Daniela Monteiro Gabbay é professora da Escola de Direito de São Paulo (FGV).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre fui mais produtiva durante o dia. Acho que na manhã a cabeça está livre de qualquer preocupação para focar na leitura e na escrita. Meu mestrado e doutorado foram escritos predominantemente no período da manhã, depois de um café com leite às 7 horas e de uma noite bem dormida.
Depois de ter filho, a rotina mudou. A manhã (e madrugadas) deixaram de ser tão livres para produção e escrita, mas ainda assim continuo sendo uma pessoa do dia e, depois que o filho vai para a escola às 8 horas, e se não tenho reunião ou compromisso pela manhã, prefiro ficar em casa, no sofá com meu computador, até 11 horas escrevendo, lendo, preparando aulas, produzindo, em silêncio e sem as interrupções e percalços do dia. Só depois disso faço exercícios e vou para o trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor pela manhã e à tarde, depois de um café preto após o almoço. Sou definitivamente uma pessoa do dia. À noite estou com a mente cheia, cansada e prefiro dedicar o tempo ao meu filho e à família. Quando é realmente necessário, o trabalho se estende pela madrugada, mas sempre em um nível de produção menor do que durante o dia.
Meu ritual para preparação para a escrita sempre envolve organizar o material necessário para a pesquisa (leituras, anotações), ter em mente as metas e prazos. Atuo na área de contencioso, gosto de um prazo para me organizar e, além disso, como uma boa capricorniana, sempre invisto um tempo em planejamento de rotinas. Nesse sentido, ter o prazo para entregar um artigo para participação em congresso, um prazo com editor para publicar artigo ou livro, sempre funciona, ainda que no direito muitas vezes esses prazos acadêmicos possam ser flexibilizados. Mesmo assim, o efeito psicológico do prazo ajuda bastante.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No mundo ideal, adoraria escrever em períodos concentrados e extensos. Mas na realidade consigo escrever um pouco todos os dias. As metas estão muito relacionadas aos prazos, como disse acima, e ajudam a dimensionar o objeto da escrita. Mas nem sempre dá para cumprir metas diárias e costumo registrar no texto sempre o que gostaria de abordar e está ainda em aberto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sempre começo pelo sumário, acho que dá um bom norte de onde quero chegar. Gasto muita energia e reflexão antes de montar o sumário, e várias vezes o modifico. Encaro-o como um verdadeiro mapa de onde quero navegar na escrita. É claro que por trás do sumário sempre há um problema de pesquisa, uma pergunta ou inquietação que me move. Quando escrevo artigos em coautoria, a parte do sumário é ainda mais relevante para dar identidade ao artigo e também permitir uma boa divisão de tarefas.
Para desenvolver os capítulos, tenho um estilo um pouco “frankenstein” de escrever. Não gosto de páginas em branco e, por isso, à medida que vou avançando na pesquisa, costumo registrar parágrafos sobre reflexões e achados, ainda que desconexos, para depois conectar tudo em um texto que faça sentido.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Gosto de projetos longos e coletivos. Os trabalhos que mais me deram prazer em fazer foram fruto de pesquisa empírica coletiva, pois acredito que os ganhos foram tanto no resultado, com múltiplos olhares, como no processo de produção, nos debates, na escuta, na produção coletiva e até mesmo nas amizades construídas e que foram além da pesquisa.
Sobre as travas na escrita, tento aceitar que nem todos os dias são igualmente produtivos. Há também dias com maior e menor inspiração. Tento ver com certo otimismo alguns intervalos sem mexer no texto, inclusive para reler com um olhar menos “viciado” no seu conteúdo. Mas é claro que quando o prazo chega perto, dias não produtivos acabam (infelizmente) sendo compensados com fins de semana de trabalho.
Sobre expectativas em relação ao leitor, isso não costuma travar minha escrita. Tento ser bem honesta em situar o leitor “de onde” falo, quais são minhas premissas e argumentos. Ser lida é sempre um privilégio, que me envaidece, quer alguém concorde ou não com o que foi dito por mim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso várias vezes os textos que escrevo e gosto muito quando ele pode ser lido por outras pessoas da área. O cenário ideal seria debater previamente os textos em grupos de estudo e conferências. Mas nem sempre é possível e, com a correria do dia-a-dia, é raro encontrar leitores disponíveis, por isso acabo muitas vezes marcando reuniões de trabalho para debater os argumentos centrais com colegas e pesquisadores e, muitas vezes, o marido acaba tendo que exercer o papel de leitor crítico também.
