Como eu escrevo

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Como escreve Cristina Judar

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Cristina Judar é escritora e jornalista, autora das HQs Lina e Vermelho, Vivo, do livro de contos Roteiros para uma Vida Curta e do romance Oito do Sete.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Quando acordo, seja em que horário for, procuro me alimentar, em primeiro lugar. Também quero saber como estão os gatos e a minha mãe e se ainda não me dei conta de alguma novidade ou notícia importante. Não costumo escrever nas primeiras horas após despertar, mesmo nos dias em que levanto cedo. Prefiro reservar as manhãs para o silêncio e para os estudos.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Para escrever ficção, trabalho melhor à noite e de madrugada. Mas se estou muito envolvida com determinado trabalho, aí temos algo que me ocupa o dia inteiro. Escrevo internamente, coleciono imagens, faço anotações, fico em estado de ebulição. E persigo o texto até que ele se concretize, fico nessa obsessão de não deixar ele se perder antes que determinada ideia me escape, que um diálogo se corrompa ou desapareça por causa da minha desatenção. É como um corpo inteiro, com órgãos, cabelo, pele e roupas, que preciso construir/constituir à minha frente. Quanto a rituais, e como eu escrevo textos jornalísticos também, digamos que sim, pensando aqui comigo, tenho alguns rituais ou procedimentos que me auxiliam a “virar a chave” em relação às diferenças de natureza que os textos podem ter. No passado era bem mais difícil, a escrita jornalística tem suas características e aprender a me desligar de procedimentos até certo ponto padronizados para passar à escrita literária foi algo custoso, mas que hoje, felizmente, eu já consigo fazer com facilidade. Ou então, nos casos em que eu construo textos híbridos, a escrita jornalística me auxilia muito. Atualmente é um elemento que uso ao meu favor. Sobre rituais (ou métodos), sim: para o jornalismo, muito pensamento antes de tudo, reflexões, depois pesquisa, apuração, coleta de informações, organização, redação, edição, revisão. Não necessariamente nessa ordem. Para os ensaios ou textos baseados em reflexões é algo, digamos, mais solto, mas ainda assim sigo alguns dos procedimentos que citei acima. Para a escrita literária, não há um único ritual fixo. Penso que o melhor a se fazer é criar um novo ritual a cada livro ou texto.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Escrevo em períodos concentrados. A não ser nas épocas em que tenho vários projetos e trabalhos sendo desenvolvidos ao mesmo tempo, com prazos etc. Sou bem regrada em relação a limites, datas e entregas. Neste caso, é sentar (ou deitar) e escrever. Então pode acontecer de, em determinados dias, eu escrever por horas a fio – ou na maior parte de noite, se eu puder escolher. Em épocas mais tranquilas, posso passar bons períodos sem escrever, até que uma culpa esmagadora apareça e eu volte minha atenção para textos inacabados que se encontram à minha espera para ter um corpo, um fim. O que acaba sendo ótimo. Eu já disse isso antes: alguns textos precisam de tempo para descansar, como massa de pão. Aí crescem, ficam no ponto que eu considero mais perto do meu ideal.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Muitas vezes essas notas são só mentais, entende? São sinalizadores que eu tenho para o meu caminho (ou para o caminho do livro), geralmente de natureza interna. É com base neles que começo a escrever. Já começo direto, sem notas intermediárias. Mesmo que esse extrato inicial depois sofra várias alterações, eu já caio de boca no texto. Sou assim em relação a várias coisas e, na literatura, não fujo muito disso. Se é, é. (risos) Então vou em frente. Sobre pesquisas, quando há a real necessidade delas, há variações de acordo com o trabalho. Enquanto eu escrevia o romance Oito do Sete, precisei pesquisar registros pictóricos dos serafins (seres angelicais do mais alto escalão) – pois um dos personagens/partes do livro é um serafim. Pesquisei em sites de grandes museus, fui, voltei, mandei e-mail para o Museu do Vaticano. Tive a sorte de dar de cara com a representação de um serafim na National Gallery, o que foi bem especial e simbólico. Mas já escrevi muito sem fazer qualquer pesquisa, baseada nas minhas ideias e experiências apenas. É meio delicado quem só escreve com base em pesquisa. Preciso do som da língua, do encadeamento, de harmonias, de imagens subliminares, de entidades passando aqui e acolá. Preciso de elementos “não-pesquisáveis”. (risos) Quem só escreve com base em pesquisa me parece mais aquele jornalista que quer ser escritor, mas se força a continuar exercendo a prática jornalística. Ou coisa de coletadores de dados. Grandes livros podem surgir desse sistema/método, aliás. Mas, definitivamente, essa não é a minha. Pelo menos até o momento.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Eu tento não me pressionar demais. E, ao mesmo tempo, não me dar muita moleza. É claro que há momentos na vida que exigem ausência, abstinência. Ano passado foi um ano particularmente difícil para mim (assim como para muita gente), em vários aspectos, e eu simplesmente não tinha estímulo para escrever. O que pode parecer meio dramático, mas isso acontece, mesmo com pessoas cheias de energia, como eu. E aí você tem um compilado: procrastinação + culpa por estar perdendo tempo + etc + etc + etc… E o que fazer diante disso? Tentar se preservar ao máximo, dar trégua a si mesma até se sentir pronta para voltar à guerrilha. Pois escrever é estar em guerrilha em relação a tantas coisas… Nessa época, comecei a escrever um compilado de cartas (que agora resultou em um novo livro), à mão, bem quando eu estava no olho do furacão. Foi um processo artesanal, dá para identificar na minha letra as inclinações, as dores, a importância das pessoas, das experiências relatadas, as confissões. Foi um período de reclusão, aproveitado para a criação de uma forma de escrita até então diferente para mim, o que valeu muito a pena.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Não pergunte para uma perfeccionista quantas vezes ela revisa seus próprios textos (risos) – e que fique bem claro que já se foi a época em que eu considerava o perfeccionismo uma qualidade admirável. Eu não saberia dizer quantas vezes eu reviso, de verdade. E nem leio o livro depois de impresso para não me mortificar porque naquela frase usei a palavra X e não a Y. Mostro muito pouco meus textos antes de publicá-los. Talvez eu devesse mostrar mais, não sei. Sou bem reclusa nesse sentido. Geralmente trabalho de maneira muito próxima com o pessoal da editora, sou bem aberta com quem entra na minha sintonia e entende a natureza do meu trabalho (o que costuma ser algo raro), eu procuro fazer o mesmo com a outra parte e, até hoje, tive a sorte de trabalhar com pessoas assim.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Só recentemente, ao escrever as cartas, conforme contei acima, é que retomei a escrita à mão, que eu poucas vezes usei para literatura, exceto durante a minha residência literária em Londres. Eu usava um caderno para anotar as primeiras ideias que surgiam de acordo com os áudios que eu gravava diariamente, para só depois passá-las para o computador. Eu escrevo bastante no bloco de notas do celular. Especialmente pela versatilidade de posições físicas, de situações, horários e locais que essa opção me proporciona. Definitivamente, não sou uma escritora exemplar, daquelas que se sentam com a coluna ereta num ângulo de 90 graus em frente ao computador por duas horas exatas ao dia, embora eu, obviamente, faça uso dele em vários momentos, como quando vou retrabalhar os textos, editá-los. Mas a minha escrita rende mais quando não assumo uma postura muito ortodoxa. Quanto à escrita à mão, para mim ela não é lá muito confortável, a relação com a palavra também é outra, as formas das letras revelam informações com as quais muitas vezes não estamos preparados para lidar. Por essa razão, quero tentar novamente.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?

