Daniela Delias é poeta e psicóloga, e autora de poesia “Boneca russa em casa de silêncios” e “Nunca estivemos em Ítaca” (Editora Patuá).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sei se tenho uma rotina matinal. Na verdade, sou péssima com rotinas, ainda que busque cumpri-las da melhor forma no que se refere aos horários das aulas e demais compromissos da universidade. Costumo deitar muito tarde, mas o momento em que acordo talvez seja mesmo o único do dia em que poderia afirmar que alguns pequenos gestos se repetem há algum tempo: Totô, uma de minhas gatas, põe levemente a patinha sobre meu rosto e fica esperando que eu acorde, saia do quarto e venha olhar a vida (ela sim, definitivamente, tem uma amorosa rotina!). Levanto, ponho o café para passar e cuido dos bichos. Quando tudo está pronto, sento diante de minha escrivaninha – que fica em frente a uma grande janela – e tomo o primeiro gole de café, olhando para a rua, lendo as notícias e pensando na lista que não farei ou na possível rotina que vou tratar de subverter para lidar melhor com as exigências do dia a dia. Aí sim tenho a certeza de que o dia está começando, não sendo necessariamente importante a hora em que isso acontece.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor ao anoitecer. E não falo apenas em relação à escrita, mas também ao trabalho como professora. A minha ideia de ritual de preparação tem relação com o sentimento de que a escrita ou mesmo a fala em sala de aula surge de algo muito solto e, ao mesmo tempo, totalmente atado às memórias, afetos e pequenas coisas do dia. Tem uma lógica de encadeamento que, em grande parte das vezes, não apreendo. A escrita, para mim, resulta de uma combinação de processos aleatórios: algo que tenha acontecido durante o dia, um filme que tenha assistido, um poema lido, uma conversa em uma supervisão de psicologia clínica, um gesto que tenha presenciado ou vivido. E tem a música. Eu preciso ouvir música todos os dias, de verdade. De tudo isso, indiscutivelmente, a música e a leitura de outros autores estão no centro. Há vezes em que tudo isso se junta e toma a forma de uma enorme inquietação. É quando faço um chazinho, escuto mais e mais músicas, abro a tela do word e tento escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias e não sigo uma meta. Aliás, tenho passado longos períodos sem escrever poesia. Como lido com um tanto de sofrimento diante da burocracia dos dias, a escrita me permite desarranjar um pouco mais a ordem das coisas. É assim que minha poesia tem acontecido, e não sei se ela seria possível de outra forma. De tempos em tempos olho para o conjunto das coisas que escrevi e trabalho a possibilidade de organiza-las em livro, e só então fico um pouco mais atenta às demandas de organização. Tem sido assim há alguns anos. De todo modo, pensando bem, a despeito da palavra registrada no papel ou na tela do computador, há um processo contínuo de construção que me põe diariamente envolvida com a palavra.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita está bastante associado à minha introspecção. Eu seguidamente busco a quietude da minha casa ou andar pelas ruas aqui da cidade olhando para as coisas. A maior parte das imagens que estão presentes no que que escrevo remete a isso. A minha ideia de pesquisa, aliás, remete a esse fluxo, que inclui a escuta clínica. Não há estado de espírito ou momento que eu possa definir como aquele em que geralmente escrevo. O que posso dizer é que meu processo de escrita é quase sempre exaustivo, e que ele só tem sido de fato possível quando estou em casa. Além disso, nenhum poema ocorre rapidamente, como um jorro ou uma psicografia. É mais como uma fotografia que eu ficasse olhando por horas, soltasse e depois a tomasse outra vez nas mãos. Essa imagem mental ou representação vai aos poucos se ligando a outra até formar um verso. Há também uma relação com a sonoridade, uma busca de um jeito de dizer que pudesse fazer com que as palavras dançassem um pouco. Demoro a acertar o passo. Mas enquanto não acontecer, a tal imagem não me abandona. Daí a exaustão.