Clayton de Souza é escritor e crítico literário, autor de Contos Juvenistas (2013) e Versos de imprecação contra o mundo (2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A leitura é ação inicial do meu dia. A Bíblia é uma leitura diária. O caminho para o serviço, que costuma ser longo, e que se dá ainda pela manhã, é o tempo reservado para mais leitura, seja de obras, seja da realidade. Esta última modalidade de leitura é contínua durante o expediente do trabalhador. O retorno, em meio ao caos urbano e aos coletivos abarrotados, também faz as vezes de imersão na realidade (além da aparência). A noite é reservada à família, como não poderia deixar de ser. Enfim, em meio ao pragmatismo imposto pela sociedade, a literatura vai respirando como pode.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tanto na parte da manhã, bem cedo, como na calada da noite, bem tarde. Em ambos, a atividade deve ser antecedida por uma boa xícara de café quente, e alguns instantes de silêncio prévio e absoluto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Admiro os escritores que conseguem obliterar as necessidades tiranas que a sociedade impõe (pagar contas, arcar pontual e infalivelmente com as obrigações, dar atenção às pessoas etc.), em prol de sua arte. Ao ler Balzac, que viveu uma vida relativamente curta, fico pasmo ao me deparar com um conhecimento tão consistente e abrangente das grandes questões sobre arte, economia, política e sociedade, dentre outras, que não é diluído, mas sim trabalhado com consistência em suas narrativas. Isso num contexto de infinitas dívidas e credores implacáveis, de uma correspondência vasta com tantas pessoas – entre outras, as variadas amantes – além do tempo demandado para dar atenção a elas. E ainda sim dar conta de uma vasta obra evidentemente bem escrita! Isso não se aplica a apenas esse mestre da literatura universal. Muitos escritores hoje conseguem lidar com variadas atividades, e por mais que soe como uma piada de mal gosto o falar de “viver da literatura” num país que desdenha dessa modalidade de arte, sem dúvida um certo número orbita em torno dela tirando seu sustento, tendo esse privilégio.
Isto posto, não consigo ter um exercício diário de escrita. Sou pelos períodos concentrados, por absoluta impossibilidade de administrar o dia de outra forma. Também pela incapacidade, por outro lado, de ser um egoísta sublime devotado a seu ofício, como tantos houve ao longo de séculos de literatura. A perspectiva de dar a minha filha um pai desse quilate me apavora.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Até então consigo trabalhar melhor quando tenho em mente as linhas gerais de uma obra. Penso na casa completa; atualmente não sou de construir os cômodos isoladamente para depois juntá-los, pensando em como formar um lar. Mas nem sempre fui assim. Em termos de poesia, por exemplo, deixava-me levar pelo acaso e pelas circunstâncias que fecundavam criações. Mas eram voos tênues, precários (a maior parte deles). Não que seja um industrial da poesia ou do conto hoje, ou um arquiteto sem verve. Entrego-me ao insight, à inspiração (sim, acredito nela, mas é rara sua aparição), porém de modo geral tais elementos surgem no fundamento geral da obra, nos alicerces da casa. Depois, torna-se muito mais fácil o surgimento das ideias para cada poema, conto etc. É como se a vista se desanuviasse para a novidade da existência. Então, bastam um pouco de silêncio, pausas imensuráveis para reflexão e grande resignação.
Não foi outro o processo de criação do meu livro mais recente, escrito em parceria com o poeta Witalo Lopes, o Versos de imprecação contra o mundo. É um livro de poemas cuja semente, indefinidamente fecunda, surgiu de um grito revoltoso e melancólico contra o mundo que oprime o indivíduo, realidade já sobejamente vivida quando se passa das fronteiras dos trinta anos. Eu e o co-autor sentimos essa necessidade, e quase que naturalmente as quatro seções que subdividem o tema surgiram, e com elas os poemas que as compõem.
A pesquisa se dá na realidade e no interior, e o caderno de notas ao qual mais recorro é o da memória. As impressões são geralmente fortes e no momento da escrita (que busco estreitar ao da impressão) elas afluem à minha consciência serenamente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Geralmente esmagado, como tantas pessoas, pela rotina social e suas imposições, quando sento para escrever, sinto-me como quem houvesse encontrado um oásis há tanto desejado, e mesmo as “travas” são como um bálsamo. Dentro desse contexto, procrastinação é algo que não existe.
