Daniel Senna Irgang escreve sobre drogas, mendigos, assaltantes, ficção científica, sexo e apocalipse, autor de CARNE (Animal de Teta, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente acordo com fome e como algo, até mesmo algo pesado tipo uma janta. Se isso não acabar me tornando um urso hibernante por algumas horas de puro terror por não conseguir fazer absolutamente nada senão digerir, tento ler um pouco na cama, até o meu pescoço começar a doer ou eu sentir que tô pronto pra lidar com o mundo. Normalmente eu postei alguma besteira nas redes sociais ou enviei algum trabalho pra avaliação e isso sempre faz esse momento do dia ser o mais terrível, mais talvez que levar um boxe do meu estrômbago: ver a reação das coisas, geralmente positivas mas sempre tem um lado meio apocalíptico pra coisa, em que eu me sinto meio pelado em relação às outras pessoas. Mas daí o meu dia começa e tudo se encaminha, pra bem ou pra mal. Não, antes eu tenho que dar um pulo no banheiro, porque o nervosismo dá aquela pontada psíquica de contrair as tripas, e acho que depois disso sim o dia começa. Exceto que o dia pode ser a madrugada também. Acho que o meu sono irregular vai me matar, no fim das contas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente na madrugada, quando eu tô dormindo de dia. O dia me deixa pesado. Tanta cobrança social, tanta gente e resultado do que tu fez ou não fez ou acha que fez. A madrugada é uma espécie de infinito temporário: alguma hora chega a manhã e tu começa a se sentir um cu, mas até então tu fez tudo o que tu queria fazer sem ninguém te encher o saco. O ritual é eu esquentar um café, mesmo se eu não for tomar (tenho um problema sério de sintomas de pânico mas esquentar o café me lembra de algumas noites de glória aceleradão que nem o Tony Montana só que em vez de cheirar pó e dar tiro tu escrevia), e depois ficar titubeando inutilmente em busca de uma premissa prum texto novo, ou ficar olhando inutilmente pra algo que eu já escrevi e tenho que continuar, ou tentar, num exercício, escrever uma besteira em livre-associação, descompromissada, que GRAÇAS A DEUS geralmente não é inútil, porque mesmo se o texto for uma porcaria tu deu aquela alongada e pode partir pra outras. E às vezes a besteirinha é tão boa que tu só escreve ela e eras isso pro output do dia, e a besteirinha vira outro filho, por mais torto que o filho saia de ti. Raramente tu tá num período mágico em que tu titubeia um pouco talvez mas no fim senta o rabo e escreve que nem um animal, mas todo mundo tem os seus dias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu sei quanto eu produzo num dia, mais ou menos, geralmente uma página ou duas, mas quantas vezes isso ocorre numa semana, sei lá. Acho que umas duas vezes por semana já tá bom. Tem uns períodos bons em que eu consigo escrever umas quatro páginas por dia por três dias seguidos. Mas não é toda semana. Eu lembro mais é das semanas de merda, em que eu não sinto vontade de escrever, ou não consigo (eu fico tipo uma vaca querendo ser ordenhada, meio irritadiço). Das semanas de vacas gordas eu não lembro. Muito compenetrado curtindo, acho. Umas duas páginas por dia tá beleza, quanto a alguma meta, nos dias em que eu consigo escrever. Se não for toda a semana, não me emputeço, aproveito pra ler, e de todo modo muitas vezes as 1-2 duas páginas que eu fiz num dia dão aquela nutrida de ego pelo resto da semana.