Daniel Avelino é poeta e compositor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa a qualquer hora, sem dia, sem data, com o espanto e a decepção do mendigo que acorda para os 360 graus de sua realidade acusatória. Minha rotina se mantém em um estado de constante deslumbramento – o que é um tanto sufocante, confesso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Você está entrevistando um artista em hibernação, se não de fato morto. Estou com trinta anos e não produzo nada há seis anos. Tenho entendido esse hiato como o recuo do mar antes da vinda do tsunami, um período necessário para me reciclar, reinventar como artista e ser humano. Não tenho um ritual, o ritual é que me tem, me entende, sabe o instante. A arte age em mim e eu ajo na arte em algum tipo de experiência e processo metafísicos, algo sobre o qual eu não tenho qualquer controle real.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No período de dez anos em que estive produzindo (mais ou menos dos 14 aos 24 anos), havia momentos de muita produtividade alternados com outros de vazio absoluto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É difícil conseguir escrever ou compor algo que me agrade. Normalmente um poema bom nasce de três, cinco, dez ruins. Existem também exceções em que surge algo espontaneamente de uma só vez, como que psicografado. Mas é nesse jogo de erro e acerto que as ideias vão surgindo, se moldando, clareando na minha mente até eu chegar a algo que se possa dizer original. Estou sempre em busca do original, do novo, diverso, não só na alternância de um livro para o outro como de um poema para o outro, de uma música para a outra. Cada criação deve ser o seu universo próprio, com suas respectivas leis físicas e sentidos possíveis. E tudo surge em mim dentro de um redemoinho de muito barulho e desordem. Minha poesia vem principalmente da música; a possibilidade de liberdade no uso da forma veio sinestesicamente para mim como a melodia e a harmonia do poema. Com um poema, meu objetivo é transmitir ao leitor a mesma carga emotiva que uma música pode causar em um ouvinte.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Hoje lido melhor. Como disse, faz seis anos que não crio nada. No início a falta dessa válvula de escape da catarse artística era muito dolorosa, mas me sinto cada vez mais preenchido de ideias e novas experiências. A própria simbologia contida nesse sobrevoo da primavera dos trinta anos, tudo parece estar convergindo para um mesmo ponto de semeadura, o ponto que insiste em renascer todos os dias e é o meu eixo central: a realização, em todos os campos da existência, na floração artística.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Inúmeras vezes, sou extremamente perfeccionista. Não tenho problema em mostrar para outras pessoas antes de o poema estar totalmente concluído, até porque na verdade nunca está. Há sempre algo aqui e ali, numa visão do todo da minha obra em andamento, que quero mexer, amadurecer etc. Acho que só vou poder dizer que os poemas estão 100% prontos uma vez que houver um lançamento, o que ao que tudo indica acontecerá em breve. Quanto à música, estou começando a desenvolver um novo projeto de banda, dar uma roupagem diferente da sonoridade que eu fazia ao partir para arranjos mais elaborados e ritmos mais “tropicais”, mas sem perder a energia e a sujeira antes características do formato power trio.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como em muitos dos meus poemas lido com a espacialidade da página, o aproveitamento do sentido da palavra como objeto, sinto mais liberdade escrevendo em cadernos ou qualquer folha em branco que estiver à mão no momento da inspiração. Ao passar para o computador uso um programa que disponibiliza os recursos adequados para lidar com a palavra do modo como faço, nessa etapa então procuro reproduzir o mais fielmente o que consegui imaginar e fazer à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Creio que ideias surgem do que há no exterior filtrado pelo que há no interior, ou basicamente isso. Enfim, dois polos sob o quais tenho nenhum ou pouco controle.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meus escritos foram se modulando de acordo com minhas mudanças de entendimentos, perspectivas, valores, nuances de momentos de vida. De algum modo, lá atrás, eu me impus a missão de um garimpeiro que adentra a mina de ouro. Nessa mina, quanto mais fundo se vai mais ouro se encontra, mas, como em uma espécie de túnel sem fim, há uma força gravitacional patológica que te suga para baixo cada vez mais, na medida em que você se afasta da entrada na superfície. A partir de determinado ponto não há mais ouro, nem luz, nada, mas valeu a pena a jornada por todo ouro coletado e partilhado. Bem, mas tenho descoberto que no fim do túnel não há um fim, mas outro começo, e assim sucessivamente. Eu não me arrependo do sofrimento. A verdadeira alegria é aquela que aceita o sofrimento. A luminosidade de quem não ignora a escuridão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pretendo me afastar cada vez mais da necessidade do uso da forma. Para isso estou lendo novos autores, buscando novas saídas. Portanto há uma busca de renovação tanto na poesia quanto na música. Sobre o livro que gostaria de ler e ainda não existe, não vou me aventurar em ilações de tal natureza sobre adventos futuros… A princípio parece a mim que seria assim como desejar ler um jornal antes de Gutenberg.