Dailza Ribeiro é escritora, cantora e compositora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Demoro muito para esquentar o motor depois que acordo. Antes de abrir os olhos, faço uma oração de agradecimento. Como sou muito pipa avoada, mantenho uma rotina para me organizar. Levanto, bebo água morna, faço e devoro um mingau de aveia com canela enquanto assisto meu programa de reforma de casas (meu vício). Espero um pouco e faço uma vitamina bem caprichada. Me exercito e/ou caminho pelo menos três dias por semana. Depois de terminadas as obrigações matinais, arrumo a mochila (pânico de esquecer os carregadores) e ando até a estação do metrô.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Apesar de criar a qualquer momento do dia e da noite, preciso de um ritual para escrever. Minha mente é muito curiosa. Barulhos e imagens desviam completamente minha atenção. De segunda a sexta, trabalho em um workspace para escritores, em Nova York. Na sala de escrita, os únicos sons permitidos são dos dedos teclando e eventuais espirros e tosses (ninguém é de ferro!). Chego por volta das dez, onze horas da manhã, lavo as mãos (imagine a quantidade de bactérias do metrô de NY!), encho uma caneca de café com leite, um copo com água, pego meus papéis no armário e vou para a sala de escrita. Escolho um dos cubículos (quase sempre o mesmo), acendo a luminária, tiro o laptop da mochila, organizo os papéis, o lápis, viro o celular com a tela para baixo e, mãos à obra! Costumo trabalhar até final da tarde, mas se preciso entregar um texto com data limite, fico até mais tarde. Não consigo escrever durante a noite ou madrugada, salvo raríssimas ocasiões.
Quando tenho alguma ideia boiando nos miolos, pronta para sair, vou direto para o arquivo em questão. Quando sinto que preciso esquentar antes, ou quando não consigo escrever, respondo e-mails, atualizo a página profissional do Facebook e faço pesquisas que estão pendentes. Quando estou muito ansiosa e dispersa, ouço música clássica usando os fones de ouvido. Isso me relaxa e ajuda a entrar no mundo dos personagens. Mas na hora de escrever, desligo o som. Às vezes, sento na salinha de repouso (dentro da sala de escrita) e leio: poesia, trechos de romances, ou alguma leitura que comecei em casa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo de segunda a sexta, em horários flexíveis. Normalmente chego antes das 11 da manhã e saio às 6 da tarde. Fim de semana me dedico à família ou faço passeios culturais. Tenho uma meta diária de 1.000 palavras. Aprendi isso com Emile Zola. Alguns dias cai o véu do silêncio e não escrevo nada. Mas geralmente supero, e muito, essa marca. Fico toda feliz.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando a ideia está amadurecida (o que pode levar uma hora, ou anos), não tenho dificuldade para sentar e escrever, embora, geralmente, duvide bastante do resultado. Mas isso é coisa de artista, não é mesmo? Passo por cima do medo e da insegurança e chuto pro gol.
Tudo começa com uma ideia que pode resultar em música, poema, conto, história infantil ou romance. Algo que escuto ou vejo quando estou no metrô, andando na rua, numa festa… uma cena que se forma quando estou conversando com alguém, quando leio uma notícia. Enfim, quando algo me afeta, me comove, vira texto.
Depois que fiz um curso de roteiro aprendi a trabalhar com Escaletas, onde detalho personagens, lugares e ações principais. Uma espécie de esqueleto à espera de músculos, vísceras e veias. Uso esse método para trabalhar textos mais longos. As ideias geram arquivos que guardo dentro de pastas no laptop. Organizo tudo da forma mais orgânica possível. A pasta “Histórias em andamento”, por exemplo, guarda todos os arquivos de texto nos quais estou trabalhando no momento. Dentro dessa pasta, cada livro, conto ou poesia tem sua própria subpasta. Dentro de cada subpasta tem as sub-subpastas com dezenas de versões de cada história, revisões e arquivos de pesquisas. Depois que termino cada texto (uma hora a gente tem que largar o osso), transfiro para a pasta “Literatura”, onde cada gênero tem sua subpasta: romance, conto, poesia, livro infantil. Ufa! Cansei só de explicar!
