Daniela Delias é professora do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu não tenho uma forma única de organização, depende bastante do fluxo de trabalho, dos prazos e da minha disposição. Na maior parte do tempo, estou às voltas com diversos projetos na universidade, o que significa um constante esforço para dar conta das aulas e demais compromissos, ainda que seja prazeroso desenvolvê-los. São atividades que, de maneira geral, implicam em alguns horários fixos durante as tardes e parte das noites. Tenho um quadrinho, ao lado da escrivaninha, no qual guardo algumas imagens da família e outras que me inspiram igualmente a seguir em frente, como a do nosso grupo de escuta psicanalítica na rua, interrompido pelas circunstâncias da pandemia. No mesmo quadrinho também anoto algumas tarefas. Ocorre que, quase sempre, esqueço de revisar as anotações! Às vezes penso que a minha conexão com o trabalho se dá por um canal mais afetivo, por uma via do desejo mesmo, e assim tenho seguido tanto na psicologia como na escrita. Meu método é um pouco caótico nesse sentido, mas tem funcionado para mim. Observei nos últimos dois anos uma considerável diminuição no ritmo da escrita de poesia, o que tenho entendido mais recentemente como a necessidade de uma pausa, uma reconstrução, uma redescoberta da palavra e das minhas possiblidades como alguém que deseja escrever. Tem sido um tempo intenso de leitura. Ainda assim, desenvolvi alguns projetos nesse período. Um deles foi Alice e os dias, o meu terceiro livro de poesia(publicado pela Editora Concha, de Rio Grande, em 2019). O projeto mais recente é coletivo, e será publicado em alguns meses. Trata-se de um livro de poesia que reúne sete amigos aqui de Rio Grande, ligados por uma vontade de manter a palavra em movimento em tempos tão estranhos. Estamos muito felizes por essa construção.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Penso que depende bastante do projeto. Alice e os dias, um livro que foi escrito ao longo de cinco anos, partiu de um planejamento: a perspectiva de escrever um conjunto de 30 poemas, organizando-os em torno de alguns atravessamentos entre escrita, tempo e corporeidade. Apesar da organização inicial, foi preciso deixar fluir para que os poemas acontecessem, e me vi sem pressa alguma para finalizá-lo. Por outro lado, há poemas que escrevo sem qualquer organização, os quais eventualmente acabarão por compor algum trabalho. Mas tenho cada vez mais compreendido que as duas coisas, planejamento e espontaneidade, tendem a andar muito perto no meu processo criativo. Sobre qual frase/verso seria mais difícil de escrever, não saberia dizer ao certo. Talvez o primeiro. Começar me parece um pouco mais difícil.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Lembrei da entrevista anterior do projeto “Como eu escrevo”, quando disse que era um tanto avessa às rotinas. Na verdade, apenas tenho uma rotina diferente das pessoas que acordam cedo e buscam uma organização mais formal, disciplinada. Porque se eu for analisar mais profundamente, penso que preciso, sim, de algumas coisas, e elas se repetem: minha casa, minha escrivaninha, algum chá e, principalmente, que seja respeitada a minha necessidade de isolamento. Virginia Woolf estava coberta de razão ao escrever Um teto todo seu. Eu preciso muito do meu teto para escrever e de um território que me permita tanto escutar os silêncios de dentro como manter acesas as minhas inquietações.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Veja a coincidência: ainda ontem, retomando algumas leituras de trabalho, pensei muito na relação entre a escrita, como a compreendo, e algumas concepções acerca do princípio do prazer-desprazer, conforme proposto por Freud. É como se não me fosse possível ignorar a tensão posta pelo desejo de criar. Se a inibição insiste de um lado, o desejo insiste de outro. Então não sei se é uma técnica, mas quando vejo larguei momentaneamente a coisa travada e me pus a inventar outra, como se não tivesse saída. Por outro lado, penso que a escrita é só uma parte do processo, e acabo lidando bem com a ideia de muitas vezes estar no meio do vazio, da ausência de palavra, ou prestando atenção nas coisas do mundo, nas pessoas. Tenho pavor de pensar a palavra sugada pelas engrenagens e burocracias da vida, sobretudo aquelas que me imponho.