Claudio Medeiros é escritor, autor de “História da experiência das epidemias no Brasil” (GLAC, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uns rituais na verdade, não é bem rotina. A vida foi dura comigo em vários momentos, então a gente teve que aprender a se blindar, principalmente quando vou dar aula ou coisa parecida, já que a docência é uma forma de cuidado, se não tiver uma reserva, um lugar de onde tirar saúde, não acontece, não vou conseguir oferecer uma situação de cuidado e troca. Então são dias em que, pela manhã, preciso cuidar da minha cabeça primeiro, dos meus guias, e dos bichos também, cachorro, galinheiro, planta, fazer um banho, uma comida que não me deixe cansado, não beber, não fumar. É também quando regulo melhor a ansiedade. Claro que não consigo sempre esse dia ideal mas quando ele existe não está incluído um momento de escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Queria ser essa pessoa que não precisa de cerimônia para se concentrar. Escrevo à noite, o tempo passa diferente, é menos quente e tem silêncio. Também preciso de café e tabaco, e de um silêncio que vem junto com um desprezo que tenho pela solidão. Sinto que a escrita que aprofunda a solidão é extremamente desnecessária e sórdida, vira uma condição insalubre de trabalho. Então tenho que estar em contato com algumas pessoas. Perdi muito tempo comigo no doutorado. Quando terminei falei que não ia mais escrever sozinho, a não ser quando não tivesse jeito. Acabou sendo tranquilo porque encontrei poetas, filósofos, historiadores e tradutores brilhantes. Leio meus amigos, as referências dos meus amigos, converso com eles, transcrevo nossos áudios. É uma satisfação pessoal que nunca achei que teria: os escritores que leio e admiro são pessoas com quem falo todo dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não crio mais metas, escrevo quando não dá para adiar ou quando corro risco de esquecer. Diferente da leitura, escrever não é uma função vital pra mim. Tenho um prazer imenso quando encontro um livro que terminou um projeto que eu estava atrás de conceber (aconteceu recentemente com um livro do Thiago Hoshino, que inclusive está para sair), quer dizer que vou ter tempo livre. Dificilmente viveria sem um violão ou em outro país, mas viveria bem sem escrever, e digo não porque exista uma atmosfera diletante em torno da escrita (que aliás é bem primitiva), mas porque hoje o que me interessa são outras narrativas que não dependem do letramento: os códigos rítmicos nas comunidades de tambor e a memória epidérmica que eles desbloqueiam, as mitologias que são contadas em rituais através da dança, a constituição de um corpo nas tecnologias ancestrais que se atualizam no jogo da capoeira angola, esses são os livros que quero ler, é uma biblioteca muito vasta e mais sofisticada que o mercado editorial do sudeste. Cresci em casas cujo único livro era a Bíblia, então minhas experiências estéticas não passavam por isso, o que me dá hoje certa quietude e liberdade pra deixar que um livro de poemas, por exemplo, venha desde que venha junto com a diferença poética que ele pode ser capaz de oferecer. Quanto a texto de filosofia, se tenho opção de seguir o ritmo e a intensidade dos encontros dos quais eles são apenas registro, prefiro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de experimentar com colagens, recortes, vou cortando, tirando as coisas que leio do contexto e jogando, começo a brincar, escrever em cima, tipo uma pirataria, uma mestiçagem. Não tem nada de novo nisso, mas é muito divertido encontrar poemas prontos em jornais antigos, arquivo de administração pública, romances velhos que ninguém se importa, sermões de missionários. Como fui rato de museu durante um tempinho, era muito divertido. Uma vez um sujeito achou um verso do Drummond em um poema do Mármore e Barbárie e lançou em um grupo me atacando, não sei o que ele queria que eu fizesse, pedi pra ele apontar alguma coisa ali que eu não tivesse puxado de algum lugar. Alguma autoria de alguma coisa relevante na nossa cultura não é coletiva? Acho um vexame achar que você vai ter direito de propriedade sobre uma coisa sem substância nenhuma como uma língua, isso não existe. O que você pode fazer é empregar um ritmo, dar enquadramento. Ok, mas aí alguém vai dizer que o poema é um microcosmo, que ele cria sua própria escala que, por sinal, já deixaria de ser a língua e passa a ser o mercado. Bom, mas aí é a pessoa que vai ter a infelicidade de ter razão, eu não tenho nada com isso.
