Cláudio Michelon é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Edimburgo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Hoje eu tenho uma rotina de trabalho relativamente estável. O que é mais ou menos fixo é o horário em que eu chego no meu escritório na Universidade (em torno das 9h). A primeira meia hora é dedicada à burocracia (e.g. e-mails, relatórios, providências práticas). O resto da manhã é dedicado a atividades de pesquisa (o que pode ou não incluir escrita, dependendo do estágio do projeto específico no qual estou trabalhando). Neste período eu procuro não fazer nada que não esteja diretamente relacionado à pesquisa. Esta rotina é a regra. Após o almoço, minha rotina repete a rotina matinal, se não houver outros compromissos.
Eu procuro concentrar minhas aulas, reuniões, seminários, eventos que organizo em Edimburgo, etc no período da tarde, de modo a tentar preservar intacta a rotina da manhã na maior medida possível. Quando ocorrem, obviamente, a minha rotina deve ser adequada às necessidades imediatas.
Por vezes um texto precisa de um esforço concentrado. Nestes períodos eu suspendo as outras atividades na maior medida possível (o que é surpreendentemente fácil e raramente lesa alguém seriamente) até que a necessidade desse esforço concentrado desapareça.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso varia um pouco. Eu prefiro escrever em períodos nos quais há menos oportunidades de distração (de manhã ou, às vezes, de madrugada). Tardes e o início da noite tendem a ser mais atribuladas.
Não tenho nenhum ritual discernível de preparação para escrever. É comum eu fazer um café e trazer comigo para a minha mesa de trabalho, mas não chega a ser um ritual. Antes de eu deixar de fumar, eu costumava fumar um cigarro (um dos meus dois cigarros diários) antes de escrever. Mas também não chegava a ser um ritual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta de escrita diária em número de páginas, palavras ou mesmo tempo. De fato, eu também não tenho uma meta de escrita mensal ou anual. Eu escrevo frequentemente, mas a maior parte do que eu escrevo não é voltado para publicação, mas simplesmente o resultado de que eu penso melhor escrevendo. Se eu decido publicar algo, escrever o texto vai tomar o tempo necessário, e o tempo necessário depende de muitos fatores distintos. Já escrevi artigos inteiros em alguns dias, e já demorei alguns anos para chegar a um resultado que me agradasse.
Em quase todos os textos que escrevi, há alguns momentos nos quais é necessário escrever de modo concentrado. Isto pode ser o resultado de pressão externa (prazos de editoras, etc) ou pode ser um uma resposta a uma necessidade interna do texto (um argumento particularmente complexo, por exemplo, no qual é necessário manter várias bolas no ar ao mesmo tempo, normalmente demanda um período de esforço concentrado).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não pratico uma separação clara entre uma fase de pesquisa e uma fase de escrita. Geralmente depois de ler um ou mais textos sobre um certo problema (uma decisão judicial que enfrenta o problema, um artigo que propõe uma solução para o tal problema, ou que procura explicar as conseqüências que se seguiriam de uma certa solução, etc), um certo desconforto se estabelece. Assim que isto ocorre, de um modo geral, eu começo a esboçar um texto preliminar contendo a tese a ser defendida e o argumento que justifica a tese começa a se formar (geralmente à mão, como explico abaixo). Começar a escrever me ajuda a ajustar o foco da “pesquisa”. Eu adquiro uma ideia melhor sobre que tipos de fontes eu preciso consultar (problemas “intermediários” que precisam ser resolvidos e que são discutidos em literatura específica, etc). O contato com estas novas fontes me ajuda a entender melhor os ônus argumentativos dos quais eu tenho de me desencumbir no meu próprio argumento e, potencialmente, podem modificar o escopo do argumento. Esta consciência mais precisa do argumento, por sua vez, me ajuda a perceber outras fontes que devo consultar, e assim por diante. Em outras palavras: meu processo de pesquisa procura atingir um “equilíbrio reflexivo” entre escrever e analisar as fontes relevantes.
Quando eu comecei meu doutorado, meus orientadores disseram que eu deveria começar a escrever imediatamente. Isto me pareceu, na época, absurdo. Eu retruquei que eu precisava pesquisar muito mais antes de escrever. Eles não aceitaram e me exigiram algumas páginas descrevendo um aspecto do argumento geral para o próximo encontro, dali a duas semanas. Contrariado, lá fui eu escrever sem ter lido quase nada sobre o problema. Ao escrever, me pareceu claro que o ponto que eu julgava ser central para poder defender a minha tese era, na verdade, relativamente irrelevante. Se eu não tivesse iniciado escrevendo, provavelmente perderia algumas semanas ou meses pesquisando sobre um ponto que, ao fim e ao cabo, não era relevante para a tese.
Isto não significa que tudo o que se escreve nestes estágios preliminares vai ser aproveitado no texto final. A maior parte simplesmente não vai ser. Eu tive de desenvolver um certo “desapego” ao que escrevo, de modo que, hoje em dia, não me custa muito jogar vinte ou trinta páginas escritas fora se eu percebo que o texto não está bem, mesmo que me tenha custado muito tempo e esforço.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Travas na escrita são resolvidas, basicamente, escrevendo. Mesmo que o resultado não seja muito bom, escrever me ajuda a organizar minha cabeça sobre um certo problema ou tema.
Há ao menos dois tipos de procrastinação: a externa e a interna ao projeto. A procrastinação externa (ficar respondendo e-mails, lendo jornal, consultando blogs, etc) se resolve com regras rígidas de rotina: no período dedicado à pesquisa, eu não converso no telefone, não verifico e-mails, não uso a internet, etc). Sem exceções.
