos de texto foram fundamentais para direcionar a escrita, conduzir os caminhos de análise. É claro que há sempre a dimensão do inusitado; as descobertas que realizamos ao longo da escrita, e acabam redirecionando a reflexão e o capítulo. No entanto, mesmo assim o planejamento é de grande relevância no meu caso.
Para além da pesquisa acadêmica, sou também blogueira (administro, com uma regularidade bem variada, o blog cultural ofilmequeviontem.blogspot.com). Esse blog, que edito desde fins do mestrado, prestou uma colaboração considerável ao meu trabalho acadêmico: a ideia de resenhar cotidianamente um filme, uma ópera ou uma peça de teatro deu mais fluidez e dinâmica à minha escrita e me fez encarar o doutorado (e depois o pós-doc) como um trabalho de escritura entre outros. A tensão da escrita acadêmica diminuiu. O grande jogo para mim foi transformar a escrita num hábito cotidiano.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Preciso começar o dia preparando o café, lavando a louça e organizando a casa. Em seguida começo a escrever – em torno das 10h00 – 11h00. Não tenho hora para terminar. Quando trabalhamos em casa corremos esse risco de nos concentrarmos nos nossos afazeres doze horas ou mais por dia. Faço meus trabalhos relacionados à escrita enquanto tenho energia, mas ao menos oito horas por dia, quatro nos finais de semana. Sinto que só assim a escrita permanece azeitada, não enferruja…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu levanto metas impossíveis sabendo que não conseguirei nunca cumpri-las, mas elas servem de norte para o meu trabalho. Cinco páginas diárias revisadas – mas fico feliz se produzo três – ou um texto de duas páginas para o meu blog em cerca de três horas (às vezes demoro mais, mas me dá ânimo pra iniciar o trabalho pensar que vou terminá-lo em menos tempo).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Respondi um pouco disso na primeira questão. Cada pessoa tem um processo de escrita. Tenho amigos que escreveram a tese de doutorado toda em quatro meses, ou metade da tese em mês e meio. No meu caso, demorei quatro anos e meio (tenho capítulos que foram iniciados no segundo semestre dos nove do doutorado, e terminados no quarto semestre). Preciso aglutinar material e me debruçar na leitura antes de começar a escrever, e isso pode durar um par de meses. Procuro, todavia, sempre escrever: escrever fichamentos, resenhas e resumos do material lido. Meu processo é basicamente a leitura, o fichamento e, enfim, a escrita do texto final. Se o tempo é mais curto, leio, sublinho e parto para a escrita, mas isso é menos comum de ocorrer. No entanto, este processo é muito pessoal. Confesso que admiro quem consegue ler durante anos e depois sintetizar tudo num texto orgânico em alguns meses. Eu preciso fazer um trabalho de formiguinha.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A vida foi aos poucos acabando com as minhas travas de escrita. Tudo depende da expectativa que colocamos naquilo que fazemos. Somos um bocado auto-centrados, muito mais do que supomos. Acreditamos que estamos fazendo a descoberta do século, que o nosso trabalho revolucionará o campo, daí a nos obrigarmos à perfeição. Fui descobrindo, no curso da vida – o fato de começar a participar das bancas de mestrado e doutorado ajudou consideravelmente nisso –, que a perfeição não existe, que bancas buscam, sobretudo, solidez estrutural, clareza e organização. Quando me dei conta de que, na escrita acadêmica, como em todos os âmbitos da vida – o blog, de novo, ajudou muito neste sentido –, o que importa é comunicar de forma clara o nosso argumento, a minha vida melhorou bastante. Fico ansiosa, sobretudo, porque me atribuo sempre grandes volumes de pesquisa – então, a questão nem é o travamento, é a falta de tempo. Então, o que procuro fazer é organizar mensalmente a minha agenda, apontando onde, na melhor e na pior das hipóteses, eu devo estar. E, como o trabalho intelectual é no final das contas um trabalho como todos os outros, do mesmo modo como procuro não deixar louça empilhada na pia, procuro não acumular o trabalho, cumprir os prazos da melhor maneira