O medo das expectativas é algo que já me incomodou muito, mas hoje é nulo. Se a pergunta se refere às expectativas próprias, não penso muito no que já fiz e em manter o nível. Apenas me entrego a uma bússola estética interna que me diz instintivamente o que fazer, ou deixar de. Ademais, Narciso teve seu fim justamente por observar-se demais através de um lago, e a lembrança dele não poderia ser mais apropriada ao meio literário atual.
Agora se pensarmos em expectativas quanto ao público e à crítica, se é que esta haverá de querer algo com a obra publicada, é algo que não deve afetar a escrita de nenhum autor. Este tem diante de si as verdades que emergem da existência (parafraseando Proust), e deve se ocupar unicamente em cristalizá-las em seu momento de brilho numa expressão artística que não as oblitere. Expectativas de outrem são uma variante sempre imprecisa numa equação infinita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou sistemático na escrita, mas aberto a improvisos; contudo, não tenho um número exato de revisões de um original. A bússola interna avisa quando um texto alcançou sua forma definitiva no mundo. A imprecisão está em quando esse momento chega. Em meu primeiro livro, Contos Juvenistas, editado pela Patuá, demorei cerca de quatro anos revisando os originais.
Mostrar os originais é algo muito raro, mas isso acontece eventualmente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O computador é essencial, mas não no momento da escrita, que sempre foi a lápis, num caderno por vezes confusamente escrevinhado. Após a escrita do esboço, este é registrado em inúmeras variantes num documento de Word.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias surgem da contínua relação com o mundo, com o cotidiano, com as pessoas e comigo mesmo. Quanto mais considero com detida atenção e olhar renovado aquilo que é ordinário e rotineiro, mais as ideias surgem, e as verdades quanto aos homens e suas instituições se tornam patentes. Contudo, o processo mais difícil é sempre avaliar a relevância artística daquilo que é revelado por essa sondagem. Pode-se argumentar que o verdadeiro gênio consegue extrair relevância de qualquer coisa, como Proust o faz com uma xícara de café com madeleine, ou com uma sebe de pilriteiros, mas não sendo eu um gênio preciso refletir bem sobre aquilo que estou analisando, e estudar depois, continuamente, a melhor forma para dar-lhe expressão. De todas, essa etapa é a mais custosa.
A leitura é um hábito que alimenta a criatividade, embora isso pareça um paradoxo. Sempre é construtivo (e, em certo ponto, agoniante) observar como um artista de outrora dialogou com sua época, sua obra constituindo um espelho que reflete o zeitgeist dela. Todo artista parte da premissa de ter algo a falar sobre determinado momento da história, num determinado lugar da existência humana. Essa necessidade me alimenta, mas aumenta minha responsabilidade quanto ao que faço, respondendo por parte de uma certa inquietação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que, embora não feche as portas para a criação fortuita e circunstancial, minha escrita agora se guia bem mais em torno de uma ideia maior através da qual muitas criações derivam. Foi o caso do meu segundo livro, o mais recente. É curioso como as criações fluíram dessa forma, sem se tornarem contraproducentes. Dir-se-ia que essa necessidade estava incubada há tempos no interior. Em termos puramente técnicos, minha escrita segue num movimento contínuo: aberta à modernidade sem desconsiderar aquilo que a tradição tem de melhor. Nesse sentido, acho que não é estranho dizer que ela é atemporal (não digo no sentido qualitativo do termo, apenas expressivo).
Diria ao meu eu de outrora: tenha calma. Não se angustie. Seus juízes não são assim tão importantes, nem parecem muito interessados no que há em volta. Faça o que deve fazer, sem se observar além do necessário.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há tempos tenho em mente um ciclo de romances que tratariam dos caminhos de um grupo de jovens amigos idealistas, com a firme convicção de fazer algo para mudar os rumos do país. Cada qual seguiria um caminho diferente, galgando posições em diferentes instituições que prefiguram os rumos essenciais de mudança ou atuação social no Brasil. Esse ciclo enfocaria as conturbações sociais e espirituais da modernidade, e esse seria seu grande escopo. Contudo, uma empreitada como essa demanda condições prévias as quais ainda não consegui reunir em torno de mim.
Quanto ao livro que gostaria de ler e não existe, não saberia dizer, estando mergulhado num vasto mar de livros que existem e que esperam por ser conhecidos, dos atuais aos canônicos, lidos por uma parcela cada vez menor de leitores remanescentes, flertando cada vez mais com o oblivion da mente e consciência dos homens atuais.