Claudia Pucci Abrahão é escritora e dramaturga, autora de “Canto da Terra”, “Broto da Terra”, “Campo de Transe” e “Mistérios da Bússola Azul”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo bem cedo. Em geral, 05:40, porque tenho filhos em idade escolar. Começo o dia com uma saudação ao sol (postura de yoga) e um banho. Banho, para mim, é meditação. Depois, vem o café da manhã, e o dia começa.
Se acordo com uma palavra pendurada no ouvido, subverto tudo isso e só escrevo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para mim, o período da manhã é o mais precioso. Quanto mais cedo, melhor. Há alguns anos, era à noite, na madrugada, mas depois que me tornei mãe meu biorritmo mudou muito. Gosto da quietude, apesar de conseguir escrever no meio do caos. O silêncio da manhã me alimenta. Mas também posso escrever no metrô, no ápice do ruído. Depende, em geral, de estar ou não em conexão com minha casa interna.
Sobre ritual, cada vez mais o que faço é me colocar em estado de escuta. Meu ritual é esvaziar, o que não é fácil. Se não consigo de vez, começo a pintar. Aquarela. Não tenho nenhuma técnica, apenas fico brincando com a tinta, às vezes desenhando algum cenário do livro. Algo para ancorar a mente macaca. Em geral, funciona.
Então, fico atenta às primeiras palavras que me vem à mente. Antes, no começo da minha carreira, não atendia a isso. Hoje sei o quanto elas são valiosas. Uma única palavra ou frase que chega é como uma chave dourada: se eu a pesco nesse oceano, ela abre a porta que me levará para onde eu tenho que ir.
Por isso, meu maior ritual é o silêncio interior. Depois, a escuta. Em seguida, o servir a tudo o que vem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se eu tivesse uma meta diária, iria parar de escrever. Sou subversiva. Anarquista. E, paradoxalmente, muito disciplinada. Mas não pode ser imposto, muito menos por mim mesma. Entendo quem trabalha com metas diárias, mas isso me coloca numa pressão prejudicial.
Eu escrevo por necessidade.
Necessidade interna e externa.
Contudo, como também escrevo por encomenda, os prazos são parte do meu dia a dia. Gosto deles. São eles que me ajudam a focar. Mas a meta diária me engessa, me dá ansiedade. Prefiro uma meta semanal, que me dá margem de manobra, e me permite atender às flutuações do fluxo de energia, e respeitar momentos em que não posso fazer muito. Quando a meta é semanal, existe o ancoramento no tempo ordinário, mas não caio na mecanicidade.
Ter um projeto claro ajuda. Se não tenho uma imagem desenhada do sentido de escrever determinada coisa, engaveto. Em geral, esse projeto envolve outras pessoas. Sou uma pessoa gregária, me ajuda muito escrever quando é para alguém, para um evento, para uma editora, para um grupo de teatro, para um fim específico que não seja só escrever por escrever. Isso me move.
Em geral, não passo um só dia sem escrever alguma coisa. Mas essa “alguma coisa”pode variar entre um trabalho de escrita, um poema, uma crônica, e até uma postagem em redes sociais. Sim, eu penso literariamente para fazer posts. Sou essa pessoa que edita posts. Até comentários meus em posts alheios. E ainda escrevo no meu blog, porque eu amo blogs. Amo e espero que a cultura dos blogs volte. Porque é mais organizado, mais silencioso e muito mais legal que a vida esparramada multifoco das redes sociais.
Isso tudo que escrevi acima vale para os dias corriqueiros.
Mas…
Se eu estou escrevendo um projeto autoral, um livro, a coisa muda.
Já cheguei a ficar 18h seguidas escrevendo sem comer. E sem sentir fome.
Quando escrevi meu último livro, “Mistérios da Bússola Azul”, escrevi por um mês uma média de 10 horas diárias, e só parava porque tinha que atender aos meus três filhos. Quando eu mergulho de verdade em um universo, sou abduzida por ele. É até difícil dividir com qualquer outra coisa, o que acaba me gerando alguns problemas, porque não sou sozinha no mundo. Estou agora buscando um equilíbrio para escrever e ter uma vida ao mesmo tempo (essa frase é de uma amiga, também escritora, Sabine Mendes Moura)
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu começo recolhendo impressões.