Sobre pesquisas, é mais comum que elas aconteçam durante todo o processo de criação, de acordo com a necessidade. Meus textos tomam forma à medida que vou escrevendo. Nunca sei o meio, e os finais são plurais. Tudo pode mudar a qualquer momento. São textos camaleões. Algumas vezes pesquiso antes de começar a escrever, como por exemplo, o conto sobre a morte da menina Vanessa, para a Antologia Perdidas – histórias para crianças que não tem voz. Nesse caso, antes de escrever, pesquisei sobre os casos de violência no Rio de Janeiro. Para escrever alguns dos contos do Rio 7×7, pesquisei histórias de jornais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com muita meditação e carinho. Procuro me amar e respeitar os momentos de silêncio. O silêncio é um grande aliado do artista.
Sofro com ansiedade como todo mundo. Quando travo na escrita, leio, faço música, toco violão, assisto muitos e muitos filmes, programas na televisão, brinco com os netos e netas, visito museus ou assisto shows, sento em algum banco de parque para olhar o povo passar, enquanto a música sobe pelos fones de ouvido. Aliás, isso é uma coisa incrível: andar pelas ruas ouvindo música. Outras vezes, escolho uma palavra qualquer e a partir dela escrevo uma história. É uma boa forma de exercitar a escrita e desbloquear a criatividade.
Contra procrastinação, crio metas para terminar meus trabalhos, mesmo que depois tenha que estender o prazo. Nunca forço a mente porque acho que o resultado não é bom. Escrever demanda entrega, tempo, amadurecimento, polimento do texto. A pressa é a maior inimiga da perfeição. O romance que comecei há três anos, por exemplo, hoje está totalmente mudado. O mergulho tem que ser lento e constante. É preciso envolvimento, intimidade com os personagens, tomar banho, dormir com eles. Escrever um romance é igual casamento. A gente fala com os personagens até quando está escovando os dentes.
Acho que nenhum escritor vence totalmente o medo de não corresponder às expectativas. Sei que o esforço e a dedicação que emprego diariamente resultam no meu melhor. Isso é tudo que posso fazer. Aceitar que nunca agradarei a todos é outra coisa importante.
O conto é o gênero onde transito com maior facilidade. Escrever romances me causa uma baita ansiedade. Tenho que me policiar para não entregar o “ouro” muito rápido. Trabalho cansativamente os diálogos e detalhes de cenas, embora não seja fã de longas descrições. Aprendi ao longo dos anos a aceitar que o processo é lento, que todo trabalho tem seu ponto de calda. Enquanto escrevo o romance, também trabalho textos menores. Isso alivia muito a ansiedade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depois de escrever, deixo o texto de molho. Volto depois de bastante tempo, quase a ponto de esquecê-los (benditas pastas e subpastas). Reviso. Se fizer muitas modificações, ele volta para o molho. Só mando para o revisor quando sinto aquela sensação boa no peito, os dedos formigando. Ele me retorna o texto com suas marcações e, lá vou eu, fazer novos ajustes e correções. Muitas vezes a história volta para o molho e retorna ao ciclo inicial. Quando a revisão volta bem enxuta, eu imprimo e leio em voz alta. Só depois de toda essa dança, envio para as editoras. Sempre dou preferência para as que já me publicaram. A verdade é que, até hoje, enviei pouquíssimos originais.
Durante um tempo trabalhei com uma escritora/mentora, a Anna Claudia Ramos. Foi ela que me empurrou para escrever o romance. O editor José Prado me ajudou a selecionar alguns textos, inclusive O Guardião da Chuva, que foi publicado pela Editora Bambolê. Me cerco de profissionais experientes e competentes. Já enviei textos para filhos e amigas. Mas isso me causava muita ansiedade e me deixava confusa. A única pessoa que ainda faço questão que leia meus textos, é o meu marido. Além de excelente leitor, ele é honesto pra caramba!
