Daniela Lima é filósofa, autora de “Foucault Contra Sartre” (Editora Zouk).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Passei alguns dias refletindo sobre essas perguntas, porque achei que não seria capaz de respondê-las, visto que não consigo enxergar algo suficientemente interessante na minha rotina para ser compartilhado. Por outro lado, também não gostaria de transformar as respostas na prescrição de uma metodologia de escrita. Portanto, pensei na possibilidade de criarmos um diálogo sobre o avesso da escrita, ou seja, sobre a dificuldade de escrever. Compartilhar algumas fragilidades que os trabalhos não mostram.
Acredito que a dificuldade de escrever se aproxime da dificuldade de se relacionar com a alteridade. Não por acaso, Michel Foucault conta, em O Belo Perigo, que só conseguia escrever se imaginasse que todos já estavam mortos. Para ele, esse é o lugar de possibilidade da escrita. Afinal, se relacionar com os vivos é lidar com expectativas, projeções, idealizações, conflitos… Ou seja, com tudo aquilo que compõe o avesso dessa “tapeçaria”.
Como estou escrevendo a dissertação, estabeleci uma rotina que me ajuda a lidar com essa dificuldade. De certa forma, transformei uma grande dificuldade em pequenas dificuldades diárias, que acabam vencidas pelo hábito. Talvez seja interessante mencionar que organizar as minhas atividades diárias em um planner me ajudou muito na construção dessa rotina. Poderia dizer também que tomo chocolate cremoso (frio no verão e quente no inverno) assim que acordo e que passeio com a minha buldogue, Amora, mas não sei se isso é parte do processo. Ainda estou tentando descobrir o lugar das pequenas coisas…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre pela manhã, quando ainda tenho a impressão de não estar contaminada pelos problemas cotidianos e pelo noticiário político. Portanto, evito ler jornais, revistas, abrir e-mail ou entrar nas redes sociais nas primeiras horas do dia. Essa “impressão”, que não corresponde à realidade, visto que estamos, desde sempre, contaminados pelo mundo, me causa outra impressão não menos importante, a saber, de que estou inteiramente no presente. Concentrada para ler, escrever, dar aula, que são as minhas atividades matinais. É um esforço que dura até alguém me perguntar no elevador, na portaria, na sala de aula: “você viu que o presidente…?”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Para mim, o processo da escrita começa antes da relação com a tela em branco, é um ato contínuo. Acredito que um texto tenha um tempo próprio para ser desenvolvido, um tempo que não pode ser automatizado e que dificilmente corresponderá a uma meta predeterminada. No entanto, lidamos com prazos e acredito que a angústia da escrita se relacione com o descompasso entre o tempo do texto e a data de entrega do mesmo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Antes de começar um texto, escrever sempre me parece algo distante e impossível. Nunca sei aonde essa pretensão de escrever vai me levar, se é que vai me levar a algum lugar.
Para lidar com essa dificuldade de começar, prefiro não ficar diante da tela em branco depois de concluir uma pesquisa bibliográfica. É nessa pausa, nesse afastamento, que o texto começa a ganhar forma, de modo que quando começo a escrever o processo parece natural.
Talvez seja esse afastamento que Michel Foucault chamou de “morte”. Para ele, é a partir dessa “morte” que podemos dizer coisas “serenas” e “analíticas”. A morte representaria, portanto, uma pacificação da relação com o outro. Aquilo que chamei anteriormente de “ato contínuo” é justamente esse processo de leitura-pausa-escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acredito que seja importante reconhecer as “travas”, a “procrastinação” e o “medo” como parte do processo de escrita reduza a ansiedade. Mas talvez seja igualmente importante pensar sobre as questões que antecedem esses sintomas. Por exemplo, é muito comum que mulheres, sobretudo na filosofia, experimentem um sentimento de inadequação, visto que os homens são a maioria nos programas de pós-graduação. Segundo um levantamento da professora Carolina Araújo, publicado em 2015, mulheres (docentes e discentes) são apenas 27% da nossa comunidade acadêmica. Ou seja, esse “sujeito da filosofia” tem um gênero definido. Aliás, gênero, raça, classe e nacionalidade. Uma mulher na filosofia, além de ter poucas referências de autoras e colegas, parece escrever contra uma tradição majoritariamente masculina. Ou pior: parecer escrever contra um destino imposto às mulheres. Aqui caberia lembrar Simone de Beauvoir: não existe um destino que nos defina, embora existam barreiras a serem vencidas. Barreiras que vão se tornando mais frágeis, cada vez que uma mulher se torna mestre, doutora, professora…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumava revisar meus textos obsessivamente, até entender que um texto nunca está concluído. Pode ter sido entregue, pode ter passado pela banca, pode ter sido publicado, mas não está concluído. A pesquisa é um espaço aberto, de modo que sempre podemos retomá-la de outros lugares, de outros tempos e a partir de outras interlocuções. Por isso, prefiro pensar em “considerações finais” e não em “conclusões”. Pensar nos textos como parte de um percurso e não como algo definitivo também ajuda a reduzir a ansiedade.
Acredito que mostrar o texto seja uma etapa importante, porque restabelece a relação com a alteridade. É uma forma de abrir um espaço de liberdade e de construir uma experiência de “pedra de toque”. Mas confesso que, dependendo do dia, prefiro enviar para alguém que não vá fazer muitas críticas ou que faça críticas enquanto comemos um bolo de laranja.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não gosto de ler em dispositivos eletrônicos, prefiro a materialidade do livro. Não faço rascunhos, mas costumo sublinhar, fazer anotações e usar aqueles marcadores coloridos da Post-it. Gosto desse contato físico, de deixar marcas e de reconhecer as marcas antigas. Quando compro livros em sebo, fico buscando essas marcas de leitura, é algo que me fascina.
Além do planner, uso caderninhos, que não são exatamente rascunhos. Neles, faço anotações das aulas (que dou e assisto), de filmes, de peças de teatro e também coloco alguns esquemas e desenhos que só eu consigo decifrar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Lembrei-me de uma história do Picasso: ele desenha o rosto de uma moça em alguns minutos e cobra um valor que ela julga muito alto para vendê-lo. A moça diz: “mas você levou apenas alguns minutos”. Ao que ele responde: “não, eu levei a minha vida inteira”. Ou seja, a criatividade e as ideias vêm de um percurso, de uma vida inteira, daquilo que construímos como modo de existência.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O entendimento de que um texto nunca está concluído. Não sei se diria alguma coisa, porque mesmo as “falhas” fazem parte do meu percurso, é importante ter essa relação de acolhimento com aquilo que pude fazer no passado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu gostaria de fazer está em andamento: é a minha dissertação sobre o livro A História da Loucura, de Michel Foucault. Paralelamente, leio algumas biografias, adoro as histórias de Foucault no Brasil. Saber que ele tomou uma cerveja na Lapa, que passeou pelas praias de Salvador…
Sempre que entro em uma livraria ou biblioteca, me dou conta de todos os livros que não li… Aquilo que existe se impõe como desejo, como prazer, como obrigação. Mas talvez eu trocasse algumas leituras por uma daquelas reuniões no apartamento de Foucault, aquelas loucas e intermináveis…