que posso. Uma amiga minha, ex-orientadora, me ensinou um método que funciona melhor que a meditação transcendental: ela certa vez me disse que encarava a vida acadêmica como uma gincana, na qual precisamos vencer uma porção de etapas, uma atrás da outra. Puxando pela memória, nas gincanas da infância fazíamos as coisas com o máximo de qualidade e o mais dentro do tempo que podíamos. Havia também a dimensão do lúdico, que nós lamentavelmente procuramos deixar de fora da vida acadêmica. Essa ideia da gincana ajuda um bocado, sobretudo a não tentarmos alcançar a tal perfeição inalcançável, a não pensarmos que o nosso trabalho é o alfa e o ômega; que, afinal, temos um objeto para dar conta, e precisamos fazê-lo do melhor modo que conseguirmos, no tempo que temos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se há tempo – normalmente não há… – eu reviso o texto no decurso da escrita, depois completamente, uma vez, e deixo-o descansar um tempo antes de publicar. Participo agora de um grupo de pesquisa modelar, no qual todos se leem, então ando tendo chances de ver meus textos lidos e discutidos pelo grupo, antes de submetê-los à publicação. Senão, conto com a avaliação dos pareceristas das revistas. Agora, no que toca às resenhas do blog, procuro fazer uma revisão detalhada e publicá-los em seguida, sem deixá-los descansar. As eventuais gralhas eu corrijo se surgirem comentários ou se eu as notar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma boa relação com a tecnologia. Uma curiosidade é que, antes de fazer Letras e depois enveredar pela vida acadêmica, fiz, nas priscas eras digitais, curso de montagem e manutenção de computadores. Tinha o objetivo de enveredar pela área. Sempre trabalho direto no computador. Apenas rascunho na mão quando não tenho um computador perto de mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Do meu ponto de vista, uma ilustração geral é fundamental para nós, das Humanas, escrevermos bem. Conhecer música (popular e erudita), cinema (antigo e contemporâneo, para além daquilo que o circuito comercial apresenta), teatro e ler os clássicos da prosa e da poesia de todos os tempos. Erudição é importante para a vida, para além de nosso trabalho, na verdade. Tinha como objetivo de vida adquirir esta erudição, vinte anos atrás. E ela é um projeto de uma vida inteira – especialmente agora, que o emburrecimento geral é tido como norma e incensado como se fosse o melhor dos licores.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Faz muito tempo que regro a minha escrita da forma como apontei acima (planejando detalhadamente antes de começar a escrever, de modo a desperdiçar o mínimo de texto possível). No ponto de vista da qualidade do texto, acho que simplifiquei a minha escrita (como simplifiquei muitas coisas em minha vida…). Revendo meus textos do início da graduação, vejo que procurava escrever “difícil”, erro comum em quem está começando, do qual fui aos poucos me livrando. Atingi também mais concisão. São coisas que só atingimos com o tempo. Mas tenho muito a melhorar, ainda. Por vezes, abro muito parênteses em meus textos (já se vê por esta entrevista…), adendos, acrescento coisas para além do objeto em questão. Mas isso diz muito sobre mim, também. Sou bastante barroca… A escrita é um processo de constante aprimoramento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sou uma pessoa que vive muito mais com o pé no chão do que entre as nuvens. Preciso que as coisas se apresentem materialmente em minha frente para me interessarem, portanto, me empolgam no momento os meus projetos em andamento, que luto para que se concretizem: um estudo sobre a música no Brasil do princípio do século XX, sobre o modo como ela afetou a produção literária em verso e em prosa e o cinema; a encenação de uma peça de teatro que traduzi com uma amiga faz alguns anos, para o qual seguimos buscando financiamento. Porém, há tantos livros fundamentais já escritos, nos quais não tive ainda a chance de meter os dentes (parafraseando o Arthur Azevedo, um artista polivalente do século XIX), que prefiro sonhar com eles que com os livros a serem ainda escritos!