Daniela Versiani, escritora e artista visual, autora de A matemática da formiga e Três contos ilusionistas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu não tenho uma rotina rígida. Eu tenho metas de médio e longo prazo que quero cumprir. Para isso preciso me mexer no aqui e no agora.
Há cerca de dois anos eu reestruturei minha rotina. Foi um momento particularmente importante para mim, quando decidi sair da universidade para me dedicar à escrita e a uma nova forma de expressão que se tornou imperativa para mim: a pintura. É claro que produzir nessas duas diferentes linguagens exige um bocado de organização. Não me refiro ao processo criativo, de idealização de um projeto. Isto pode ocorrer em qualquer lugar, deitada na cama, vendo tevê, fazendo compras e, principalmente para mim, dirigindo. As ideias surgem em qualquer momento e lugar. Mas a materialização delas, não. Sobretudo quando comparamos a escrita e a pintura. A escrita exige muito menos do que a pintura do ponto de vista de ter à disposição um local adequado para o registro ou execução da ideia. Podemos escrever um livro inteiro só com lápis e papel. Muitos foram escritos assim. A pintura, não. Ela demanda espaço não só para pintar, mas também para armazenar materiais. (Não considero aqui os scketchbooks, claro). De certo modo, a pintura me obrigou a ser mais organizada do que eu era quando apenas escrevia.
Hoje eu gosto de manter duas estações de trabalho. Uma para a pintura, outra para a escrita. Gosto de tê-las próximas porque muitas vezes, enquanto pinto, tenho uma ideia para escrever. Então vou até o computador e escrevo ou ao menos anoto. Outras vezes, ao aguardar que uma camada da tinta acrílica seque, eu aproveito para escrever. Os dois processos, portanto, ocorrem lado a lado, mental e espacialmente. Às vezes até mesmo se sobrepõem, no caso de meus poemas pintados. Mas esses processos não se desenrolam de forma muito controlada ou planejada. A organização se dá, de fato, na existência de um espaço físico propício e já pronto para que eu possa registrar a ideia no momento em que surge, sem que para isso eu precise antes organizar a mesa, ligar o computador, pegar os meus pincéis etc. Ter um espaço previamente preparado para isso é algo bastante simples, mas nem sempre possível. É claro que não adianta ter tudo isso se você não se dispõe a efetivamente escrever e/ou pintar. Isso precisa acontecer. É preciso estar disponível. É preciso sacudir o esqueleto e sentar na cadeira ou pegar o pincel. Esse é o big moment, o verdadeiro big bang. Como eu dizia aos meus orientandos: a gente escreve a tese com a bunda. O mesmo acontece com a ficção: tem de sentar em frente ao computador e escrever. Começar pelo meio da frase, que seja. Fazer como Clarice em A Paixão segundo G.H: coloque reticências e vá em frente. Depois você volta e organiza o começo. Confie no continuum do fluxo de ideias. Depois volte e arrume.
No meu caso, em geral, eu tenho uma sessão de manhã e outra de tarde. Mas às vezes me vejo levantar no meio da noite para pintar ou escrever. O importante, para mim, é ver o trabalho realizado. E eu tenho uma coisa boa: fico agoniada quando tenho um projeto pelo meio. Quero logo acabar. Essa é a cenoura na frente da burrica aqui.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu me sinto bem trabalhando a qualquer hora. E não tenho nenhum ritual. Eu tenho sim é minhas estações de escrita e pintura sempre a postos. A hora que for, posso sentar e escrever. Às vezes passo o dia diante do computador, às vezes na mesa de pintura. Às vezes fico pulando de lá pra cá. O importante para mim é não me entregar à preguiça. É pintar ou escrever um pouco todo dia. Ficar um dia sem escrever significa que no dia seguinte terei muitas chances de não escrever de novo. O fluxo de ideias se interrompe e isso pode se transformar num longo período de improdutividade. No caso da escrita, eu tenho sempre uns papeizinhos enfiados na bolsa com registros de frases e ideias que me ocorreram pela rua, esperando no consultório ou no restaurante. Muitas vezes perco esses papéis e com eles as ideias. Mas algumas vezes consigo chegar em casa e passá-las para o computador. Eu não sou uma escritora burocrata. Não tenho horário fixo para escrever. Escrevo muito, trabalho muito, mas com muita liberdade de horário. Acho que sou uma workaholic sem horário. Na pintura também. Muitas vezes a Fabiana, minha fisioterapeuta, me dá bronca porque