O segundo tipo de procrastinação é mais insidioso. Como eu não separo muito claramente “pesquisa” e “escrita”, é possível às vezes procrastinar por meio de uma inflação injustificável (no contexto do texto que se está escrevendo) do tempo dedicado à leitura e processamento de materiais. Não há regra “hard and fast” que ajude aqui. O que é necessário é policiamento constante, bem como o desenvolvimento de outras formas de desapego (e.g. se eu percebo que um determinado texto não trata, nem mesmo indiretamente, de algo relevante no contexto do argumento que estou desenvolvendo, eu não sinto necessidade de continuar a ler o texto até o fim; melhor parar logo e passar a ler algo que pode ser relevante no contexto particular).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depois de uma versão aceitável estar completa, eu apresento o paper em diversos contextos (para meus colegas em Edimburgo, em congressos ou workshops em outras instituições, ou palestras individuais para as quais sou convidado). Apesar da apresentação não ser uma leitura do texto, eu costumo circular o texto para distribuição à audiência antes de muitos destes eventos. Depois disso eu uso os comentários recebidos para alterar o artigo. Só depois eu o envio para publicação.
Um texto meu tipicamente vai passar por duas ou três versões completas antes de ser submetido à publicação. As revisões de trechos particulares (um complemento aqui, uma supressão acolá), são muitas e muito frequentes. Se elas contarem como “revisões”, os textos certamente passam por algumas dezenas de revisões.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Geralmente eu escrevo uma versão curta do argumento do artigo à mão em um caderno com uma série de “notas para o autor” (por exemplo “acrescentar uma justificação para esta premissa do argumento”; “discutir a objeção de X a este ponto”; “checar se o argumento de Y no artigo Z é compatível com isto e, se não for, explicar quem está errado; “discutir o exemplo X”; “encontrar um exemplo apropriado”). Inevitavelmente, muitos papers projetados são abandonados já nesta primeira versão, se eu percebo que o argumento imaginado possui algum problema (por exemplo, se a tese não é tão original quanto inicialmente imaginava, as premissas não apoiam as conclusões, ou talvez as premissas, ainda que pudessem apoiar a conclusão, parecem menos plausíveis do que originalmente imaginava).
Depois da versão curta escrita à mão, começo a escrever o primeiro rascunho diretamente em um processador de texto. Esta primeira versão ainda possui algumas “notas para o autor”, mas muito poucas. Depois de terminar esta versão inicial, eu trabalho o texto de modos diferentes. Normalmente é só uma questão de editar o texto, mas, por vezes, modificar a primeira versão seria muito trabalhoso, ou poderia resultar em um texto pouco “fluente”. Nestes casos eu simplesmente reescrevo tudo (ou a maior parte do artigo) do zero.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Boa pergunta. A resposta honesta é: não sei de onde vêm minhas ideias. Mas meu impulso para escrever frequentemente vêm de um certo desconforto com a minha forma de entender algum aspecto do direito, da política ou da moralidade. A minha compreensão, como a de todos nós, é construída a partir de um conjunto de estruturas que utilizamos para fazer sentido de fenômenos normativos, a maior parte das quais é adquirida, não inata. Estas estruturas deixam frequentemente um “resto” de fenômeno inexplicado; de fato, a estrutura tende a varrer este resto para baixo do tapete. É tentador assumir que o que eu não consigo explicar no momento, não pode ser explicado; esta tentação deve ser resistida. Escrever, para mim, é o resultado desta resistência. Uma tentativa de explicar algo fora da minha “zona de conforto”, algo para cuja explicação eu ainda não disponho de recursos conceituais e normativos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Intencionalmente, pouca coisa.
Mas agora eu dou mais aulas, tenho esposa e filhos, recebo mais convites para apresentar minha pesquisa, mais convites para ser revisor de projetos de pesquisa, de artigos, de livros, em suma, mais coisas boas, mas que tomam tempo. Isto impõe a necessidade de algumas revisões. Escrever de madrugada, por exemplo, é raro hoje em dia (durante o meu mestrado era a regra).
Apesar da constante resistência aos convites e da constante luta para preservar um tempo exclusivamente dedicado à pesquisa, eu tive de otimizar um pouco este tempo.
Conselhos ao meu “eu passado”:
(i) Siga o conselho dos teus orientadores e escreva constantemente e de modo sério (i.e. como se estivesses escrevendo para uma audiência de especialistas).
(ii) Seja menos apegado aos textos que consideras prontos. Às vezes é melhor escrever todo um capítulo do zero do que ficar tentando remendar um texto para não “perder” o que escreveu.
(iii) Apresente os resultados parciais da sua pesquisa em eventos, para colegas, para quem quer que julgues poder fazer algum comentário inteligente.
(iv) Aproveite a liberdade que um estudante de doutorado com dedicação exclusiva tem. Estas condições não vão se repetir.
(v) Apesar da carreira acadêmica ser mais do que um mero emprego, ela não é a totalidade da sua vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos projetos. Tantos que não poderia enumerar. Um deles é escrever algo relacionando a filosofia da consciência com o processo de tomada de decisões em contextos jurídicos. Outro é estudar critérios de racionalidade, em particular a ideia de não-circularidade, e o modo como estes critérios moldam tradições investigativas.
Alguns livros. Um livro que explicasse de modo adequado a relação entre as formas aristotélicas de justiça e o direito privado e um livro que desse conta de modo apropriado de inferências abdutivas em contextos normativos seriam consumidos com avidez.