Daniel Barros é escritor e professor da Escola Superior de Polícia de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minhas primeiras atividades são no quintal de casa: cuido dos passarinhos, alimentos os cães e depois as galinhas, só então tomo o café da manhã e aí trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não diria que um ritual, mas como dizia o velho Hemingway: Escreva bêbado, revise sóbrio, brincadeiras à parte, escrevo melhor à noite, sobretudo, nas madrugadas, mas talvez não seja importante o período, mas a solidão, a tranquilidade, escrever, para mim, é muito íntimo e, portanto preciso desse afastamento. Acompanhado de um do velho J&B (risos)
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Um conselho dado por muitos escritores: escreva todos os dias, nem que seja para mudar uma única vírgula, mas conviva todos os dias com seu texto. Não, não me imponho metas, a não ser a anterior. Acredito no esforço do trabalho do escritor, mas acredito muito mais na inspiração. Forçar a escrita fará com que ela se torne também uma leitura sem prazer. E não posso fazer isso com o leitor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não crio roteiros, anotações, faço no dia a dia, e as uso ou não. Mas tenho uma coisa certa antes de iniciar um livro: já sei seu final. Nunca começo um livro sem saber como terminará. Quanto às pesquisas, são muito importantes, bem como as consultas a pessoas com conhecimento sobre os temas abordados. Para isso o escritor tem que ter humildade. Li um livro de um famoso jornalista/escritor em que ele comete erros bestas sobre armas, simplesmente pelo fato de não consultar um profissional no assunto. Então se vou falar sobre procedimentos médicos, consulto um médico amigo, sobre decisões judiciais a um juiz e assim por diante. Escrever sobre o que não sabe, só torna o escritor um medíocre ou um medíocre escritor (risos).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Paro de escrever quando ainda tenho o que dizer, assim saberei como continuar e ficarei trabalhando as ideias na cabeça,podendo assim melhorá-las. O medo é algo permanente no escritor. As dúvidas são necessárias, afinal se o escritor acha que já atingiu o máximo não evoluirá. Portanto esse é meu maior medo, não evoluir. Mas nem sempre um bom trabalho agrada ao público ou a crítica, às vezes agrada a um e não ao outro. O maior crítico do escritor deve ser ele mesmo.
Quando comecei a escrever Canto Escuro disse para mim mesmo que se não fosse meu melhor livro, eu não o publicaria. E de fato, quase não saiu. Diferente dos outros, que são agradáveis de ler, Canto Escuro tem um enredo denso e triste. Não diria difícil de ler, mas inquietante (o que me faz lembrar O casamento, livro de Nelson Rodrigues e, guardada as devidas proporções – pois jamais ousaria comparar-me ao mestre Graciliano Ramos – ao Angústia, um livro que não é para qualquer um ler, nem em qualquer momento). Portanto peço paciência aos leitores, mas não poderia deixar de expor toda a aflição vivida pelo personagem ao deparar-se em sua repartição com um suposto esquema de corrupção, sentir-se impotente diante dos fatos e descrente com o rumo dos acontecimentos. Paralelo a este processo, ele vê seu casamento ruir e sua vida perder o sentido.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
(Risos) essa foi boa. Reescrevo mil vezes, não tenho um limite de reescritas. Meu último livro: Canto Escuro, foram quarenta e oito meses raspando, limando a lâmina para descarnar cada excesso, cada gordura, cada desejo de panfletar, de mostrar a mim e não o personagem. Bater as vargens do feijão até não sobrar palha, apenas a semente fecunda e rica a fornecer-nos a energia necessária à literatura pura e única, não na forma – como muitos tentam e acabam descambando para conceituar a arte pela absoluta incapacidade de criar – mas no conteúdo verdadeiro, singelo e real, dentro de tudo que a ficção permite.
Nesse último livro, foram mais de cinco mil palavras cortadas desde a primeira escrita a te o ponto final.