De uma mente que não para de criar micronarrativas imaginárias dentro da realidade factível nem por um segundo. Não há regras que eu siga (se eu tivesse que segui-las, desistiria). Eu tenho muitas ideias e, de acordo com o meu estado de espírito, decido se vale ou não a pena segui-las ou desenvolvê-las. A minha vida me traz muitas ideias, as coisas que me permito e já me permiti viver são um eterno combustível para elas, assim como o mundo, os conflitos, as crises geram ideias de forma contínua, elas surgem naturalmente, espontaneamente. Cinema é combustível, música é combustível, a fúria é combustível, assim como o amor, as conversas com amigos e, claro, os livros.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Que eu esteja na maior das abstrações, mas sempre com clareza, leveza e transparência. É o que procuro e sinto que, aos poucos, vou conseguindo. É difícil avaliar ou comparar períodos, é tudo ainda muito recente, mas ao ler textos passados é claro que percebo mudanças, embora eu não seja a pessoa mais adequada para analisá-las. De forma geral, tenho a impressão de que está tudo mais limpo e mais claro.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

O Manifesto da Luz Vermelha, que ainda não existe, mas que já começou a dar os seus primeiros passos para a concretização no mundo. Somos três autores: Eu, Marcelo Ariel e Alexandre Rabelo. Ele trará muito sobre aquilo que vivemos e pensamos em relação à noite urbana, ao neon, à ausência de diferenciação quando estamos sob a luz vermelha. Falamos sobre São Paulo, sobre a arte, sobre diferentes manifestações, sobre diversidade, assim como a linguagem das ruas, os ritos dos artistas. E há ainda muito mais, que ainda não cabe dizer aqui.

* Entrevista publicada originalmente em 9 de julho de 2018, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).

Arquivado em: Entrevistas

Sobre o editor

José Nunes é editor da Colenda.

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