Cristina Meneguello é doutora em história, especialista em memória e patrimônio e professora da Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina matinal, pois meus horários de trabalho estão atrelados a diferentes atividades, que muitas vezes implicam estar longe de casa em bancas de tese, congressos e reuniões. Apenas agora com a pandemia estou acordando seguidamente em casa, e com enorme dificuldade em inventar rotinas matinais que nunca tive. Acordo sem fome e raramente tomo café de manhã. Sinto frio e espirro várias vezes.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor no início da tarde, ou muito tarde da noite. A madrugada é um dos melhores horários: com a casa inteira silenciosa, o mundo parece em estado de suspensão e as horas parecem ora correr, ora ralentar. Mas evito escrever quando cansada, pois algumas ideias, quando depois relidas, mostram-se menos interessantes. Não tenho rituais, não me incomoda a bagunça nem a arrumação. A escrita é um processo mental, bastam boa luz e uma cadeira minimamente confortável. Evito ao máximo estar online, pois muitas interrupções e emergências – que atrasam o processo – podem esperar algumas horas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados. Trabalhando na universidade e com diferentes atribuições profissionais, é inútil estabelecer metas diárias. Talvez outros consigam por serem mais disciplinados. Se tivesse todo o tempo a meu dispor, nem assim escreveria diariamente, em busca de um número de páginas. Não gosto de pensar que a escrita é como uma ginástica ou corrida, a ser realizada todo dia, no mesmo horário, com a mesma duração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O que escrevo nasce primeiro no papel, geralmente em anotações em cadernos, desenhos de esquemas e citações às costas das páginas. São anotações que às vezes me acometem do nada, sem hora nem lugar certo. Gosto de lápis 6B e de ficar com os dedos sujos de grafite. Nesse momento, o texto é desenhado. Por vezes, uso outros lápis de cores diferentes para materializar o que quero argumentar. Depois, é necessário passar para o computador, porque o texto acadêmico é longo e muito fundamentado (notas de rodapé, citações) e aí a velocidade do teclado é bem-vinda. Além disso, tenho limitações visuais após um descolamento de retina em 2015, e uma tela de alta definição é de grande valia.
Na fase de lapidação do escrito, é necessário ir e voltar da pesquisa para o texto várias vezes. Isso infelizmente cria algumas repetições e deselegâncias no texto, e a revisão torna-se necessária. É fácil perceber quando um autor que não relê nem revisa o que escreve. Tudo parece despejado, há palavras repetidas, não há construção narrativa, não há clímax: parece alguém falando ao telefone, sem entonação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido mal. Produzir um texto é como se relacionar com outra pessoa, há lampejos de admiração e momentos de reprovação e ódio. Sobre expectativas dos outros, vejo o ambiente acadêmico como competitivo. Os territórios do saber são disputados palmo a palmo, o estado da arte tem que ser indicado a cada momento. Ainda assim, existe espaço para muita colaboração.
As piores expectativas são as nossas próprias, como excesso de cobrança ou de espírito crítico. Houve uma época em que relia meus textos e a “voz” de dentro de minha cabeça parecia debochar do que estava anotado. Foi logo no início da graduação, e me tomou muito tempo para superar. Acho que foi somente na escrita da dissertação de mestrado que essa trava crítica desapareceu parcialmente. Faço o possível, como docente, para auxiliar meus alunos na pós-graduação a superarem em seus próprios textos as travas originais, os vícios de escrita e a falta de clareza. “Quanto mais lemos, melhor escrevemos”, insisto com eles. Fazemos oficinas e os resultados são surpreendentes, pois a classe trabalha de forma colaborativa (todos opinam sobre o texto uns dos outros, num “work in progress” que controla os egos). Revisar e reescrever é fundamental. Não nasce texto acabado. Essa ilusão de que o texto jorra pronto contribui para afastar muitos do lento processo de produção da escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Inúmeras vezes. Mesmo assim passam uns defeitos! Às vezes mostro para algum colega, para ouvir outras opiniões. No início de minha vida profissional, trabalhei como revisora em uma editora. A aprendizagem de deixar um texto “legível” sem, entretanto, atravessar o estilo próprio de cada autor foi uma das lições mais difíceis que aprendi. Também trabalhei como tradutora. Ocasionalmente, ainda traduzo. Existe zonas opacas entre as línguas, expressões quase intraduzíveis. Todas essas experiências marcam a forma de escrever. Pelo menos, marcam a minha.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como comentei antes, começo à mão. A velocidade do teclado pode atuar como inimiga, pois escrevemos irrefletidamente. Nada contra a tecnologia, porém. Escrever é viver na própria época; fingir que estamos à luz de velas no casebre faz parte um pouco de míticas sobre ser “genial”, ser “gênio incompreendido”, ser “alguém fora de seu tempo”, e todas essas impossibilidades históricas. É inaceitável para um historiador se abandonar a essas autoimagens: ninguém vive antes, depois ou fora de seu próprio tempo, a não ser no planeta das mistificações.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm da livre associação, de situações aleatórias e, principalmente, vêm de imagens: uma obra de arte, um postal, o design de uma embalagem de salgadinho, a cor do céu, os outros carros vistos da janela na estrada.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria para não ter tanto pudor e para anotar todas as minhas ideias. Diria, quando jovem, para não ter vergonha de ser jovem escondendo a idade sob uma linguagem professoral.
Não sei avaliar se houve mudanças no meu processo de escrita. Tenho idade suficiente para ter transitado do papel para a máquina de escrever, da máquina de escrever para o computador (quando ele era apenas uma máquina de escrever com recursos) e dessa máquina para o computador conectado ao mundo. A internet começou a ser usada quando eu estava no doutorado. Na graduação, se quisesse vislumbrar como era um quadro que alguém mencionava num texto, ou quais as datas de nascimento e morte de um autor, tinha que ir à uma biblioteca e ficar horas buscando e folheando, às vezes em vão. Hoje, o computador completa a minha busca antes mesmo que eu termine de digitar. Isso deve causar algum efeito, mas qual?
Me acontece com frequência de ler algo produzido há 20 ou 30 anos e pensar “nossa, isso está bom, acho que fiquei mais obtusa com o passar do tempo”. Felizmente, a sensação passa rápido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de traduzir dois livros que considero fundamentais, ambos do historiador inglês E.P. Thompson. A biografia que ele fez para William Blake, e a que ele fez para William Morris. É um sonho e uma ambição. Também queria ter condições (financeiras, certamente) de dar oportunidade de escrita e publicação a jovens autores.
Eu não posso responder a última questão, sobre o livro que ainda não existe. porque não sei todos os livros que existem. Mas seria fantástico ler um livro escrito por um animal (não por um homem fingindo ser um), ou por um objeto. Uma chávena de chá narrando o mundo a partir de seu pires.