Daniel Gruber é escritor, autor de “O Jardim das Hespérides” (2017) e “Animais diários” (2019), e doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De manhã sempre passo com a família: esposa, gatos e, a partir de 2020, filho. É a parte do dia em que a mente está mais descansada, geralmente usamos para conversar sobre coisas que aconteceram no dia anterior, um filme que assistimos, algum trecho do livro que lemos etc. Nos últimos anos, minha rotina em casa tem permitido esse luxo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor pela manhã, mas nem sempre consigo, porque dou prioridade para aquilo que descrevi na resposta anterior. Como meu trabalho é em casa, costumo reservar a tarde para escrever, depois de terminar as tarefas que pagam as contas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Existe aquilo que chamamos de “campanha de escrita”, que são os momentos em que paramos deliberadamente para dar forma a um livro, depois do planejamento, pesquisa, elaboração. Nesses momentos escrevo de forma mais concentrada. Tento trabalhar todos os dias durante esses períodos. Já percebi, depois de quatro livros escritos (duas coleções de contos e dois romances), que o ritmo ajuda a dar consistência à obra final. Nem sempre é possível, e nem todas as obras nascem da mesma forma, mas pelo menos no processo de edição do texto final é bom que tenha essa constância.
O romance que acabei de concluir, A Noite do Cordeiro (minha tese em Escrita Criativa), é uma narrativa linear, e foi escrita durante uma campanha de um ano e meio, ininterrupta. Por ser um romance de ambientação histórica e seguir um enredo de thriller, passei alguns anos apenas pesquisando e planejando. Não comecei até ter a estrutura quase toda organizada: personagens, cenários, acontecimentos, informações históricas etc.
Mas nem sempre é assim. Meu trabalho anterior, Paraíso original, ainda inédito, é um romance de formação com caráter muito mais fragmentário. Nesse caso, fui escrevendo sempre que dava, sempre que vinha alguma imagem, cena ou ideia na cabeça. Apenas no final, quando precisa dar um fechamento, é que trabalhei de forma mais intensa. Escrevi esse livro ao longo de cinco ou seis anos, mas não recomendo esse processo a ninguém. Em tanto tempo, as ideias vão ficando defasadas, já não penso mais como pensava há seis anos, e preciso corrigir, atualizar e reescrever o tempo todo. Nesse caso específico, a edição do texto final foi mais trabalhosa do a escrita em si.
Já no caso dos meus livros de contos, a rotina e o processo foram completamente diferentes. Os contos eram escritos à medida que vinham. A realização de cada um deles variou bastante. Alguns contos eu só precisei digitar, pois já estavam prontos na cabeça. Alguns desses textos eu escrevi em dez ou quinze minutos e mexi muito pouco ao longo do tempo. Esses são verdadeiros frutos da inspiração (por falta de um termo melhor). Outros, mais elaborados, levaram anos para serem construídos do jeito certo, para dizer aquilo que eu queria que eles dissessem.
O processo de juntá-los em um livro é quase como um trabalho de edição. Quando eu percebo que há um número razoável de contos publicáveis que constituem um tema ou um tom em comum, eu começo a reuni-los. Meus dois livros de contos, O Jardim das Hespéridese Animais diários, são temáticos. Se não for assim, girando em torno de uma proposta unificadora, eu acabo sentindo que estou trapaceando, forçando a barra.
Quando o tema unitário surge, começo a trabalhar não mais em torno dos textos individuais, e sim em benefício do conjunto. Muitos contos novos nascem a partir do tema, depois que ele é definido. Já busquei textos muito antigos, que achei que ficariam guardados na gaveta para sempre, quando percebo que eles dialogam com a obra. No livro que lancei este ano, Animais diários, acrescentei um conto que eu tinha escrito nove anos atrás.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Existe um perigo na pesquisa que é o de inibir a imaginação. Quanto mais o escritor se cerca de informações da realidade objetiva (para não usar o termo “real”, que é sempre traiçoeiro), mais ele tende a buscar o realismo. Quer dizer, pelo menos para mim acontece isso. Às vezes a pesquisa inspira, outras vezes ela trava a ideia inicial.
No meu romance anterior, eu queria que um período da vida da personagem se passasse num colégio interno, no final dos anos 90. Algumas pessoas me questionaram se ainda haviam colégios internos nessa época, mas eu não dei muita importância a essa questão e escrevi as cenas exatamente como tinha imaginado. Eu não sabia como era um colégio interno de verdade, só o que tinha visto em filmes e ouvido dos relatos de pessoas mais velhas. Fui pesquisar depois de já ter escrito. De fato, existem colégios internos até hoje, depois eu descobri, e eles funcionam mais ou menos como eu imaginava. Fiquei muito feliz com isso, e certamente ter pesquisado a posteriorifoi melhor, pois se eu tivesse buscado informações antes, talvez desistisse de contar aquela história.