Sim, submeto meu livro a leituras críticas, não a “profissionais em leitura crítica”, mas a bons escritores e amigos que saibam dizer a verdade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computar, mesmo porque se escrevesse à mão (lembre-se de disse: escrevo borracho – risos -) nada entenderia depois. Às vezes não entendo minhas anotações (riso).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Da observação do cotidiano. Dos sentimentos e da verdade. Contar o que nunca foi contado. Como já falei, inovar na criação e não na forma. Certo dia assistindo um programa na TV, vi uma escritora relacionar os cinco livros que marcaram sua vida, não acreditei, um dele era o seguinte: começava com uma linha torta, como eletrocardiograma, e a cada página ia modificando até formar a palavra LINGUAGEM OU LITERATURA, não lembro, mas pelo amor de Deus, dizer que isso é arte é brincadeira! Aos que acreditam na arte conceitual, respondo com uma frase de Ferreira Gullar: Se tudo é arte, nada é arte.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Primeiro não teria publicado meu livro inicial. Teria começado pelo segundo (risos). O que aprendi foi que um livro tem seu tempo, e precisa desse tempo para apurar, como fazer pão: deixe a massa descansar para depois ir ao forno, como o livro é mais ou menos assim. Depois que terminar as primeiras escritas, deixei-o de lado… Meses depois ou anos, volte a ele, só assim verá o que precisa para melhorá-lo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho na mente um livro sobre homicídios de homossexuais, mas já escrevi dois livros depois que tive a ideia dele e talvez escreva outro, sobre os canaviais de minha terra (Alagoas) antes de partir para esse projeto.
Existem tantos livros que ainda não li, que não sonho com o inexistente. Gostaria de ler tudo de Jorge Amado, Proust, Bukowsk, Philip Roth, Guimarães Rosa, Nélida Piño, Leonardo Padura, Ivan Marinho, Lêdo Ivo, Mário Quintana… enfim, não tem fim.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Na realidade inicio meus romances a partir do momento em que tenho o final. Não monto nenhum roteiro escrito, entretanto tenho na memória a ideia geral. À medida que escrevo, as estórias vão surgindo e tomando rumo. Este rumo não é previsível, por isso saber o final é uma técnica que utilizo, para que eu não perca a direção. Depois descobri que este método era ensinado por Gabriel Garcia Marques em suas oficinas literárias em Cuba. Deixar fluir é o que acontece no decorrer do trabalho; têm personagens que parecem ter vida própria e se tornam com maior ou menor importância do que o previsto. Como aconteceu com Carolina e Severina, personagens do meu terceiro romance Mar de Pedras, que me cativaram e, portanto, cresceram no decorrer da estória. Quanto ao que é mais difícil, para mim o início sem dúvida.
Como você organiza sua semana de trabalho?
Sempre escrevi a noite. Hoje escrevo pela manhã, pois tenho que sobreviver a tarde. Mas o importante para mim é escrever todos os dias. Abrir o manuscrito nem que seja para alterar uma vírgula. Isso sim, é fundamental.
Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não. Trabalho apenas em um projeto. Só começo outro depois de o anterior estar no prelo. Uma única vez trabalhei em dois projetos: recebi uma proposta de transformar Enterro Sem Defunto, meu segundo romance, em série de TV, nesse tempo estava escrevendo Canto Escuro e parei e iniciei a continuação de Enterro Sem Defunto, que terminei em pouco menos que 4 meses, então retomei o projeto em que trabalhava. Infelizmente, com o atual desgoverno, praticamente todos os projetos culturais permanecem parados e os tais roteiros também.
O que motiva você como escritor?
É algo que não encontro explicação. Escrever é uma espécie de vício, depois que começamos não conseguimos parar. E por incrível que pareça é uma profissão sofrida; desgasta, consome e inferniza nossas vidas. Quem pensa que é fácil e glamourosa a vida do escritor, não sabe o que é ser escritor. Carlos Heitor Cony costuma dizer que se voltasse numa próxima reencarnação poderia ser qualquer coisa, menos escritor. Philip Roth disse que a maior alegria de sua vida foi aposentar-se como escritor. Você dorme pensando no que está trabalhando, acorda pensando, trabalha, trabalha… conclui, revisa, reescreve, revisa, reescreve… e depois quando publica não sabe se ficou como deveria, isso com um escritor consagrado mundialmente como Philip Roth, imagine conosco, pobres mortais!