Às vezes parto de um tema específico ou de um estímulo. Às vezes, como foi o caso de duas peças teatrais que escrevi, parto de uma imagem: Boulevard Corner Palace partiu de um coração humano num balde de gelo; Na Gira Reta do Delírio partiu da cena final: uma porta-bandeira girando, na avenida, enquanto todos as suas alegorias saltavam do corpo. Jukebox, outra peça teatral, começou de uma premissa: uma mulher acorda e está presa dentro de uma máquina de Jukebox. Como ela sai dali? Mistérios da Bussola Azul, um romance fantástico, partiu da comoção que eu senti ao ouvir uma canção popular, uma moda de viola, que me levou ao universo das comunidades ribeirinhas.
Sair da pesquisa para a escrita não é difícil, porque uma coisa acaba estimulando a outra. E, para mim, não é difícil começar se eu tenho um prazo, um compromisso com alguém. Se tenho todo o tempo do mundo, é mais difícil, a inércia ganha. Acaba ficando para o final da fila, mesmo sendo o que mais tenho vontade de fazer. Para que alguma criação minha exista, em geral preciso me comprometer com outras pessoas. É um “método pessoal”. Uma vez com prazo, passar da pesquisa para a escrita não é um problema, mesmo experimentando alguma inércia, ou aquela sensação de não ter pesquisado o suficiente.
Da pesquisa para a escrita eu me movo assim: já vou colhendo, da pesquisa, o livro, a peça. Se algo da pesquisa me inspira, já escrevo na hora. Mesmo sem saber onde o trecho vai entrar. Às vezes, esse trecho despretensioso e inspirado é a porta de entrada para a história inteira. Então sempre faço a pesquisa ser mais que informação, mas fonte de inspiração para textos soltos. Dessa forma, já comecei, e uma etapa não fica desconectada da outra.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso já foi muito sofrido para mim. Tinha a sensação de estar “fritando um ovo na cabeça”. É insegurança. Sei que isso tudo vem do ego, e já aprendi a diferenciar o que vem dele, (em geral oscilando entre a euforia e a ansiedade) e uma voz bem mais sutil, que é a que me sopra o texto. Se me pego preocupada com o “depois”, eu sei que quem está no comando é o ego. Se eu estou feliz em estar escrevendo aquela parte, sei que estou no lugar certo. O que me ajuda a diferenciar uma coisa da outra é um trabalho espiritual constante, e foco. Quanto mais estou dando voltas na “carreira”, em como estou aparecendo para o mundo, mais dou corda para essa ansiedade. Se, ao contrário, fico com o foco no “para que” escrever, especialmente aquela história em especial, o que quero proporcionar com aquilo, ou seja, se coloco a atenção no que tenho para DAR, e não para RECEBER, eu relaxo. Porque não posso ser diferente do que sou. Nem que eu queira. O que acontecerá depois não está nas minhas mãos, apenas o trabalho. E melhorar, depurar a escrita, sempre. E focar nisso relaxa e abre espaço para o que interessa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Varia muito. Se é um texto curto, reviso muitas e muitas vezes. Um poema posso revisar até sentir que nenhuma palavra está fora do lugar. Mas um livro (especialmente se tem prazo) reviso três vezes. A primeira vez é quase uma reescrita. A segunda é um ajuste. A terceira é um pente fino. Depois da terceira, já não aguento mais. Ou, às vezes, quem não aguenta mais é a editora.
Sim, mostro para o maior número de pessoas possível. Adoro ouvir feedbacks, mesmo que eles me façam rever todo o texto. Sempre agradeço uma opinião que me faz reconstruir tudo, porque isso não seria possível depois da publicação. Como comecei escrevendo para o teatro, isso é bem normal para mim, e até desejado. O diálogo com leitores me faz melhorar, ainda que possa dar um certo desespero (dependendo do que se escuta). Isso, para mim, é essencial.
Tenho uma história sobre isso. Meu primeiro livro publicado foi um relato poético sobre minha vida pessoal, com o recorte do parto dos meus três filhos, que foi em casa. É engraçado, porque antes disso eu sempre escrevi ficção. Quando precisava fazer a revisão final para enviar à editora (e estava enrolando, porque já não aguentava mais o livro), foi justamente o fato de ter mostrado para um amigo que me fez querer terminar. Ele disse que havia conseguido se colocar na posição de uma mulher, e que tinha mais vontade de dar o livro pro pai dele que pra namorada. Aquela perspectiva – a de possibilitar aos homens o acesso ao universo feminino – me deixou tão animada que foi o gás que faltava para terminar o livro. Também já ouvi retornos que me fizeram reescrever muito, cortar partes enormes, tirar ou fundir personagens, e muitas outras mudanças que me fazem quase entrar em desespero num primeiro momento (pelo trabalho que pedem), mas que depois fazem a narrativa muito melhor.