Para meu romance mais recente, que tem ambientação histórica, a pesquisa aconteceu antes, durante e depois da escrita. Na verdade, a própria ideia nasceu de uma curiosidade de pesquisador, do fato de que a presença da Inquisição portuguesa no Brasil colonial e as ressonâncias da caça-às-bruxas europeias por aqui foram pouco conhecidas e quase não apareceram na ficção. Mas da pesquisa inicial até o enredo do livro eu inventei muita coisa. Algumas situações eu fui transformando à medida que a pesquisa avançava, outras eu apenas dei uma amenizada e reivindiquei a licença poética. Fazer literatura não é o mesmo que fazer ensaio. O que deve prevalecer é a mensagem humana presente na obra, e essa mensagem deve chegar ao leitor de forma imaginativa e original. A correlação com a realidade objetiva é apenas acessória.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Uma vez um escritor me falou que a melhor coisa a fazer quando não se consegue escrever é justamente escrever. Quer dizer, ir escrever outra coisa, para arejar a cabeça. Normalmente funciona. Ler antes de sentar na frente do computador também costuma ajudar. É claro que o fantasma da Página em Branco sempre aparece, mas, com o tempo, quando o escritor é dedicado ao seu ofício, ele aprende a contornar. Uma questão importante é diminuir sua própria exigência diante dessas situações. Simplesmente escrever, sem cobranças de qualidade, escrever feio mesmo, dolorosamente, até a página ficar cheia de palavras. Depois você apaga o que está ruim e sempre encontra uma ou outra coisa boa no meio do lixo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou bem perfeccionista. Não queria ser assim, mas é meu perfil. Eu reviso muitas vezes antes de mostrar a alguém, pois acredito muito numa primeira impressão de leitura. Imagino que, se alguém ler a primeira versão de um texto ainda imaturo, ficará sempre com uma opinião ruim sobre aquilo, não importa quantas vezes eu melhore o texto e a pessoa volte a lê-lo. Mas claro que isso não tem fundamento algum, provavelmente é só uma armadilha da minha cabeça.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu adoraria escrever à mão, já tentei algumas vezes. Escrevi dois ou três contos inteiros no papel e a qualidade é superior, você tem uma dimensão visual do texto. Mas simplesmente não dá, demora muito. Sou muito ansioso. Uso papel e caneta apenas para fazer notas. Faço bastante anotações enquanto leio, geralmente à noite, depois passo tudo para o computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Gostaria de dizer que tenho métodos únicos para criar, mas em geral só leio bastante mesmo, e depois sento para trabalhar. Às vezes, tomar um café e organizar o ambiente de trabalho ajuda. Mas eu me considero mais esforçado do que criativo. Sou bastante racional nesse sentido.
Normalmente meu único cuidado com relação ao aspecto criativo é, durante a pesquisa de algum livro, me cercar de referências ao assunto que estou abordando. Minha esposa fica louca com isso, pois sabe que quando estou numa campanha de escrita eu só quero ler determinados livros e assistir a determinados tipos de filmes e séries. Não tenho do que reclamar, ela é muito parceira nesse sentido. No último ano, por exemplo, eu só queria assistir a filmes de terror.
Outra questão é a reflexão constante. Não gosto de sentir que estou dominando o assunto, pois geralmente é uma prerrogativa falsa: nunca dominados nada, na verdade, e sempre temos o que melhorar. Busco constantemente novas variáveis para a ideia inicial de um texto: e se terminar desse jeito e não daquele? E se essa personagem fizer tal coisa em vez daquela outra?
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que não diria nada. Talvez dissesse apenas para não sentir tanta ansiedade em publicar. Não me arrependo de nenhuma etapa da minha trajetória, nem mesmo dos inúmeros romances que comecei e não terminei. Quanto mais textos você jogar fora, melhor escritor você será amanhã. Estamos tão longe do Nobel que a carreira de qualquer escritor brasileiro estará sempre no início. O jeito é curtir o passeio.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Isso aconteceu no meu último projeto. Tinha muita vontade de ler um romance sobre caça-às-bruxas no Brasil. Como não existia, decidi escrevê-lo.
Para o futuro, tenho vontade de escrever uma história sobre as origens biológicas e antropológicas do ser humano: um cientista se encontrando com seu ancestral primitivo. Seria uma história recheada de fatos científicos. Tenho muito interesse nesse tema, mas ainda demanda de muita pesquisa.