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando desejo e impossibilidade dividem um mesmo teto em mim, tento descobrir alguma outra forma de dar vazão à inquietação a qual me referi antes. A descoberta da fotografia é um bom exemplo disso. Tenho me sentido devastada com o cenário político que nos assombra principalmente desde o último ano, e isso trouxe um enorme impacto para a minha escrita. Porém, ao mesmo tempo, me fez caminhar, registrando o que passa pelo olhar, sobretudo o que me parece ter potência de vida, de luta. Tem sido um pouco como escrever, e me ajuda a driblar o sentimento de paralisia e impotência. Sobre a procrastinação, não brigo comigo mesma. Silenciar um pouco as coisas, olhar para dentro com um pouco de calma – eu penso – ajuda a diminuir o ritmo das exigências internas e pode ser uma forma de lidar tanto com a procrastinação como com os receios.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu tenho a sensação de que escrevo revisando. Um verso acaba demorando bastante para estar um tanto mais pronto, mas não saberia contabilizar quantas vezes me debruço sobre ele e o reescrevo. Há poemas que reviso exaustivamente. Gosto de lê-los em voz alta, tentando encontrar um ritmo que tenha algum sentido para mim. Não costumo mostrar o trabalho antes de publicar (considerando, neste caso, que a minha primeira forma de publicação costuma ser sempre a rede social). Costumo fazer isso quando há a ideia de publicação em livro, pois me parece sempre interessante a possibilidade de ter outro olhar sensível sobre um conjunto de poemas. Mas recentemente descobri que tenho dificuldade em pensar alterações a partir de apontamentos. Há muito o que amadurecer nesse sentido. Mas é como se tudo em um poema dependesse de algo muito íntimo e, quase sempre, pouco compartilhável.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre no computador. Após a escrita inicial, costumo publicar em um blog que mantenho há vários anos e também no Facebook. É bastante provável que o poema publicado seja modificado inúmeras vezes ao longo do tempo ou mesmo deixe de existir. Mas gosto de registrar dessa forma. É uma espécie de necessidade intensa de comunicação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que minhas ideias vêm de um enorme espanto com o mundo. Sim, é isso: de uma sensação interminável de surpresa e espanto. E também de ouvir pessoas, suas histórias de vida, de olhar os animais, de estar atenta às pequenas coisas de fora e de dentro e, principalmente, ao que acontece no caminho entre elas. Algo assim. Não saberia descrever exatamente que hábitos se associam a isso, mas talvez uma postura: deixar-me surpreender pela vida, pelas pessoas, pelos caminhos. Trabalhar com processos de ensino-aprendizagem tem sido fundamental nesse sentido. É incrível como a gente se move quando está em uma sala de aula, e eu tenho a sorte de aprender muito e desejar muito todos os dias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não ter medo de recomeçar um texto e, em grande parte, entendê-lo como um exercício de contemplação e calma. O que diria a mim mesma é: calma, Dani. Volte ali. Recomece. Não há pressa. Contudo, há uma coisa que se mantém: a ideia de que a escrita me proporciona uma espécie de deslocamento ou mergulho dentro de mim e no mundo que nenhuma outra coisa parece proporcionar. É algo da ordem da loucura, da beleza e da resistência.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Cada poema escrito me deixa a sensação de que não escreverei mais. Mas quando vejo lá está ela, a falta, e é só o que preciso para seguir. Há um trabalho que em alguns meses estará pronto. Chama-se “Alice e os dias”, um livro pequenininho que foi escrito ao longo de cinco anos e virá em maio pela Concha, uma editora aqui de Rio Grande. Há outro projeto de poesia em construção, e tem relação com o olhar e a minha paixão pela fotografia. O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe deve estar sendo escrito agora pelo Valter Hugo Mãe, pelo Kundera ou por algum dos escritores contemporâneos incríveis que tenho lido nos últimos anos. Muitos já passaram por aqui contando sobre sua escrita.