Cris Vazquez é advogada pública e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tanto quanto possível, minhas manhãs precisam ser artísticas, pois isto funcionará como combustível para o dia. É de manhã que deixo a imaginação vagar, ouço música, leio jornal, flano nas redes sociais em busca de um artigo cultural interessante ou para divulgar meu trabalho, tomo um banho demorado em que decido sobre os aspectos mais variados da vida, inclusive literários. E, se estiver envolvida em algum projeto, escrevo. Neste caso, de manhã escrevo, à tarde o trabalho de advogada e à noite atividade física e leitura. Família, saúde e vida nos intervalos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma pessoa vespertina. Fiz duas faculdades, sendo uma à noite, meu primeiro emprego começava às 11h da manhã, então me condicionei a dormir tarde e a render na parte da tarde. Como já ouvi Caetano em entrevista: “se eu acordar ao meio-dia, quatro da tarde é um horário bom”. Eu diria que se eu acordar às oito, 11h é ótimo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como advogada pública, escrevo todos os dias. Úteis, de preferência, mas posso trabalhar aos fins de semana também. Como escritora, em períodos concentrados. A primeira versão de O abismo entre nós, intitulada A escrita em nós e classificada como livro de contos, foi criada e editada (havia partes prontas) durante um recesso forense. Infelizmente, não tenho meta de escrita diária, mas crio uns prazos de média envergadura para cumprir, e aí utilizo muito os fins de semana. Na reescrita de O abismo para a forma do romance, eu tinha a meta de finalizar um capítulo por mês.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita nasce de uma urgência interna (ou de uma encomenda). Ambos têm seu valor porque, no primeiro caso, o resultado sairá diretamente do inconsciente e, no segundo, o efeito positivo é o de não procrastinar. Tenho notas que só viraram história três anos depois. Escrever muitas notas sobre determinado trabalho ou montar todo o esqueleto da história pode tornar difícil o começo porque aí você já descobriu do que exatamente queria falar, de modo que o prazer pode se esgotar antes mesmo do começo e o resto será apenas trabalho duro. Meu movimento da pesquisa para a escrita varia. Posso ver um documentário, sentir vontade de escrever sobre o tema, e pesquisar dois meses para escrever apenas um conto, como no caso de Anfíbia, publicado na antologia Onisciente contemporâneo (org. Luiz Antonio de Assis Brasil). Em outros casos, a necessidade da pesquisa pode surgir durante a escrita, tanto em relação ao todo, como a pontos específicos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lidar com as travas e a procrastinação é realmente difícil. O desejo é de que estivesse sempre pronta para escrever, com tempo hábil e sem qualquer interrupção, inspirada e que o resultado saísse melhor que a ideia inicial. O medo de não corresponder às expectativas existe sempre e a recepção da obra, às vezes não tão calorosa quanto se gostaria, é um aprendizado. Recentemente, uma garota inteligente, boa leitora, professora de alemão, comentou que achou a estrutura do meu romance difícil, com muitos personagens nos contos, muitas vozes. A clareza para o leitor é um objetivo a ser perseguido. Existe ansiedade em trabalhar em projetos longos, sim, mas depois que acaba a gente se dá conta de que o prazer estava na travessia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes antes de publicar. Na primeira versão do meu livro, cheguei num ponto de altíssima concentração em que me fixava em cada palavra, na sintaxe de cada frase, em busca da simplicidade. Mas quando reescrevi a versão definitiva, talvez tenha voltado a uma certa complexidade sintática que caracteriza minha escrita natural. Mostro meu trabalho para algumas pessoas antes, que escolho conforme o tema tratado. Minha grande leitora crítica e revisora é a Ana Luiza Rizzo, amiga incansável e talentosa de Oficina, que diz aprender muito enquanto revisa o texto dos colegas. Inclusive gostaria de ler sobre seu processo de escrita por aqui, assim como o das incríveis Irka Barrios e Taiane Maria Bonita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou da geração anterior ao computador. Estranhei de início, depois aderi sem problemas e agora estou numa fase de esmiuçar notas em cadernos, escrever à mão as passagens mais difíceis e até mesmo escrever na praia ou no parque e depois passar para o computador. É incrível tirar os olhos do papel na hora que as ideias travam. Você olha a paisagem, respira e retoma com sucesso. Mas a experiência de escrever um livro inteiro em cadernos e depois digitar ainda não tive.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de uma cena de rua, de um filme, de uma história ouvida de alguém, de uma memória, voz ou dificuldade interior, e aí isto é transmutado ou misturado. Caminhar pela praia, estar em férias ou com a mente, de algum modo, desocupada, é o que ajuda a ter ideias. Quando viajo, vejo coisas inspiradoras, mas aí estou vivendo minha vida e não coletando ideias para escrever. Mas às vezes peço uma única inspiração e ela surge inesperadamente, quando já tinha esquecido disso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita dos seus primeiros textos?
O meu processo de escrita mudou depois que cursei a Oficina do Professor Assis Brasil. Sempre gostei de escrever e ensaiei vários começos, mas a oficina realmente organizou minhas percepções sobre leitura e escrita. O mais importante de tudo foi aprender sobre o narrador, seus tipos, o focalizador, pois sempre patinava na prática. Além disso, perceber a diferença entre o contar e o mostrar. O mais legal foi encontrar colegas escritores incríveis, com quem mantenho amizade até hoje e compartilho ideias literárias. Pois se tem uma coisa que iguala os escritores é o amor e a angústia da escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma ideia para livro de contos e outra para romance. Vamos ver o que se concretiza. Mas o que gostaria mesmo era de me soltar na linguagem e na estrutura do romance, de modo a escrever sem travas. Desaprender o que aprendi. Quando li Grande Sertão: Veredas, aos 17 anos, na Faculdade de Letras, tive verdadeiros orgasmos linguísticos. Também gostaria de ler um livro que dialogasse com o meu, e vez ou outra ler algum que me jogue na lona.