Cláudia Vianna é professora associada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo, animada e com muita energia. Mas minha rotina matinal é sempre engolida pelas emergências diárias: meditação e alongamento para me manter distantes das dores de coluna, companheiras de longos anos; premências da casa; cuidado dos cachorrinhos. Mesmo assim, reservo metade de muitas manhãs para o que me exige maior concentração.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou solar, minha energia, concentração e criação nascem e se esvaem com o sol. Todos os meus trabalhos acadêmicos – relatórios de pesquisa, teses e artigos – são feitos pela manhã. Se a escrita tem prazo e é urgente, acordo mais cedo, madrugadinha. A parte mais criativa de minha tese de livre-docência, por exemplo, foi escrita das quatro da manhã até ao meio dia. No restante do dia procuro dedicar-me às tarefas mais mecânicas da escrita, como organizar referências, revisar textos. Ao me deparar com dificuldades em alinhavar minha escrita, já no fim de um dia de trabalho, largo tudo e me preparo para dormir. Acredito piamente que o sono organiza os pensamentos e desperto com uma ideia de como seguir em frente com o que não tinha antes vislumbrado. Às vezes acordo de madrugada louca por um papelzinho pra tomar notas de um trecho qualquer de texto. Não tenho nenhum ritual de preparação para a escrita. Ao contrário, vista à distância pareço – e devo ser – caótica. Se existe um ritual, ele também é disperso. Ao longo do ano faço notas de insights, de possíveis citações que me encantam, de temas que gostaria de abordar. E a partir dessas notas vou me preparando diariamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas não necessariamente escrita acadêmica. Preciso tomar notas para organizar o pensamento e para o preparo das aulas, das arguições de dissertações ou teses, das palestras e seminários. A escrita minuciosa ajuda a amadurecer o próprio pensamento. Não tenho metas diárias para a escrita, preciso das interrupções, das pausas para que o argumento se organize. Alterno períodos de leituras, pesquisas, análises com a escrita propriamente dita. O ato de escrever se constrói, para mim, com alternâncias de pequenos períodos de amadurecimento. Preciso de tempo para estruturar o tema, e o encadeamento das ideias é pausado com várias etapas para a escrita. É comum parar de escrever no meio do texto e ir para a cozinha ou para o jardim mexer com as plantas. Fazer algo com as mãos e deixar a cabeça maquinando para depois voltar correndo para o computador com uma ideia na cabeça.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começo quase sempre pelo todo. Preciso de um esqueleto, ainda que provisório, para estruturar a proposta de escrita. Depois recorro às notas e vou recheando, alterando aos poucos, com vários intervalos entre um e outro período de elaboração. Nesses intervalos necessito fazer atividades mecânicas enquanto continuo “amarrando” mentalmente as pontas do texto em andamento. Também me deparo constantemente com a necessidade de ler e reler entrevistas, depoimentos e cadernos de campo para tentar compreender lentamente o sentido das vidas e do cotidiano observado em cada pesquisa. Também necessito ampliar leituras que me auxiliem a tecer os minúsculos pontos de cruzamento entre a teoria, os depoimentos, as observações e o contexto social mais amplo que constitui o tema em foco.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Demorei a compreender, mas sou feita de travas e a escrita não foge a essa regra. A vida não é um continuum, é repleta de interrupções, especialmente a vida de uma mulher cercada de interposições dedicadas a cuidados externos, além de si mesma, por que a escrita seria? Mas não considero essas interrupções como travas, no sentido de bloqueios, e sim como pausas, pequenas paradas em um trajeto, períodos de amadurecimento, ou até mesmo necessárias mudanças de rumo. E novamente sublinho a importância do trabalho manual para destravar as ideias: cozinhar, planejar um cardápio, pintar um móvel, receber uma visita querida, plantar, regar, adubar, organizar a casa. Minha escrita precisa de tudo isso, não é feita em um período de clausura, somente a ela dedicado, é elaborada aos trancos, repleta de vidas para aquém e além da própria escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca acho que meus textos estão prontos, sempre me acompanha uma sensação de falta. Faz tempo que descobri que a escrita só pode ser boa se for mil vezes revista, é parte do processo. Ao retomar a elaboração de um artigo, relatório ou aula, começo pela releitura, mudando frases de lugar, procurando palavras mais precisas, dando novos sentidos. Faço o mesmo com minhas orientandas e orientandos e sei que quase os enlouqueço com meus cortes e reordenamento das ideias expostas. Considero a troca entre pares uma necessidade, recorro a uma leitura externa antes de considerar o trabalho finalizado. Sempre me surpreendo com sugestões inesperadas e enriquecedoras do texto, elas me ajudam a por um ponto final.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minhas notas são feitas à mão, tenho pilhas de caderninhos e blocos que levo comigo. Contudo, meus textos adquiriram outra lógica depois que passei a escrever direto no computador. Sou do tempo da máquina de escrever e, naquela época, minha escrita tinha os limites do papel, mudar o ordenamento da exposição era mais limitado. Hoje não, posso virar o texto do avesso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como diria Wright Mills, minha imaginação sociológica – ou seja, a possibilidade de desenvolver certa predisposição intelectual, procurar tratar com mais precisão o conhecimento adquirido e olhar de forma mais atenta e reflexiva minha própria trajetória profissional e acadêmica, assim como minhas ideias de investigação –, é regada a notas, muitas notas. Muitas são descartadas, mas várias me ajudam a estimular a reflexão, a evitar repetições, a vislumbrar novos temas e rever teorias e informações já apreendidas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Foi preciso um longo caminho para aperfeiçoar meu processo de escrita, muitas vezes em ziguezague, compondo uma trajetória com muitas idas e vindas. Foram inúmeros recomeços e a escrita da tese foi apenas mais um deles. E, nesse sentido, é bom reler o que já escrevi. Às vezes me surpreendo e nem acredito que já superei certos percalços da escrita, às vezes acho que nunca mais vou ser tão criativa. Mas esse caminho, apesar de singular, está entretecido com outros; contei e conto com a contribuição e a força de várias pessoas e me entrelaço a tantas outras trajetórias e diálogos que são parte importante da escrita até aqui construída.