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Eu penso que o texto mais difícil de ser escrito está acontecendo. Tem sido bastante difícil compor um novo trabalho. Entendo que me tornei extremamente crítica em relação à minha escrita. Tenho mexido em alguns textos, pensando em uma composição. É um projeto que tem a ver com a memória e com o olhar, muito influenciado pelo meu mergulho na fotografia. Gostaria de poder ter algo em mãos neste 2021, mas ainda não sei se será possível. Eu gosto bastante (ainda) do meu segundo e do meu terceiro livro (Nunca estivemos em Ítaca/Ed. Patuá e Alice e os Dias/Concha) e olho com muitas ressalvas para o primeiro. Penso que os dois últimos contaram com um pouco mais de maturidade na escrita e na escolha dos poemas, além de apresentarem uma unidade que me agrada bastante.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Eu estava quase respondendo que não escolho, e então me ocorreu que até então parece que tenho escrito sobre os mesmos temas, com diferentes desdobramentos: a palavra, o corpo, o tempo, a memória, o silêncio, a falta que nos põe a desejar. Não tenho um leitor em mente quando escrevo, e me vejo sempre surpreendida quando alguém conta que leu o que escrevi e que o texto lhe disse algo.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Eu geralmente mostrava meus poemas recém escritos nas redes sociais, publicando-os no Facebook e no blog que utilizo como uma gavetinha virtual. De todo modo, demorava bastante até entender que os textos poderiam ser mostrados, pensando-os invariavelmente como projetos em construção, passíveis de mudança. Quando estão se organizando como livro, mostro primeiro aqui em casa, e só depois ao editor ou editora que trabalhará na publicação. Mas venho repensando o hábito de publicar em rede social, e ainda estou tentando entender os motivos. Creio que tenha relação com uma sensação de esvaziamento que a dinâmica do Facebook me traz.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu não lembro se em algum momento isso aconteceu. Penso que não. Creio que todos os textos escritos até aqui contaram com minha dedicação e exigência, mesmo aqueles que mais tarde me fizeram pensar que deveriam ter recebido maior atenção. E são muitos os que me fizeram pensar isso, que poderiam melhorar. Eu tenho um amor louco pelas palavras. É isso. Então, leio, leio, leio. E, quando possível, escrevo. Escrevo, reviso, escrevo outra vez. Tem sido assim desde os 13 anos de idade. Sobre o que gostaria de ter ouvido: na verdade, gosto de ir descobrindo as coisas pelo caminho, as bonitas e as dolorosas. Ser mulher e o que isso significa em relação à escrita e a difícil conquista de espaços é uma delas.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Eu acho bonito pensar a questão de estilo como o desenvolvimento de certa voz. Entendo que há uma longa caminhada desde a identificação e introjeção da voz de algumas autoras e autores à construção de uma voz própria. E há muita imitação ao longo do percurso. É importante reconhecer, separar-se, nascer todo dia. É interessante quando alguém te diz: “Eu sabia que este poema era teu, tem a tua voz”. Penso que esse reconhecimento passa muito pelo olhar do outro. Eu mesma tenho dificuldade em afirmar se a possuo ou não. Vivo sob a influência de muitas escritoras e escritores, exercitando constantemente a possibilidade de vir berrando ao mundo.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Varia bastante, e tem relação com o que estou lendo a cada momento. Sempre falo sobre A Insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, livro que li na adolescência e que me marcou profundamente. Há alguns anos fui arrebatada por As cidades invisíveis, de Italo Calvino, e A desumanização, de Valter Hugo Mãe. Na poesia, Árvore de Diana, de Alejandra Pizarnik, Júbilo, memória, noviciado da paixão, de Hilda Hilst, e obras de inúmeras escritoras e escritores contemporâneos. Neste exato momento estou lendo Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, um livro que esteve por décadas me olhando na estante e eu a ele. Era neste agora que precisávamos nos encontrar, às vésperas dos meus 50 anos de idade. Estou comovida, encantada. “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo”. É o que tenho sentido.