Dailor Sartori Junior é mestre em Direito, com ênfase em Direitos Humanos, pelo Centro Universitário Ritter dos Reis.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Mesmo que o início do dia não seja meu período favorito de escrita, acho importante começá-lo com alguns cuidados que vão repercutir mais adiante. Respeitar o corpo e o sono é essencial, portanto de nada adianta acordar extremamente cedo se isso irá prejudicar a atenção posterior. Por outro lado, dormir muito além daquele horário convencionado como “produtivo” pode causar um certo desânimo para quem não está na rotina externa da jornada de trabalho, das 9h às 18h. A liberdade de manejar o próprio tempo pode ser perigosa quando se tem a pesquisa como ocupação. Também gosto de me sentir pronto para o que der e vier logo depois de acordar. Se escrever é mais um compromisso do que inspiração, esses cuidados me forçam a não me sabotar por estar cansado ou com a cabeça em outro lugar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há um turno específico em que eu trabalhe melhor. Tendo a preferir alguns momentos esparsos do dia para a escrita que exige maior concentração, geralmente a segunda metade da manhã e da tarde, além da noite, deixando o restante para tarefas mais mecânicas. Certamente, o motivo desta fragmentação é a minha dificuldade de concentração e de “engrenar”, o que é agravado pelo mal-uso das redes sociais. Sempre acho que há uma notícia ou um artigo essencial para o que estou fazendo no momento, e acabo me perdendo. Os “metodólogos” já identificaram que a gula por informação é o primeiro erro da escrita ou da formulação de um problema de pesquisa. Por conta disso, acabo não tendo um ritual específico de preparação para a escrita, mas subterfúgios do compromisso e tentativas de voltar à concentração.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Dependendo do que se está fazendo, acho importante estabelecer metas com certa margem de erro. Um trabalho de mais fôlego requer planejamento diário, semanal e mensal, mas sem desespero quando não se atinge alguma meta específica. Boa parte de um trabalho longo requer concentração e certa disciplina, de modo que é melhor escrever sem inspiração, e depois revisar, do que não escrever e procrastinar. Alguns tópicos, por sua vez, vão requerer mais concentração e amadurecimento, e por isso podem ser postergados. Eu costumo escrever um pouco todos os dias, mas há períodos concentrados em que a escrita flui mais, seja por amadurecimento do tema, seja pela opressão do tempo e o tipo de “produto”. O importante é estar escrevendo, seja o que for, pois assim mantém-se maior capacidade de comunicar e de fugir dos vícios da escrita (no meu caso, a terrível escrita jurídica, truncada e formal).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo varia muito em relação ao que se está escrevendo, não há uma fórmula correta para tudo e todos. Novamente, em trabalhos acadêmicos de maior fôlego, costumo ler, fichar, esquematizar e organizar muito as referências e ideias antes da escrita em si. Claro, se não há certeza do que se está buscando, se não houve uma prévia formulação de um problema de pesquisa, esse processo somente confunde a cabeça. É legal ir à fundo no tema e descobrir novos autores e autoras, pois isso ajuda a superar o senso comum e o saber imediato (a tal ruptura) e de fato contribuir com o assunto, mas o perigo é se perder em tantas referências interessantes. Vejo como lado positivo a escrita sair mais refletida e madura, sofrendo menos alterações posteriores. Fica mais fácil conectar ideias em vez de só descrever ou reproduzir o que se lê. O lado negativo é o perigo de não iniciar logo o texto e se complicar com prazos, já que começar a escrever, às vezes, é justamente o remédio para conseguir escrever. Outros tipos de textos eu acabo escrevendo de forma mais direta. Acho interessante esquematizar ideias ao longo do texto, ou seja, pensar na estrutura dos argumentos antes de partir para a escrita em si. E escrever à mão me ajuda nessa organização também, tanto comentários em textos impressos ou ideias em folhas de rascunho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É normal procrastinar e travar, o que compromete tempo de lazer e de outros compromissos. Porém, quando surge uma insegurança ou um esgotamento, não tem jeito, prefiro parar tudo e reservar um momento breve para ouvir música ou ir para a rua pedalar. Se não é possível esse luxo, acabo fazendo outras coisas ao mesmo tempo. O medo e a ansiedade são constantes, não há muito o que ser feito, apenas manter