Daniel Knight é escritor e tradutor.
Como você começa o seu dia?Você tem uma rotina matinal?
Tenho dois despertadores. O primeiro toca às quatro e cinquenta e três da manhã, e o segundo às cinco e onze. Tenho medo de horas com números redondos. Preciso lutar (não sei se contra mim mesmo, contra a cama, contra forças ocultas) para recuperar a mesma consciência e a mesma personalidade que eu estava usando na noite anterior, quando fui dormir. A luta costuma acabar por volta das seis horas. Aí leio durante uma caneca de café, o que costuma durar dez páginas. Logo em seguida, começo a escrever até mais ou menos nove horas. Nem lavo a caneca, mal balanço a cabeça por medo de que alguma ideia caia no chão. Se essa rotina funciona, o texto em que estou trabalhando vira uma espécie de “música de fundo” da minha cabeça. Faço as atividades burocráticas do dia (tomar banho, comer, dar aula, dizer bom dia/boa tarde/boa noite para estranhos e conhecidos, me interessar pela vida de gente de quem eu gosto, etc.) com certa leveza porque estar o tempo todo ocupado tentando resolver problemas de composição me distrai da mediocridade de estar vivo. Quando a rotina não funciona, por um motivo ou outro, perco o controle. Nesses momentos, já cheguei a grampear a orelha do meu pai. Felizmente para mim, sou cercado por gente extremamente tolerante, que tem paciência demais comigo. Ninguém nunca chamou a polícia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de manhã, antes de conseguir ouvir pela janela que a vizinhança está funcionando. É mais fácil viver em um mundo imaginário antes de se emaranhar no mundo real. Não tenho rituais além do café e da leitura mencionadas acima. Sinto falta de algo ritualístico de verdade, tipo rodar três vezes em volta da mesa. Acho que me ajudaria.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Um pouco todos os dias. Meta mínima de uma hora, máxima de cinco.
Como é seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não me movo da pesquisa para a escrita porque não faço pesquisa. Nunca. Sou preguiçoso e neurótico demais para isso. Se tivesse feito uma única pesquisa na vida com intuito de usar o resultado em um texto de ficção, nunca mais teria conseguido escrever um parágrafo sem checar na Wikipédia se o Brasil fica mesmo na América do Sul e se São Paulo fica mesmo no Brasil.
Alguma coisa me passa pela cabeça e não sai mais. Pode ser uma frase, uma imagem, uma possibilidade de enredo, qualquer coisa. No instante em que essa coisa aparece, sei que ela não vai mais embora. Nesse momento, digo para as pessoas ao meu redor que fiquei “grávido”. A gestação dura até que eu saiba como escrever as primeiras frases. Quando isso acontece, escrevo a história do começo ao fim, sem muitas correções ou grandes preocupações estilísticas. Chamo o resultado de zero draft. É a parte mais gostosa do processo, a única em que sinto que estou realmente “criando” algo. Depois disso, reescrevo com mais preocupações estilísticas e me acho um gênio (first draft), reescrevo uma segunda vez e me acho um débil-mental que devia largar essa história de escrever e virar dentista (second draft), aí passo a reescrever tentando consertar os problemas drafts a fio, até me convencer de que o texto ficou aceitável e que eu não tenho mais forças para mexer nele ou até me convencer de que é um horror, jogar no lixo e ir trabalhar em outro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Extremamente mal. Tenho medo de não atingir minhas metas, que se fossem um pouco mais baixas caberiam nos limites da megalomania, e me provar como fraude diante de mim mesmo, mas tenho ainda mais medo de atingir as metas e passar o resto da vida vazio, sem a única atividade que me dá alguma ilusão de fazer sentido.
Além disso, há a angústia de se ver como parte insignificante de uma tradição. Quando eu estava traduzindo Um amor de Swann, de Marcel Proust, passei, sem exagero, uma semana inteira paralisado, passava horas e horas por dia sentado na frente do computador sem escrever nem traduzir uma palavra, em pânico, pensando coisas do tipo “quem é você para traduzir Proust, para se dar uma função que já foi de gente como Mario Quintana?”.
Estudei literatura na USP, onde a gente é estimulado a tratar essa questão (e tantas outras) de maneira religiosa: os “grandes escritores” são deuses, e você é alguém que, no melhor dos casos, vai emular bem, seguir a cartilha. Esse pensamento gera uma literatura de fã-clube, que reproduz as técnicas e a ideologia do período dos tais grandes escritores e tem pouca relevância diante do agora.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Inúmeras. Reviso para além dos limites da obsessão. Uma vez, uma amiga duvidou que eu passasse tanto tempo escrevendo, foi fuçar no meu computador e ficou chocada ao descobrir que o Word creditava mais de quatro mil horas de edição a um texto de cerca de cem páginas.
Sim, quando acho que um texto já consegue andar sozinho, mostro para algumas pessoas próximas a mim, mais para ver como o texto reage a elas do que para ver como elas reagem ao texto.
