Daniel Francoy é escritor, autor de “Identidade” (Editora Urutau), um dos vencedores do Prêmio Jabuti no ano de 2017 (poesia).
Como você começa o dia? Você tem uma rotina matinal?
A manhã já traz uma primeira leva de tarefas cotidianas que eu e a Ana desempenhamos juntos, cada qual com as suas especialidades. Descer, limpar a sujeira dos cachorros, passar as roupas que serão usadas durante o dia, colocar a água para ferver e passar o café, preparar a mesa, tomar um café um rápido e simples, e finalmente sair de casa. Trabalho numa repartição pública em Brodowski, o que dá uma viagem de carro que dura aproximadamente 40 minutos. No caminho, escuto música. É comum eu ir pensando em algum poema que eu escrevi ou que estou escrevendo. O resto da manhã é ocupado por obrigações de trabalho.
Em que hora você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Infelizmente, não posso escolher a melhor hora para escrever: tem de ser durante a noite. Após a janta, a depender das obrigações do dia, eu costumo ter um intervalo variado de tempo livre: às vezes meia hora, noutras vezes o resto da noite. Nos finais de semana e feriados, com mais tempo livre (mas não muito) gosto de escrever durante as manhãs ou após o almoço, e aí raramente escrevo durante a noite. Enquanto escrevo, não escuto música, tento estar limpo, com uma roupa confortável e propícia à estação, em ambiente ventilado, sem estar com fome ou sede, sem estar atravessado por qualquer sentimento extremo (raiva, amor, cansaço, desejo etc.).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou em processo de escrita, digo, quando estou escrevendo um poema ou com a necessidade muito de grande de escrever um poema, quando estou revisando os meus textos e tenho um prazo para entrega, quando sinto que o que escrevo começa a se organizar e que desta organização pode nascer algo maior – talvez um livro –, então fico mais inquieto, com um sentimento de urgência, de modo que subo correndo para o quarto de escrever assim que consigo e tento fazer o melhor que posso: se não há um prazo para a entrega do texto, então a meta diária é o sentimento de que escrevi o melhor que podia. Se estou num período calmo, tateando ideias em busca de um tema, ou então escrevendo textos que não dialogam entre si, aí fico menos tempo no quarto de escrever. De todo modo, não passa um dia sem que eu escreva ou me dedique a algum trabalho de revisão. E ainda há aquelas anotações que surgem dos acidentes do dia. Algo que vejo na rua, algo que me ocorre subitamente. Quando isso acontece, tento fazer apontamentos para retomar depois, ou então escrevo uma curta nota em prosa, geralmente direto no smartphone, assim que consigo um tempo (pode ser na mesa do restaurante, após o almoço, enquanto espero a água do café ferver, enquanto estou na fila do mercado, e por aí vai). Geralmente, o que sai é algo mais intuitivo. Um texto cujo sentido se revela enquanto escrevo, quase no improviso. Isso também é importante para mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Prefiro falar em processos de escrita, no plural. Não acredito que exista um único método de construção. Cada texto se impõe de um jeito, a partir de uma necessidade própria. Então, tentando responder a pergunta da maneira mais breve e com a maior precisão e abrangência possível, digo que à qualquer processo de escrita é essencial a compreensão do que estou escrevendo. Identificar se é algo que nasce de um rompante, que não precisa ser exaustivamente polido, limado; identificar a linguagem que deve ser empregada, se é algo mais próximo da língua do dia a dia, se é algo que vai dialogar com algum escritor de eleição; se é um conto, uma crônica ou um poema; se o poema exige um ritmo de versos longos ou a marcação dos versos curtos; se é necessário agressividade ou doçura, violência ou desconsolo, revolta ou exaltação. Identificar se a arquitetura do que estou escrevendo é mais intrincada, exigindo mais cuidado, revisão. O processo de escrita, pelo menos para mim, é atravessado pelo processo de compreensão daquilo que escrevo, daquilo que pretendo escrever, e ter o arsenal necessário, o instrumento adequado para satisfazer ao impulso da escrita. Às vezes você precisa de um martelo, e então a sua linguagem tem a de ser a dos martelos. Noutras vezes, o vento basta, e aí você precisa saber se mover entre véus de transparência. E a ponte entre a pesquisa e a escrita não é muito diferente do que disse acima: eu preciso compreender o que vou escrever, compreender o que o texto exige. Quando obtenho a compreensão, estou pronto para começar.