Contudo, como disse na pergunta anterior, artigos e pesquisas coletivas me interessam bastante e trazem esse debate para o epicentro do artigo, com a escrita executada a várias mãos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo no computador. Isso facilita o desenvolvimento do texto. Mas para ler artigos e livros, prefiro o material impresso e gosto de fazer minhas anotações à mão. Quando está pronto o meu texto, também costumo imprimir para fazer uma revisão final.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acredito que a criatividade vem das coisas simples: ler, pesquisar, debater, ouvir quem concorda e discorda de você. Dialogar, para mim, é essencial e por isso sempre vejo com bons olhos o compartilhamento de ideias, o debate. A produção do conhecimento, para mim, dá-se em rede. As aulas também são fontes ricas de ideias, de contato com estudantes mais novos, de releitura de textos e proposição de novos desafios que sempre nos oxigenam.
Gosto também de artigos que são produzidos em continuidade e trazem avanços gradativos na análise do mesmo tema. Recentemente, tive essa experiência em artigos que escrevi para os encontros do Law & Society com a Maria Cecília Asperti, Susana Henriques da Costa e Paulo Eduardo da Silva sobre o tema de acesso à justiça. Fomos dando mais passos a cada artigo: o primeiro sobre o estado da arte e dados empíricos sobre acesso à justiça no Brasil, considerando as vantagens dos grandes litigantes e a necessidade de uma pauta redistributiva do acesso; o segundo sobre escolhas políticas, discursos vencedores e vencidos mapeados a partir das reformas legislativas que impactaram na agenda de acesso à justiça no Brasil e o terceiro (ainda em andamento) sobre o acesso à justiça como chave para estudo da sociologia do processo, propondo uma agenda de análise de novas pautas de pesquisas e abordagem do tema em sala de aula.
Tenho tido uma preocupação em ler mais livros e artigos escritos por mulheres, no direito e fora dele, tentando trazer um “gender balance” em relação aos meus programas de curso e artigos que venho escrevendo, e os achados tem sido cada vez melhores. Há muitas mulheres competentes nas áreas de processo civil, arbitragem, mediação e solução de conflitos, nas quais eu escrevo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Era muito jovem quando escrevi minha tese de doutorado, tinha menos de trinta anos, mas vejo vantagens e desvantagens nisso. Primeiro, tinha mais tempo para dedicação à escrita. Passei um ano fazendo pesquisas nos EUA durante o doutorado, como visiting fellow na Universidade de Yale, e fui bolsista (da CAPES) durante o mestrado, que terminei um ano antes do prazo. Tinha muita sede de aprender, mas, por outro lado, tinha menos experiência para saber priorizar o que realmente importava. Hoje, vejo livros que li no mestrado e estão integralmente grifados, queria sempre entender cada detalhe, por isso grifava todos os parágrafos. Hoje tenho mais experiência, menos tempo, e a mesma vontade de aprender, que agora concorre com outras vontades e responsabilidades. Isso me faz pensar mais estrategicamente nas minhas escolhas, decidir com cuidado cada imersão acadêmica, mas vejo ainda a mesma vontade de sair da zona de conforto e buscar um olhar crítico que a academia nos proporciona.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho estudado muito sobre acesso à justiça, em conjunto com vários professores, e busco com essa chave de análise trazer para o processo civil brasileiro novos olhares. Um projeto que ainda está no papel, mas que gostaria de em breve concretizar, é a criação de um observatório ou laboratório de acesso à justiça no Brasil, analisando e produzindo dados empíricos para focar na redistribuição do acesso à justiça e na contribuição que podemos dar a partir do ensino do direito processual civil.
Não há um livro que gostaria de ler e que ainda não existe. Minhas leituras têm se focado muito na área de acesso à justiça e solução de conflitos, inclusive por conta de uma disciplina nova que estou lecionando sobre o tema, mas gosto de leituras variadas e fora do direito para oxigenar a mente de vez em quando.