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Desde muito cedo que escrevo: periódicos na escola, na faculdade, etc., mas tornar-me romancista aconteceu após ler Adeus às armas de Hemingway e fiquei encantado com a obra e passei a ler tudo dele, tanto literatura como biografia. Depois Jorge Amando, Graciliano Ramos, Lêdo Ivo. A leitura desses grandes escritores aliado à influência de meu irmão Ivan Marinho, poeta, contista e artista plástico, fizeram-me iniciar minha carreira publicando O Sorriso da Cachorra em 2011.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Estilo próprio? Já tenho 4 livros publicados e acredito que até o último estarei aperfeiçoando e buscando. Quanto aos escritores que me influenciaram, acredito que respondi na resposta anterior.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
1º Sortilégio possível – Ivan Marinho – poesia, editora BAGAÇO-PE 2014.
Quando se vê as acrílicas sobre telas, cuidadosamente emolduradas em marchetaria, numa trama que unifica quadro (ou círculo seria melhor?) e moldura, pode-se pensar que ali tudo estaria consumado. No entanto, para nossa surpresa, ou espanto, como trataram os críticos Mário Hélio e João Carlos Taveira, Ivan Marinho nos presenteia com a força de sua pintura. Pinturas de quem, por dentro, vive o fenômeno das manifestações culturais do povo, da nação, da humanidade amalgamada no coletivo.
Mas não fica por aqui sua provocação: Invertendo a ordem mais previsível, ao invés de ilustrar seus poemas com imagens, ousou ilustrar suas imagens com poemas. Isto mesmo!
Depois de filtrar seu olhar sobre o mundo, traduzindo-o plasticamente, o poeta-pintor (ou seria pintor-poeta?) tateia com a varinha do tempo, fundindo sentimentos e conceitos com uma mestria que poderíamos chamar de SORTILÊGIO POSSÍVEL.
2º Ninho de Cobras – Lêdo Ivo – prosa. Aqui não vou falar do livro, mas do autor:
Muito provavelmente num dia quente e ensolarado, pois assim costuma ser neste mês, nasce em 18 de fevereiro de 1924, em Maceió, capital do Estado de Alagoas, uma criança que muito orgulho dará a alguns de seus coestaduanos. Digo alguns, porque suas palavras honestas, firmes e contestadoras causaram ódio e desprezo à elite de Alagoas.
Filho de Floriano Ivo e Eurídice Plácido de Araújo Ivo, o menino Lêdo Ivo, que logo se tornaria um dos maiores representantes da Literatura Brasileira, aos vinte anos estreia com As imaginações, livro de poesia de 1944. No ano seguinte, lança Ode e Elegia, recebendo o Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. E assim teve início a belíssima carreira literária de um mestre, que foi contista, ensaísta, cronista, romancista e, sobretudo, poeta, um fantástico poeta.
Em 1940, depois de ter feito o primeiro e segundo graus em sua cidade natal, transfere-se para Recife onde participa em 1941 do I Congresso de Poesia do Recife. Em 1943, o autor de Ninho de Cobras se muda novamente, desta vez para a cidade do Rio de Janeiro. Ali se matricula na Faculdade Nacional de Direito do Brasil. Paralelo às atividades na faculdade, passa a colaborar em suplementos literários e a trabalhar como jornalista profissional na imprensa carioca.
Em 1949, forma-se em Direito, nunca exercendo a profissão. Prefere continuar no jornalismo. Dois anos antes estreia como romancista com Alianças e recebe o Prêmio da Fundação Graça Aranha pela obra. Ano também em que pronuncia no Museu de Arte Moderna de São Paulo a conferência “A geração de 1945”.
O romance Ninho de cobras é publicado em 1973, mas Lêdo Ivo não ousava chamá-lo de romance, referindo-se às atuais “circunstâncias que vivemos num tempo estético marcado pela emergência de gêneros ou textos híbridos, sem nome”. E continua: “Escrevi uma história mal contada, como as narram os ciganos e ladrões de cavalos de minha terra natal.” Havia na época razões de sobra para que usasse essa técnica de narrativas partidas e colisivas, pois foi escrita “… numa época de ditadura e, por sua vez, se situava também, historicamente, numa outra ditadura, a do Estado Novo de Getúlio Vargas”. Tudo acontece num mundo de terror e perseguição, em que nunca se sabe a verdade. Essa técnica se ajustava ao clima estético de então, período de ditadura, onde a dubiedade, a fragmentação do texto sempre refletia que “… o deslocamento dos pontos de vista e os focos narrativos abalaram para sempre a austera linearidade do romance praticado nos últimos séculos”.