Como você lida com as travas da escrita, com a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Se entre mim e a literatura surge um muro, aí cabem algumas considerações: é um muro alto? é um muro com cacos de vidro na parte mais alta? é um muro que sempre esteve aqui, me impedindo de ir além? o que preciso para derrubar esse muro – socos, dinamites, o vento de uma manhã propícia? é imperioso derrubar esse muro agora ou é melhor esperar o amanhã, esperar que as suas fundações sejam engolidas pelo próprio preso? A trava da escrita talvez seja o lado não iluminado do trabalho de escrever: surge quando eu quero produzir às cegas, na marra, confundindo a compulsão por escrever com a necessidade de escrever, e aí há uma resistência natural do texto. Quando o que pretendo escrever está suficientemente claro, não há travas. Quanto à procrastinação, é algo que não me afeta muito. Não hoje, pelo menos. Eu sinto que perdi muito tempo quando jovem: desperdicei muitos anos de estudo andando para cima e para baixo, sonâmbulo, e tomei uma série de decisões que me afastaram da literatura – estudar Direito, dedicar vários anos à preparação para um concurso público, optar por viver numa cidade provinciana, longe de onde a literatura acontece. De uns cinco anos para cá, com as mudanças que foram surgindo, com o acúmulo de responsabilidades, imerso numa rotina que consumia – e ainda consome – a maior parte do tempo do meu tempo criativo, então eu senti que estava ameaçado, que se eu me mantivesse inerte a consequência seria um afastamento irreversível da literatura, e então fiz um movimento na direção contrária, começando a esquadrinhar e organizar os meus dias de modo a não perder o privilégio de ainda escrever. E a minha natureza metódica privilegia os projetos longos. “A Invenção dos Subúrbios”, que lanço em breve pelas Edições Jabuticaba, reúne anotações feitas ao longo de cinco anos, e que levei dois anos organizando, ordenando, sequenciando, revisando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Até pouco tempo atrás, o meu processo de revisão era bastante econômico. Após dar o texto por encerrado, apenas me certificava se não havia algum erro, durante uma leitura mais atenta, mas nunca atenta o bastante. De uns anos para cá, tenho trabalhado melhor na revisão, volto ao mesmo poema inúmeras vezes, e a revisão não é mais limitada a procurar erros e gralhas. Agora, revisar é reescrever, é muitas vezes cortar o poema pela metade, ou então mudar totalmente determinado verso, e até estabelecer aproximações e diálogos com outros textos, o que faço de maneira acentuada quando tenho em mente um projeto maior. Não costumo mostrar o que estou escrevendo antes de pronto, mas às vezes acontece, principalmente quando fico em dúvida sobre a qualidade do texto. A minha interlocutora mais constante é a Ana, minha esposa.
Como é a sua relação com tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha dependência do computador era tamanha que cheguei a acreditar que sem o computador não conseguiria escrever, e só comecei a utilizar os cadernos por necessidade. Há uns anos atrás, vivi uma breve rotina de viagens mais ou menos constantes, e eu percebi que levava o computador comigo apenas para escrever, o que não era muito prático. Então resolvi viajar com um caderno para testar se funcionaria, e funcionou muito bem. Há poucos meses, meu computador teve um problema, e ficou mais de 30 dias sem poder ser utilizado, e durante esse tempo eu usei apenas o caderno e foi melhor ainda. Duas curiosidades: quando escrevo no caderno, invariavelmente escrevo poesia, e o texto ganha outra identidade quando escrito no caderno – uma toada mais lenta. É como se eu tocasse a epiderme das palavras com a ponta dos dedos, sentindo a verdade que elas encerram, o significado que podem assumir. E eu gosto dos cadernos porque ele se reveste de uma natureza de espólio. Mesmo um caderno repleto de frases soltas, de versos desencontrados, de rasuras, mesmo copiando o mesmo poema diversas vezes – esse caderno adquire uma natureza de documento vivo. Muitas vezes, devaneio pensando que os cadernos que vou preenchendo é o presente mais íntimo que poderia oferecer a um filho que ainda não tenho. Há quem deixe um relógio de ouro, um anel de diamantes, um jogo de chá, um cálice de cristal, uma penteadeira: eu penso que só poderei deixar o caderno (e lembranças desencontradas de viagem: um mapa com itinerários grifados com a caneta, um bilhete de metrô de outro país, um ingresso de museu, uma cédula de dinheiro estrangeiro).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei exatamente de onde surgem as ideias. Talvez de um sentimento de observação constante, de espreita ininterrupta. A minha relação com o outro, com a cidade, com o país. Muitas das minhas ideias surgem desses embates, e de diálogos comigo mesmo: somos o tempo atravessado por um fluxo de sensações, de ideias, de sentimentos, como um discurso sem palavras, uma canção sem melodia, e de repente algo desse diálogo vaza, goteja na forma de uma frase pronta, de uma imagem que se repete. Tento estar atento o tempo todo: eis o meu hábito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou o processo de revisão, que se tornou mais consciente, mais contínuo, numa espécie de releitura constante. Passei os últimos meses revisando poemas escritos entre 2011 e 2013 e nunca aproveitados em livros, e essa revisão me rendeu alguns dos poemas mais interessantes que escrevi esse ano. Agora, gostaria de revisar um falhado romance de formação que escrevi em 2005. Há algo ali que pode ser aproveitado, tenho certeza. Que conselho daria a mim mesmo? Talvez eu dissesse para estudar mais, estudar Letras em vez de Direito, mas isso diz respeito a escolhas de vida, e não propriamente à literatura, e o que escrevo decorre diretamente das escolhas que fiz. Então é o caso de dizer que, se eu visse o Daniel de vinte anos subindo uma rua da Vila Tibério – magro, desengonçado, alucinado por suas primeiras vertigens e textos –, eu provavelmente atravessaria para o outro lado para evitar o encontro, e talvez o seguisse por um quarteirão ou dois, como se ainda fosse ele, e depois deixaria que ele seguisse com a liberdade que sempre tive.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de arrematar um livro de contos com o qual flerto há vários anos. Um livro de contos que fosse uma declaração de guerra contra os círculos sociais dos quais participo. A vida hoje existe um pacto com a covardia mais abjeta, e gostaria de revogar esse pacto, de maneira irrevogável e definitiva, no livro que ainda não escrevi, no livro que comecei e não consigo terminar. Ainda há muita auto-indulgência em mim, e essa auto-indulgência não é nada mais do que um sentido de autopreservação. Conseguirei dar o salto necessário, ser completamente radical e inconsequente apenas uma vez? Duvido. E não, não sei que livro gostaria de ler e ainda não foi escrito. Mas sei que há livros que gostaria de ler, que foram escritos, e ainda não li. É o suficiente, não?