em um nível possível de manejar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho uma regra, mas costumo revisar bastante, até porque minha pouca experiência resulta em textos que não saem como quero de primeira. É também uma ansiedade de ter pouco escrutínio público daquilo que penso e escrevo. Acredito que se expor mais ajude a melhorar a confiança na escrita e no debate. Estou em processo de mostrar mais o que escrevo e para mais pessoas. Em geral, penso que amigos próximos que pesquisam temas semelhantes tendem a se ler muito pouco, infelizmente. Parece que é perda de tempo ler quem tem os mesmos problemas que nós. Pelo contrário: é preciso ter mais disponibilidade para esse tipo de tarefa, pois ler, debater e ajudar (e ser ajudado) quem é mais próximo pode ser tão positivo quanto ler somente os(as) grandes pesquisadores(as) do nosso campo. Gosto de ler e debater com a minha namorada que, apesar de ser do direito também, pesquisa outros temas e outros referenciais dentro dos direitos humanos. E isso é muito positivo: conseguimos perceber vícios, lacunas e equívocos no raciocínio de cada um. Mas, claro, estamos na segurança do relacionamento, naquela admiração mútua. Mostrar para alguém mais distante é um desafio, mas quando faço a algumas pessoas certas me surpreendo com o feedback.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Disse antes que escrever à mão, seja comentários em um texto impresso ou ideias esquematizadas em um rascunho, é uma forma que funciona para eu destravar a escrita ou organizar a estrutura do que vou escrever. Também gosto de fazer anotações de palestras e afins à mão. Mas se resume a isso. A partir de um parágrafo de texto final, já escrevo no computador. E tenho lido mais no computador também. Enfim, tenho boa relação com a tecnologia, mas mantenho um ou outro hábito da última geração do mundo analógico.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Essa é uma questão difícil, pois nem sempre temos controle de onde vêm as ideias ou os interesses de pesquisa. Indignações ético-políticas, oportunidades disponíveis, influências de eventos, livros, notícias e pessoas são alguns elementos que ajudam a gente a se interessar por um tema e formular uma ideia. O início de tudo não é muito racional, parece que a ideia me escolhe mais do que eu a ela. Cabe racionalizar o que é importante pesquisar e escrever depois desse interesse inicial. Como escrevo sobre direitos humanos, sempre haverá um movimento social urbano ou uma comunidade indígena específica reivindicando direitos ou contestando alguma decisão judicial que lhes prejudica. Da mesma forma, já existem organizações e centros de pesquisa pensando de forma articulada e interdisciplinar os caminhos para superar tais questões sociais. Procuro ficar atento a essas agendas, ver o que estão falando, quais as campanhas que estão promovendo, os estudos e os dados que estão sendo divulgados. Faço isso mais do que procurar por livros publicados, que em geral é um passo posterior. Claro, isso depende do interesse de cada um: há temas que andam menos no ritmo dos movimentos sociais e das respostas do judiciário, aí os hábitos podem mudar. Também tento acessar fontes menos acadêmicas relativas ao tema da escrita, como ensaios, literatura, músicas, fotografia, etc.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Estou longe de ter a produção acadêmica de muitos dos entrevistados até o momento, mas é possível dizer que minha escrita mudou muito. Claro, quando a escala é pequena, a evolução parece muito maior no curto período. Trabalho em uma ONG com litigância estratégica e também educação popular, trabalhei em administrações públicas com elaboração de pareceres jurídicos e recentemente terminei o mestrado. São demandas de escrita diferentes, mesmo que todas no direito, e exigem melhora para atingir os objetivos da comunicação pretendida. Assim, percebo que meu vocabulário melhorou, alguns vícios da escrita judicial da advocacia foram diminuídos, as referências espontâneas aumentaram – quando a gente consegue relacionar ideias, autores(as) e referenciais mais facilmente, numa conversa ou exposição oral –, a prolixidade diminui, etc. Enfim, é um processo natural. Não gostar do que se escreve no presente mais do que se escreveu no passado seria um problema. Mas posso dizer que diminuiu minha ansiedade em querer escrever tudo que sei do assunto no mesmo texto. A melhora na organização e na objetividade das ideias é o que mais observo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto de doutorado já seria um começo…