exagero na pintura e fico com dores musculares nas costas e braços. É uma coisa muito louca. E não adiantam os bons conselhos dela e minhas boas intenções. Sou obsessiva mesmo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Minhas metas são de médio e longo prazo apenas. No dia a dia, faço como der. Alguns dias escrevo mais, outros menos, mas estou sempre enfiada nesse mundo de escrever e pintar. Eu diria que, no geral, escrevo e pinto um pouco todos os dias. Se não for fisicamente (teclando ou pintando) ao menos “ideando”. Mas só idear não basta. É preciso materializar a ideia. Esse é o grande x da questão. Sobretudo para os jovens escritores. Eles muitas vezes ficam querendo o ótimo e não conseguem chegar ao bom simplesmente porque não sentam a bunda para escrever. O mundo das ideias é insuficiente para fazer arte. A arte precisa da materialidade para existir e chegar aos outros. A arte de escrever precisa do texto registrado. A pintura precisa da tinta espalhada no papel ou na tela. Sem isso, não existe a obra de um artista. Então ele precisa transformar a ideia em movimento do corpo. Precisa teclar, precisa se sujar de tinta. Precisa usar o corpo. Se ficar só “ideando” não vai ter nada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Isso é muito variado. Há textos que escrevi porque eu tinha uma imagem, uma cena, um personagem que não me saíam da cabeça e precisei registrar. Comecei por esse começo, mas não sabia onde tudo ia acabar. Há textos em que eu tinha o final. (Um final “lindo” [risos]). Então tive de inventar toda uma história para chegar àquele final. Isso aconteceu, por exemplo, no meu conto Odolisa Menugin, que está no livro Três contos ilusionistas. Eu tinha aquele final rodando na minha cabeça há séculos. Precisei fazer o diabo para chegar até ele (e assim conseguir me livrar dele!). Há textos que foram construídos por fragmentos que fui escrevendo e depois alinhavei em um texto maior. Meu primeiro livro, A matemática da formiga, foi assim. Acredito que há escritores que são excelentes porque têm um excelente planejamento. Mas há escritores excelentes que são um bocado desorganizados. Acho que eu fico no meio termo.
Até hoje, a maioria dos meus textos tinha uma certa indefinição temporal. Ou a história se passava “nos dias de hoje”, ou o momento histórico era indefinido. Agora, pela primeira vez, estou escrevendo um romance que tem um contexto histórico bem definido. Isso está exigindo uma pesquisa histórica mais cuidadosa. Mas como se trata de um passado recente, do qual participei, eu mesma sirvo de memória histórica e, portanto, a dificuldade não é tão grande. Mesmo assim, é necessário conferir datas, acontecimentos, personagens históricos etc. Tenho usado muito a internet para isso. É uma maravilha. Mas isso porque não se trata de um romance histórico. Trata-se apenas de um romance que se passa em um momento histórico definido. A quem queira se enveredar por um romance histórico, um conselho: estude o período em livros de história, não confie na internet!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como todo mortal: sofrendo muito! Não é fácil lidar com tudo isso. A escrita às vezes emperra, as ideias não vêm, você não sabe como contar a história, você não encontra a palavra (um bom dicionário analógico ajuda nisso). Você tem bloqueios. E fica inseguro. Quem disser que não fica inseguro está mentindo ou não é bom escritor. Bom escritor que se preze fica inseguro sim senhor. Sobretudo se ainda está tentando criar uma reputação. E se já a conquistou, tem medo de perdê-la. Enfim: tudo isso é muito difícil. Mas chega uma hora em que você precisa mandar tudo isso para o espaço e confiar em você. Só você é você. Só você vê as coisas como você vê. E só você pode escrever o que você escreve como você escreve. Essa é a sua singularidade. Você é o único especialista em ser você mesmo. Ajuda pensar que nem todo mundo precisa gostar do que você escreve. É até bom que seja assim. Eu não quero que todo mundo goste do que eu escrevo. Eu quero é que meu público-alvo goste. E o meu público-alvo é um público bem parecido comigo. Não sou uma escritora que foca um público diferente para vender mais. Então tudo fica mais fácil, porque eu escrevo a partir de preferências estéticas que provavelmente encontrarão ressonância num público específico, de gosto semelhante ao meu, e que, por isso, têm grandes chances de gostar do que escrevi. Eu me agarro a isso!