Eu vi um documentário recentemente, o Fartura, de uma cineasta chamada Yasmin Thayná, que era bem isso, ele era todo feito em cima de fotografias de famílias negras de subúrbio. Esse filme me ajudou a visualizar esse conceito de processo de invenção do novo que não é nenhuma criação ex nihilo. Era parte integrante da cosmologia iorubafone um conceito de criação como ato de ingestão e digestão da fome implacável de Exu, o que significa não haver criação terminada: existe criação relacional, segundo a imanência de um fluxo de comer e restituir. Toda a montagem do filme obedecia a esse princípio: uma criação que só é possível como descolamento da virtualidade de um espaço incriado (um espaço incriado que é diferente do vazio infinito dos sistemas de mundo da física). Diferente da tradição cristã, em que o motor primordial cria para preencher e substituir a totalidade do universo vazio, para o iorubafone o novo não substitui o vazio, é feito a partir de algo, extrai dele alguma coisa através da ingestão de Exu, que devolve em contrapartida uma realidade incrementada. Acho que muita coisa foi feita como resultado disso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou devagar e não gosto de fazer nada correndo, mas como todo ansioso quero terminar dentro dos prazos pra ter mais tempo livre – “acordei cedo pra me atrasar com calma”. Com o tempo me convenci de que momentos improdutivos não são necessariamente procrastinação, o que piorou tudo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É uma agonia porque costumo ler em voz alta, de cabo a rabo, a cada linha nova que aparece, pra tentar ver se tem palavra truncada, se tem quebra de ritmo. Agora, sobre saber onde parar, tem acontecido de eu me arrepender de ter publicado algo mas, sei lá, meses depois. Aí eu olho, menos afoito, e não encontro explicação pra não ter segurado por mais tempo, porque quando aquela ideia já não é tão nova fica mais fácil escrever de uma forma menos mala.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Rise Up e Docs viraram fundamentais pra poder escrever em dupla, só uso Word pra fazer fichamento. Nem eu entendo minha letra, faço notas à mão quando preparo aula ou alguma apresentação e só.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Passo a maior parte do dia lendo ou trocando áudio, as ideias vêm de forma despropositada. Meu pensamento é oral, essa coisa contemplativa não me tira do meu eixo, preciso conversar com alguém pra desativar o modo avião e começar a pensar. Geralmente faço backups de conversas que acho que podem virar alguma coisa. Com a leitura de textos é diferente: quando estou lendo as ideias aparecem sem terem relação com o que está sendo dito, eu apenas roubo a estrutura de uma frase que gostei e sujo ela, faço rasura, daí é importante pra mim ler dez coisas desconexas simultaneamente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que me levava a sério demais, não relaxava, escrevia como se fosse a última saída do mundo, como se tivesse que publicar aquilo porque aquilo tava faltando pra alguém. É uma atitude muito egoísta. Isso me deixou uma relação com o tempo que não gosto. Também tinha fé demais em fonte escrita. É péssimo e preguiçoso achar que você vai achar muita coisa em livro, ranço de acadêmico.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever o Cabocla do Castelo, que é a parte 2 do Zumbimalê Pivete. Queria muito escrever uns poemas com o poeta que mais admiro, o Marcos Nascimento, apesar de ele me dizer que já escreveu (ainda que não tenha publicado) tudo, então vou sonhar mais um pouquinho. Tem um livro, que é muito especial pra mim porque repete o conceito (quase ignorado) do Anarquia funciona, do Peter Gelderloos,e que sempre está para ser feito mas vai ter que esperar pra ver o que vai acontecer com a nossa vida agora. Esse livro seria uma triangulação com o Victor Galdino e o Jonnefer Barbosa, talvez se chame Fraude, marronagem e dissenso e seria sobre o imaginário político dos abolicionistas negros no Brasil do XIX. Dos livros que queria que existissem, o Muniz Sodré podia escrever um Pensar Bantu, a gente vive precariamente sem esse livro hoje.