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu improviso quase tudo. Só parto de algumas frases curtas que eu escrevo no celular, sumarizando alguma ideia geral pro texto ou desenvolvimento de enredo. Tende a ser mais fácil quando eu tenho essas notas. Mas no fim, não tem mistério: tu começa a escrever e vira alguma coisa, com ou sem nota. Eu não pesquiso muito, no máximo algum artigo de notícia ou da Wikipédia, ou algum nome bizarro de produto químico. Queria escrever algo serião, com pesquisa e tudo, mas acho que isso depende muito do estilo do escritor, da maneira que o cérebro dele ou dela tá configurado. Algumas pessoas são mais trabalhadoras, fazem textos estáveis e bem trabalhados e com bastante fundamentação na realidade (que tu pode ver como apolíneas ou executivas); já animais de teta como eu possuem pouco fôlego, porque o cérebro da criatura tá mais interessado em dar umas piruetas e entrar em combustão instantânea do que fazer uma obra musculosa e pétrea, que requer dedicação e repetição (isto é, tais animais têm um cérebro mais dionisíaco). Nenhum dos dois é superior ao outro: só diferem a abordagem e o interesse que o cérebro tem por um tipo de informação (dados e regras, num caso; bobice, no outro). Tenho vários amigos que escrevem de uma maneira mais executiva, e acho isso bem tri, porque às vezes tu tá numa pira mais “realidade”, cansado de loucurinha, e afinal seria um porre se todo mundo escrevesse como tu. É um erro sério empurrar uma metodologia de escrita como ulterior, be all end all, porque é só pensar: sem alguma oposição, como tu vai definir a tua própria identidade? Se todo mundo escrevesse tecnicamente muito bem e de uma maneira homogênea, a gente não teria tanta necessidade de consciência, de pensar nas coisas, e, acima de tudo, seria chato pra caralho. Todo mundo provavelmente cometeria suicídio. Sem os chatos, não há os redondos. O meu amigo-irmão, o Rafael Escobar, fala de uma maneira magistral dessa questão no último livro dele, o Bando de desgraçado (Ornitorrinco, 2018), que sai daqui a pouco aqui em POA.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu vou alternando a escrita de um projeto com outros exercícios menores ou até mesmo outros projetos. É um bom truque pra se manter entretido, especialmente se tu cresceu com a internet e a velocidade que ela te traz pra acessar conteúdo diferente, heterogêneo entre si: a alternância de projetos simula isso, o feed de notícias, as abas do navegador. Funciona pra lidar com livros longos também. Lê outros ao mesmo tempo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
De nenhuma a duas vezes, dependendo de onde eu vou mandar o texto. Coisas mais longas eu mostro, as mais curtas eu só jogo direto na rede, i.e. o meu perfil no Caralivro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou um ciborgue. Bastante dependente do computador, tanto pela facilidade mecânica quanto pela atmosfera. Sei lá. Acho que nasci numa geração que não se sente completa sem uma tela ligada, algo acontecendo. E isso é pior quando tu tem alguns probleminhas emocionais e ficar 100% sozinho é algo mais horripilante que o normal, e a lentidão de escrever no papel mais prejudica o pensamento do que acalma, ameaçando te jogar na deprê. Eu gosto de ficar uns 70% sozinho. Escrever em papel, em comparação, é excruciante; o cara só consegue fazer quando tá se sentindo o Buda. Uma fonte nuclear de autossustento. Tem dias assim, mas são difíceis; e qualquer experiência com o papel, no meu caso, é só uma diletância pra curtir brevemente, apreciar a estética do papel, o movimento do corpo, ficar meio zen. Mas depois a tela acesa te chama de novo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As minhas ideias vêm de tudo. Eu tento integrar tudo que acontece na minha vida à minha escrita. Em cada momento que eu vivo, eu vejo uma história possível, ou um poema, ou os dois ao mesmo tempo. É claro, eu vejo essa possibilidade não como uma simples emulação, uma reprodução verossímil; pra mim, tá mais pra uma extração da essência e a remontagem dela em cenários diferentes, composições diferentes. Até mesmo o psicodélico e o absurdo têm algo a dizer sobre a vida – mais que obras “realistas”, muitas vezes. De todo modo, o inferno peculiar que POA é dá bastante material pra arte. Me surpreende a subutilização de um espaço tão maravilhoso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Respondendo às duas perguntas: menos exibicionismo, e mais direcionamento sagaz da loucura: não ficar atirando a esmo, descobrir o que realmente é que tu quer escrever, o que tu não pode viver sem escrever. Também se preocupar menos com agradar os outros. Fora isso, a minha estética sempre foi consistente. Tem nojeira e doideira em qualquer ponto de mim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro meu legível por qualquer um, ou um videogame. Canso um pouco de ser um torturador. Eu gostaria de ler:
* mais livros/peças/filmes dos meus amigos, especialmente mantendo o progresso dos últimos tempos (cf. o Rafael e o Bando de desgraçado, o ponto perfeito entre a narrativa, o absurdo e a filosofia; o Ryan Mainardi e o Sobre diferentes formas de amar, com a sua violência nua e na verdade contundente em relação ao mundo, não pornográfica só pelo bem da pornografia; o Pedro Dziedzinski e o Contrato do esquecimento, em que ele finalmente pega o estilão maravilhoso dele de dentista romântico assaltado pela vida e desenvolve uma narrativa em torno; o Gustavo Matte e o Demo via let’s go, odisseia colono-brasílica que merece várias sequências; o Marcelo Labes e o poeta periférico, destilando a bile contra os alquimistas do rococó; o grande Vinicius “Chini” Perez, que precisa lançar algum livro ASAP, pelo fantasma de Hunter S. Thompson; as gurias do teatro, a Rafaela Giacomelli, a Nina Picoli e a Victória Sanguiné, atrizes fenomenais em peças crescentemente dentadas e cheias de veias; os curtas do Iuri Minfroy, uma mistura de Steve McQueen com Dalton Trevisan, dos quais espero mais e um filme; e a minha irmã, a Sabrina, com o livro dela, Poemas de um ser… humano, na qual ela demonstra um talento lírico e uma profundidade incomuns em quem tem 15 anos)
* mais calhamaços, poemas épicos e/ou com uma estrutura um pouco mais definida que verso livre, e literatura experimental
*alguma coisa daqueles que eu vejo escrevendo no Facebook com crescente criatividade
* alguma coisa do estranho que eu vi há uns 15 anos atrás no estacionamento do Carrefour, e que tenho certeza que é o meu clone. Obrigado a ele e a você e ao Henrique Ribeiro, que tira todas as minhas fotos.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende do projeto. Geralmente eu tenho uma premissa básica (alguma ideia ou sequência de imagens se repetindo no meu cérebro e não parando de encher até virar texto), mas também rola de jogar uma frase montanha abaixo e ver a bola de neve se formar. Ou, no caso de uma montanha mais rochosa, ver se a frase se espatifa sangrentamente e os deuses me dizem algo a partir do padrão do sangue + entranhas.
Sem dúvida, a primeira frase é a mais difícil. Mas às vezes a primeira frase é a última frase, acontece.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Organizo bolhufas. Acho esse lance de AGORA EU VOU ME SENTAR PRA ESCREVER!!! algo bem ruim. Respeito quem consegue, mas pra mim a escrita funciona que nem o amor – tá fundida com a vida, e acontece de supetão ou te dá alguns mínimos ecos ao longo do dia. E a vida, no seu mais profundo âmago, é incontrolável, um ser selvagem.
HAHAH, na verdade eu tenho momentos de sentar pra escrever e muitas vezes acabo titubeando com inutilidades na internet e alguma hora a coisa vem e eu escrevo bastante ou me perco nas besteiras e não faço nada. Que nem qualquer escritor, ou a maioria dos escritores, que seja. Mas acredito em tudo que eu disse no parágrafo anterior. As melhores coisas tendem a vir quando se menos espera e tu meio que serve que nem um catalisador pra elas, parindo – e não moldando – alguma criatura.