Acho muito cruel um bom escritor se prestar a escrever de um jeito diferente do seu próprio gosto estético para atingir um público mais amplo. Acho isso triste. E perigoso. Porque a tendência é você ficar colado ao seu público. Se você escrever para um público com o qual você não se identifica, vai acabar criando uma bola de ferro amarrada ao pé. Se quiser voltar atrás, vai ter de começar uma nova trajetória. Começar do zero e conquistar outro público. Perda de tempo e esforço.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso muito. Muito muito. E quando acho que está bom, reviso de novo e peço para alguém revisar também. Os olhos da gente ficam cegos para o texto depois de relê-lo tantas vezes. E todos temos cacoetes de linguagem que, obviamente, não percebemos. É preciso ser humilde e pedir para alguém revisar. Uma boa editora terá esse cuidado. Mas se você é um jovem escritor e pretende fazer uma edição independente, não deixe de pedir para alguém revisar. Melhor que sejam outras duas pessoas. Não seja arrogante. Não ache que seu texto é impecável. Não é. Nunca é. E se você tiver a sorte de encontrar um (bom) editor, peça que ele faça seu trabalho, que é fazer sugestões para melhorar seu texto. Esse é o trabalho do bom editor. Não é só publicar e vender seu livro. É ajudar no aprimoramento do texto. Mesmo um escritor consagrado pode se beneficiar muito de um bom editor. Para entender melhor a importância de um bom editor, sugiro a leitura de Max Perkins, um editor de gênios, de A. Scott Berg. Aqui no Brasil foi editado pela Intrínseca. E há também um filme feito a partir do livro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meu processo de escrita é todo no computador. Eu digito muito rápido e, por isso, hoje seria impossível para mim escrever todo um livro à mão. Mas no meio do caminho há muitos papeizinhos e folhas soltas, anotações de ideias e de trechos que surgiram naqueles momentos em que estou longe do computador. O computador é uma benção para os escritores. Facilita muito o trabalho. Contanto que tenhamos o cuidado de fazer muitos backups! Mas há algo que o computador provocou que me deixa melancólica: o desaparecimento quase que completo da caligrafia do escritor. Aquele traço deixado pelo escritor na folha de papel, no copião para a última revisão. Esse desaparecimento para mim é uma perda. Porque há tanta beleza e personalidade na caligrafia. Talvez por isso muitas de minhas pinturas tenham como um de seus principais elementos a minha caligrafia.
Há, no entanto, uma coisa que eu ainda faço à mão e que eu chamo de “mapa”. É uma espécie de desenho no qual eu rabisco o desenvolvimento dos personagens, a cronologia dos acontecimentos, as características físicas de um personagem ou de uma casa, quarto, sala ou restaurante onde a história se passa. É uma espécie de gráfico que me ajuda a manter a coerência da narrativa. Isso tudo eu faço à mão. Preciso disso para visualizar melhor o “mapa da minha narrativa”. Para isso eu uso uma folha grande de papel ou uma cartolina. O resultado desse desenho é uma grande confusão de nomes, datas, linhas cronológicas que só eu entendo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Para morrer basta estar vivo. Para escrever, também. Minhas ideias vêm de todos os lugares. De dentro e de fora de mim. Vêm da observação, da memória, de algo que ouvi, de uma história de família, de uma cena cotidiana. Em geral alguma coisa me toca de tal maneira que eu só consigo me livrar dela escrevendo. Muitas vezes escrever é a única maneira de eu me livrar de algo triste que aconteceu e que não sai da minha cabeça. Ou então é um modo de registrar algo bonito, alegre, que quero compartilhar com os outros e que tenho medo que se perca no esquecimento. Em geral não escrevo sobre fatos memoráveis. Escrevo sobre coisas miúdas. Essas coisas miúdas são facilmente esquecidas. Por isso preciso escrever sobre elas. Graças a Deus não tenho muita dificuldade para ter ideias. A dificuldade maior é, em primeiro lugar, não me esquecer delas, e, em segundo lugar, dar a elas a chance de continuar a existir, seja na ficção seja na pintura. Para isso é preciso registrar, escrever, pintar. Trabalhar. Não ter preguiça.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Ao longo dos anos meu processo de escrita ficou mais leve, menos visceral, menos associado à minha própria existência e a mim mesma como personagem de meus livros. Meus textos ficcionais ainda trazem muito de mim mesma, mas consegui expandir minha literatura para além da minha vidinha cotidiana, do meu próprio umbigo. Também sei lidar melhor com os fracassos, com a indiferença e mesmo com as críticas negativas. Na verdade, hoje não espero tanto por aprovação. Nem espero tanto da própria literatura, enquanto um sistema que não depende só de mim ou só da qualidade da minha escrita. Depende da editora, do leitor, do livreiro, do distribuidor. Da presença do escritor nas redes sociais. Infelizmente depende também de sorte e de contatos. Se sucesso e fracasso não dependem apenas de mim, posso ficar tranquila.
Quanto à minha tese de doutorado (Autoetnografias. Conceitos alternativos em construção, defendida em 2002): eu fiquei muito satisfeita com ela. Não a escreveria de forma diferente. Ela me deu muitas alegrias. Até hoje é muito procurada. Tem sido adotada não apenas no campo da literatura, mas também na antropologia, psicologia, direito e outras áreas. Quando publicada, em 2005, recebeu uma indicação ao Jabuti na categoria de Teoria e Crítica Literária. Apesar disso tudo, o que eu diria a mim mesma se eu pudesse voltar à escrita da minha tese, seria: “Não a escreva. Não perca tempo com isso”. Minha decepção com o mundo acadêmico, ao menos no local onde trabalhei, foi tamanha que minha vontade é queimar o diploma de conclusão de doutorado. Ainda vou fazer isso e transformá-lo em uma colagem. Título? O maior equívoco da minha vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Que perguntas difíceis! Prefiro apenas dizer: “Quero viver até os 102 anos”.