Cristina Froes de Borja Reis é professora de Economia e Relações Internacionais da UFABC.
Certa vez li (mais precisamente, na introdução do Jung ao livro tibetano dos mortos) que o clímax de um texto ocidental é no final, enquanto o dos orientais é no início. Pois então. Gosto do estilo oriental. Prefiro mandar a mensagem logo de partida. Se ela interessar ao leitor, que prossigam texto adentro. Se não, tchau, é isso aí, melhor arrumar algo mais interessante para fazer. Sem culpa, sem ofensa, sem cerimônias.
Por isso, vou cumprir o roteiro do blog para contar como escrevo, mas invertendo a ordem. Estou envergonhada, é estranho escrever sobre mim. Não faço isso nem no facebook. E nem acho que a minha contribuição na escrita mereça este cartaz. Mas vamos lá, a ideia do blog é muito legal, eu gostei e aprendi com outros relatos. Sei que alguns amigos firmezas e também pessoas curiosas que desconheço vão acabar lendo essas linhas. Talvez alguém se identifique com minha experiência, talvez mate um pouco as saudades dos chegados, talvez eu apresente algum exemplo oportuno ou, ainda, contra-exemplos.
Sempre começo um novo texto pela introdução. É o que mais me cativa quando leio outros autores e a parte preferida da minha própria escrita. Ao longo do amadurecimento na carreira acadêmica, aprendi a importância de um primeiro parágrafo “arrebatador”. Nele, tento apresentar sinteticamente a motivação e a justificativa da pesquisa, a lacuna existente (research gap) e a minha pretensa contribuição. A partir de então vêm os objetivos, o método, o desenvolvimento. Mesmo se o texto não for cientifico, procuro seguir essa lógica.
Dou partida na escrita quando sinto ter algum domínio sobre o tema, após acumular material de pesquisa. Geralmente ela já está em um estágio avançado, mas não concluída. Para mim, escrita e pesquisa são um processo dinâmico conjunto, pois enquanto escrevo percebo dúvidas, argumentos insuficientes, necessidades de mais dados, novas referências e penso em caminhos alternativos para a pesquisa.
Até tenho metas de escrita diária, mas raramente as cumpro. Fico lapidando, ajeitando, reorganizando os parágrafos e acabo me atrasando. Reviso cada seção do texto diversas vezes. Deixo recados para mim mesma, para lembrar do que falta ser feito. Mas reviso pouco o texto completo. Então, sempre que possível, encaminho para colegas ou pessoas de confiança darem uma olhada.
Escrevo praticamente todos os dias, sempre tem algo que quero “por no papel”. Atualmente, no papel de verdade, somente algumas ideias rabiscadas ou a estrutura de um artigo. Em geral produzo diretamente no computador. Mas a inspiração é uma amiga voluntariosa, inconstante…por vezes magnífica, mas também meio sacana. Quando ela se vai, procrastino mesmo. Leio notícias, navego na internet, dou uma volta, faço yoga, como algo salgado, arranco cabelos brancos, ou toco outras questões da vida.
Há momentos em que me sinto super insegura, tanto na escrita, quanto na pesquisa. Ou porque não tenho certeza se o método/ os procedimentos estão adequados, ou porque acho que não apresento contribuições, ou porque me parece que ainda falta muito a ser esclarecido. Lido com isso trabalhando mais, reduzindo o escopo do texto (quando possível), ou espero vir um estalo transformador. Também procuro aceitar minhas limitações, revendo ambições juvenis de querer revolucionar as ideias.
Sobre a rotina de escrita, difícil descreve-la sem parecer uma maquininha. Claro que cada dia é diferente, “mas procurando bem” existe um certo padrão no meu lidar com o tempo e o tipo. Quando não tenho que lecionar, aproveito as primeiras horas do dia para eliminar as urgentes pendências nos afazeres domésticos e de trabalho. Respondo emails, encaminho conversas, pago contas, atualizo a agenda e daí mexo nos meus textos na segunda parte da manhã.
Como tenho filhos pequenos, meus rituais de preparação para a escrita se tornaram curtíssimos. Não consigo dedicar-me a longos períodos de escrita se estamos todos em casa. Aliás, tampouco não na universidade, porque sempre há assuntos diversos para resolver. Então, assim que as crianças estão dedicadas às suas próprias atividades (escolares, brincadeiras ou dormindo), ou se arranjo um intervalo entre reuniões de trabalho, “sento no computador” e disparo teclando.
Como dito, prefiro fazer isso de manhã. Mas há dois momentos matinais que tem prioridade ante qualquer outra rotina. O nosso “Familienzeit”, com abraços, beijinhos e carinhos, seguido de um café da manhã potente – acordo faminta e preciso de um café amargo forte para começar a labuta.
Voltando ao momento em que me “sento no computador”, pode ser que dure 40 minutos ou 4 horas. Nesse período de concentração, entro no meu “túnel”. Eu amo esse túnel. Fico totalmente concentrada em algum pensamento, não escuto nada, tipo uma meditação focada, absorta. Mesmo quando paro de escrever, demoro um pouco para sair desse espaço-tempo.
Divirto-me com o processo da escrita, principalmente com coautoras e coautores. Acho muito melhor escrever em várias mãos, as habilidades se complementam, o problema é abordado por perspectivas multifacetadas, a dialética enriquece os achados e há menor possibilidade de erros e problemas da escrita individual.
Concisão não é o meu forte. Escrevo enrolado, como vocês já perceberam. Faço digressões, abro parêntesis e não os fecho, por vezes propositalmente, por vezes não. Isso já me atrapalhou muito, tive artigos rejeitados, não me entenderam, não respondi o que perguntaram…mas tem também o seu valor, inter-relaciono temas aparentemente nada a ver, endereço os debates que me perturbam e consigo ser criatividade e original. Só que nem sempre fui tão autentica. Antes meus textos eram bem presos, excessivamente ancorados em referências (hedging), evitando posições contundentes.
Outro elemento de escrita que venho melhorando é o planejamento: para quem escrevo? Que linguagem é mais apropriada? O texto pertence ao escopo do veículo de publicação? Os objetivos estão claros? O método está bem apresentado? Os procedimentos coerentes? Os resultados são pertinentes? Quais as mensagens principais? Por que tudo isso?
A resposta da última pergunta passa pela minha empolgação com ideias, ideais ou com aqueles estalos para sair de uma encalacrada intelectual. Eles pipocam lá no túnel da concentração, nos sonhos, cozinhando, em trânsito, dentro d’agua, contemplando, lendo ou conversando com as pessoas. Para não os esquecer, anoto-os tão logo possível, ou faço áudios para mim mesma.
E por falar em ideais, gostaria de escrever um livro aos 40 anos. Vou começar assim que meu pós-doutorado terminar. Mas ainda não decidi sobre o quê (xi, só faltam alguns meses). Em tempo, encerrando, expliquei aqui em casa que estou escrevendo sobre o meu processo de escrita. Assim o definiram: deixa a gente com fome.