Qual é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Ando com um caderninho e uma caneta no bolso da calça. Faço nele exercícios de escrita e anotações de diário pessoal todo dia. Quando tenho alguma ideia nova de ficção, preciso escrever o zero draft nesse caderninho e, de preferência, fora de casa. Como fui criado para acreditar que literatura é uma religião e que inventar contos e romances é um milagre, me sinto indigno de “sentar para escrever”. Por isso, o zero draft precisa ser feito de forma despretensiosa, como se fosse um exercício ou uma anotação de diário enquanto espero um pão na chapa em uma padaria. Depois, digito o resultado, já fazendo alterações que resultam no first draft. Aí já consigo encarar o processo como “revisão” ou “reescrita”, então o peso emocional fica menor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que do mesmo lugar de onde vêm as ideias de todo mundo que pensa. A diferença é como cada um lida com as ideias que tem. Essa semana, por exemplo, sonhei com uma mulher fazendo um discurso de agradecimento. Na minha vida de acordado, nunca vi aquela mulher e, para o bem da minha saúde mental e da dela, espero que nunca veja. Mesmo assim, eu sabia nome, sobrenome, profissão e detalhes da vida pessoal dela. Acordei pensando se ela não me serviria como personagem. Estou pensando nisso até agora, para falar a verdade. Se eu fosse estilista ao invés de escritor, talvez gastasse o mesmo tempo e empenhasse o mesmo esforço refletindo sobre inventar ou não inventar o vestido dela. Imagino que os freudianos e os místicos (o que, não raro, quer dizer a mesma coisa) acordem de sonhos assim pensando se a mulher não seria uma premonição ou uma mensagem sobre sua mãe que você enviou para si mesmo em uma garrafa que pode ser quase tudo menos uma garrafa.
Me parece que um escritor de ficção que seguisse uma dieta para se manter criativo teria resultados tão pouco convincentes quanto um comediante que fizesse algo para se manter engraçado. Ao invés de ser criativo, me preocupo com ter algo a dizer. Quando não tenho, ao contrário de boa parte dos escritores que tenho lido por aí, simplesmente não digo. Não se tenta ser criativo, assim como, para manter a analogia com o comediante, não se tenta ser engraçado – acontece ou não acontece. Santa Teresa D´Ávila não tentou ser santa; ela viveu de acordo com certos preceitos (não com a intenção de ser santificada, mas porque pareceram a ela os preceitos mais certos pelos quais guiar uma vida), foi estuprada por um anjo, e ser santa foi uma consequência, um título póstumo atribuído a ela.
Mantenho, sim, por outro lado, hábitos relacionados ao desenvolvimento da técnica de escrita. Leio muita coisa que não gosto (de Cinquenta tons de cinza a Guimarães Rosa) para analisar detalhes de estilo. Escrevo todo dia nas três línguas que uso como instrumento de trabalho, mesmo que sejam apenas anotações bobas de diário pessoal, para treinar a mão.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar a escrita dos seus primeiros textos?
Aprendi o valor de ter uma rotina diária. Fiquei mais seguro e consegui, escrevendo pilhas e pilhas e pilhas de porcaria, desenvolver uma “identidade narrativa”, uma voz que, goste o leitor ou não, é minha e serve aos meus interesses de contador e deturpador de histórias.
Não diria nada a mim mesmo porque gosto tão pouco de sugestões que tenho tendência a fazer o contrário do que me sugerem ou aconselham, mesmo quando concordo que aquele seria o melhor caminho a seguir. Desde antes de ter aprendido a ler e escrever, eu enchia cadernos inteiros de rabiscos, usando um esqueleto sem lente de óculos do meu avô, e dizia que estava “escrevendo histórias”. Tomei a decisão consciente de “ser escritor” quando tinha onze anos (lembro fotograficamente de onde eu estava, de como externei a decisão e do escárnio da minha mãe como resposta) e resolvi me capacitar antes de começar a publicar. Apesar de ter ficado um pouco ansioso durante todos esses anos, nada alterou minha decisão de não publicar até os trinta e poucos anos, até ter amadurecido, tanto em termos técnicos como em termos de visão de mundo, o suficiente para ter um repertório de histórias que valessem a pena de ser lidas. É importante pensar que toda história vale a pena de ser contada, mas nem toda vale a pena de ser lida. Eu me sentiria o pior dos charlatães se pedisse, ainda que indiretamente, para que alguém empenhasse tempo e talvez dinheiro para ler páginas e páginas que eu tivesse escrito só para posar de artista-e-intelectual, o que é a versão feia e pedante de modelo-ator-e-ex-BBB.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Livros que eu gostaria de ler que ainda não existem: os que J. D. Salinger escreveu depois de parar de publicar; tudo que vier da minha amiga Lívia Lakomy; a poesia completa de Glauco Mattoso em volume único (ou, pensando com mais praticidade, em uns três volumes), em papel bíblia, cheia de aparatos críticos e imagens; as continuações das “Crônicas” de Bob Dylan; os diários que Guimarães Rosa escreveu em Hamburgo entre 1938 e 1941.
Quanto a projetos não-começados, peço desculpas e me recuso a responder por superstição. E também por princípios: comentar “em outras palavras” sobre o que escrevi ou vou escrever sempre me passa a impressão de estar tentando embebedar alguém através de explicações sobre destilação e fermentação de bebidas alcóolicas. Para não ficar sem dar detalhes sobre a gaveta, digo que escrevi uma peça de teatro chamada “O túmulo dos Capuleto” em 2012 e gostaria de vê-la no palco, pelo menos duas vezes: uma antes de morrer, e outra depois.