Quanto ao número de projetos, raramente trabalho em mais de um. Às vezes eu tô um DÍNAMO DA CRIATIVIDADE e rola – mas o meu hábito (bom ou ruim, você decide) de enfiar duzentos gêneros textuais num projeto só acaba concentrando tudo numa grande bola de dor e merda. Também ajuda que eu consigo relacionar qualquer conjunto de coisas sobre as quais eu tiver que escrever: o meu amigo Rafael Escobar me chama de “liquidificador” por um bom motivo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
A realidade me entedia e me frustra ou, como quase todo mundo hoje em dia, me deprime. Não gosto do cotidiano, da natureza fatal da vida e da mediocridade das pessoas relativamente mais normais. Ando trabalhando esse desgosto, convertendo ele lentamente num apreço maior pelas coisas pequenas da vida e pelas pessoas, por uma questão de saúde mental e maturidade de espírito mesmo. Digo, a “mediocridade” que eu vejo muitas vezes é uma percepção porca da minha cabecinha solitária, porque as pessoas têm habilidades que eu nunca terei e podem se contentar com o que nunca me contentarei. Não sem um grande esforço do meu gordo e fútil eu, pelo menos. Ser escritor é uma grande bosta, na verdade. É pouca coisa em comparação à vida de quem tá aí, na rua, no trabalho, ralando apesar de uma miríade de problemas.
Eu decidi me dedicar quando cheguei num poço bem fundo da minha vida e vi que a luz no fim do túnel era me dedicar à arte. Não, serião: foi isso mesmo. Como não encontro satisfação em quase nada, vâmo lá. No fim pendi mais pra escrita porque é o que eu sei fazer melhor, mas me interesso por qualquer expressão que traga alguma estética carregada de sentido. Especialmente se for um sentido equivalente a um vulcão de marshmallow cancerígeno: algo que sacoleje o marasmo, que traga um frescor à feiura natural da vida, mas que seja um pouco perigoso. Faz bem pra saúde.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não muita dificuldade. A minha fala é naturalmente torturada e esquisita, que nem eu. Hou hou hou.
Tá, na verdade eu sempre tive um problema de claridade: acho muito feio dissecar e expor algum significado contido numa obra de arte. Melhor sentir do que pensar. Daí procuro colocar um mistério no texto, mas com frequência acabo sendo apenas vago por incompetência ou preguiça.
Também acho um porre colocar propósito, motivação, causalidade etc. em personagens. Eu acho também meio feio pensar um texto nesses termos. Ficar “simulando” a vida de um personagem. Tem o cheiro artificial de uma novela da Globo pra mim, não sei explicar muito bem. Eu penso em imagens, sensações e alguma mensagem que eu consigo exprimir em breves rascunhos, mas que eu quero que desapareça um pouco no subconsciente enquanto tô escrevendo.
Adoro o David Foster Wallace, em especial o Infinite Jest. Era certamente um cara bastante racional, o que eu não curto muito normalmente, mas ele conseguia fazer essas dissecações que eu não gosto ficarem divertidas – em maior parte por reconhecer a natureza neurótica, paradoxal e fútil delas; isto é, lembrar que por trás de todo grande pensamento há um animalzinho machucado procurando controlar desesperadamente a vida. Mas ele não explicava tudo, tudo, o que é essencial: deixava o que não precisava ser explicado quieto. Também fazia uns malabarismos verbais e narrativos que são pura audácia: algo que falta muito na literatura.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
A Scanner Darkly/O Homem Duplo/Um Reflexo na Escuridão, do Philip K. Dick: drogadição, pobreza, depressão, psicose e paranoia.
Andei lendo algumas coisas da Kristen Roupenian e da Carmen Maria Machado, dos livros Cat Person e O Corpo Dela. Conseguem tratar muito bem do terror de ser mulher, e a Carmen Machado em especial tem uma espécie de fanfic experimental psicodélica de Law & Order SVU. Good stuff.