Personagem principal de Ninho de cobras, a raposa fora baseada numa memória de infância do autor, quando presenciou, no sítio onde morava, o assassinato de uma raposa, acusada, supostamente, de roubar galinhas, e morta a pauladas. Dando-lhe desde menino, diante deste episódio, consciência para melhor observar as injustiças e perseguições. A cena fica em sua memória para posteriormente voltar num dos poemas de Finisterra (Prêmio Luísa Cláudio de Sousa — poesia — do PEN Clube do Brasil, Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal e Prêmio Casimiro de Abreu do Governo do Estado do Rio de Janeiro.). No texto, a raposa retorna da floresta e faz sua aparição.
A manhã raiante se manchava
Do sangue escuro da raposa
Morta no chão memorável.
A raposa perambula pelas ruas de Maceió e é “novamente” morta a pauladas por policiais. As críticas que surgiram após a publicação revelam que a obra é sempre ambígua e controversa, e marcada pelo espírito dos escritores nordestinos que vivem num país dividido entre a riqueza e a miséria. E cito mais uma vez o autor de Ninhos de cobrasanalisando sua própria obra: “… nós, romancistas do Nordeste, denunciadores incômodos e incorrigíveis da pobreza e da injustiça, dos pesadelos e das calamidades, sempre nos distinguimos de nossos confrades do Centro e do Sul pelo nosso ar de estrangeiros, de emissários dessa interminável Oriente que é a nossa terra natal.”
O espírito alegre, honesto, espirituoso e ao mesmo tempo combativo e justo nunca deixou o nobre alagoano. O que ficou claro em um dos seus últimos discursos durante uma reunião da Academia Brasileira de Letras, em 4 de agosto de 2011. Lêdo Ivo leu aos colegas um libelo, um manifesto contra a inquietação da plateia promovida por seu desafeto, o também imortal Eduardo Portella, durante um discurso que fez dias antes, numa conferência em homenagem a Gonçalves de Magalhães. Encerrou seu pronunciamanto citando Lucrécio: “É doce envelhecer de alma honesta.”
O Brasil perde seu ilustre filho, mas, sem dúvida alguma, é Alagoas que mais sofre, por perder tão nobre, alegre e combativo filho, num momento em que o Estado passa por tamanha necessidade de homens com tal bravura e suprema honestidade, como foi, e ainda é o imortal Lêdo Ivo.
3º Clarice: A Última Araújo – Paulo Souza – Editora Penalux 2018.
Para quebrar regras.
Costuma circular no meio literário que o crítico é sempre um escritor frustrado. Entretanto Paulo Souza, blogueiro, contista e crítico literário, surge para quebrar essa regra. Em seu romance de estreia, Clarice: A última Araújo, o autor nos remete a um mundo místico de querubins e anjos. O que poderia ser apenas mais um livro de fantasias e crendices, não é, não, meu caro! A estória é engendrada entre o encanto de um querubim por uma linda mortal, e isso marca o enredo da trama, mas não apenas, apresenta também temas importantes e verdadeiros como: prostituição infantil, corrupção, hipocrisia, amor e política.
O sonho de conhecer a chuva faz a pequena e formosa menina Clarice ser ludibriada pela experiente cafetina, Joana Critério, que a leva para morar na capital cearense. A ilusão prometida de uma vida melhor é argumento comum, usado por aliciadores de menores para iniciar meninas no submundo da prostituição infantil. A menina sonhadora fugia da praga da seca provocada, segundo se dizia, por uma de suas antepassadas que, ao se deitar com um querubim, trouxe a maldição para sua cidade natal, Novo Oriente, que, desde o acontecido, nunca mais recebera uma só gota de água dos céus. Além da maldição da seca, outro fenômeno ocorrera nos Araújo, família de Clarice: só nasceram mulheres, que de tão lindas encantavam e enlouqueciam todos os homens que com elas se deitavam. Então para todos da cidade, graças às fofocas da viúva Das Dores, os Araújo eram os verdadeiros culpados pela seca.
Paulo Souza soube, com mestria, dar ritmo e fluidez às palavras, que, quando lidas, surgem como música aos nossos ouvidos. Uma leitura agradável e envolvente nos faz entrar no mundo mágico e dolorido de Clarice.
Não há duvidas! Paulo Souza, com seu romance Clarice, fará parte do time dos melhores romancistas dessa nova geração de autores nacionais.