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no laptop. Só escrevo à mão as ideias que aparecem quando estou longe do computador. E mesmo assim, uso bastante o notes do celular. Uso a escrita em papel para me dar suporte, para escrever lembretes de cenas, para fazer a Escaleta (que depois digito e guardo em arquivo), ou registrar ideias. Já para escrever música, uso um caderno. As letras só vão para o computador quando estão prontas. Depois gravo a música no celular e faço o registro oficial.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm do dia a dia. De memórias. De palavras, cenas de filme, notícias de jornais. Qualquer coisa que conversa com a minha alma.
Me mantenho em movimento, tento viver no presente, passeio, conheço pessoas, novos artistas, leio escritores que nunca li. Toco violão, canto, toco piano (arranho). A pouco tempo comecei a fazer aula de desenho. Aprendo novas receitas (mesmo que nunca as coloque em prática). Medito. Costumo passar um bom tempo fazendo nada. Sento na varanda e olho para o céu. Fecho os olhos e me concentro nos barulhos da cidade, ou da natureza, quando estou no campo. Isso educa o ouvido e aguça a mente. Gosto de olhar as flores e o pôr do sol (sou obcecada). Amo tirar fotos. Ouço com o máxima atenção as pessoas com as quais converso. Minha mente tem mania de vagar pelos espaços e, às vezes, manter a concentração é difícil. Usar essa técnica tem deixado meu pensamento mais claro e organizado. Incrível como faz diferença.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos aprendi a encarar a escrita de forma profissional. Aprendi a ter calma. A criticar meu texto. Aprendi que encontrar a “voz” demora, mas quando a encontramos, tocamos o céu. Que para escrever bem, preciso me conhecer melhor. Mergulhar na minha história, deixar que minha alma fale. Aprendi que para escrever é preciso derrubar muros, andar por becos escuros, encarar fantasmas, revirar caixas empoeiradas, perder a vergonha, esmiuçar sentimentos, bater, bater, até a porta se escancarar. Escrever é nunca desistir.
Minha escrita amadureceu com o exercício. Com a decisão de me aceitar como escritora. Antigamente eu titubeava. Hoje, quando perguntam qual é a minha profissão, respondo sem medo: Escritora.
Se pudesse voltar à escrita dos primeiros textos, eu me alertaria: “Tenha calma! Nunca perca a alegria de escrever. Deixe que as palavras se derramem, se espalhem. Só depois se preocupe em arrumá-las. Não desista. Vai doer, vai demorar, mas vai acontecer”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu gostaria de fazer e ainda não comecei… é segredo! Um dia ele sai! O livro que eu gostaria de ler, e que ainda não existe, é o que ainda não consegui escrever.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu planejo mais ou menos. Geralmente tenho uma ideia do que quero escrever, mas não desenho o projeto antes de começar. Muitos dos meus trabalhos acontecem espontaneamente, sem planejamento. Acho que o mais difícil é escrever a última frase. O ponto final é sempre complicado, porque a história ainda fica viva dentro de mim.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não sou muito organizada em termos de escrita. Sento e escrevo quando tenho tempo, quando estou inspirada. Geralmente tenho mais de um projeto andando. Quando estou numa fase introspectiva e não consigo escrever, leio livros, não me forço. Gosto de deixar fluir.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O que me motiva é algo que se move dentro de mim. Não tenho controle sobre isso. Fico aflita não colocar pra fora. Tudo me motiva. O vento, vozes num corredor, uma luz no meio de um quarto. Iniciei minha carreira quando me matriculei em um curso na Estação das Letras, no Rio, porque queria escrever a história da minha avó. Iniciei no Curso de Contos, e nunca mais parei de escrever.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Nunca pensei nisso. Nunca me apeguei especialmente a nenhuma autora ou autor. Amo tantos e nos mais variados estilos! Comecei a ler ainda muito pequena. Lia quase um livro inteiro por dia. Devorava os romances e aventuras das coleções do Clube do Livro e da Reader’s Digest. Acho que essa mistura numa idade onde a gente não se preocupa com nada, me facilitou incorporar diferentes estilos e finalmente criar o meu próprio.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Que difícil escolher só três! Bem, eu indicaria: Memorial de Maria Moura, de Raquel de Queiroz; Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós e Amok, de Stefan Zweig.