Eu sirvo à história. E quanto mais puder depurá-la antes de publicar, melhor. Cada pessoa tem uma visão de mundo, uma perspectiva, e sempre soma.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo no computador. À mão, faço anotações de leituras, pinturas de aquarela, esboço estruturas ou rabiscos mesmo. Só escrevo no caderno quando estou longe do computador e não quero perder as palavras que chegam.
Quando adolescente, estudei piano. Uma das coisas que mais gostava era quando já tinha a música toda decorada, “nos dedos”, e podia apenas tocar. Escrever no teclado me dá essa mesma sensação, a de estar tocando uma música. Coisa que não acontece na escrita a mão. Também gosto da facilidade de edição rápida: mexo e remexo muito, mesmo nas primeiras palavras. Mudo frases de lugar, troco, apago, volto. Essa fluidez só é possível no computador. Mas ele também me cansa, e, quando isso acontece, preciso tomar um ar.
Quando estou saturada, danço, mexo o corpo, ou vou para o papel e pinto. Desenho. Busco imagens, ouço músicas, escrevo no caderno palavras soltas. Meus cadernos que acompanham os livros são caóticos, colagens, desenhos, notas. Só fazem sentido para mim, mas carregam a atmosfera que me acompanhou por todo o processo criativo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Para mim, criatividade é sinônimo de vida em conexão. Quando estou alinhada com quem sou de verdade, minhas ações reverberam isso. Viver assim já me inspira. Quando estou com a vida muito amarrada, mecânica, “modo check list”, é difícil me inspirar com algo. Mesmo um projeto criativo, se entra nessa toada, perde todo o sentido. É como capturar uma borboleta azul e pregar num quadro, querendo que ela fique viva.
Então fica o dilema: como manter o ritmo e a constância criativos sem que isso se torne uma prisão?
Como já disse antes, aprendi a diferenciar assim: Tenho que me sentir realizada no aqui-agora. No que estou fazendo, em cada palavra que escrevo, e não lá na frente, imaginando o que pode acontecer comigo a partir desse trabalho. Se o meu foco é somente a “recompensa futura”, para mim é sinal que não estou criando a partir de um lugar de conexão, é o ego no comando, e isso causa problemas. Causa insatisfação constante. Então, ao sentir isso, preciso fazer um ajuste. Entender o sentido maior daquilo. Ter a coragem de se perguntar se aquela escrita faz sentido, literalmente. E quando estou feliz “só”por estar fazendo, quando o próprio processo criativo me alimenta, é porque estou partindo de um lugar de potência. Mesmo assim, haverá resistência, mas não dá a sensação de estar sendo escrava de um devaneio, correndo atrás de uma cenoura.
É uma percepção delicada, porque o lugar de inspiração, para mim, é uma entrelinha entre a liberdade e a disciplina. É necessário ter um norte, um projeto em mente (ou mais de um, dependendo do momento), dedicar-me a alimentar esse mundo diariamente: leituras, músicas, pesquisas e uma checagem constante do que tudo isso tem a ver comigo. Isso é importante, sempre. Ver se aquele projeto vem de dentro, ou se é só um capricho. Se ele está alinhado com algo que é essencial para mim, as palavras vão chegando. Eu sinto arrepios. As sincronicidades acontecem. E quando isso começa a operar no “mundo de fora”, sei que estou no lugar adequado, e essa magia me contagia e alimenta. É daí que vem minha inspiração. Mas para que ela flua, não dá pra controlar. Só escutar.
Um hábito saudável é acordar todo dia e meditar, mesmo que seja só por 5 min. Nem que seja uma intenção que faço na hora do banho. Acordar e não entrar no piloto automático, mesmo que tenha que sair da cama meia hora mais cedo para poder ter esse momento. E pedir. Eu sempre peço para que as palavras que precisam ser ditas venham na minha mente. E sirvo ao que vem. No começo era difícil, porque nem sempre era o que eu imaginava que iria escrever. Mas já aprendi que assim as coisas fluem mais, e vão para onde tem que ir.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A confiança nesse fluxo. Antes eu demorava para entender que uma primeira ideia, por mais louca que fosse, era a porta por onde eu teria que entrar. Ficava muito preocupada em agradar, e isso me tirava do eixo, da escuta. Meu livro de fantasia, Mistérios da Bussola Azul, que eu pretendia ambientar num universo totalmente imaginário – e com referências da cultura celta – , me levou para as matas brasileiras, para questões socioambientais. Eu aceitei. Antes, acharia que estava saindo completamente de foco.
Se eu pudesse voltar lá no começo, diria: “Confia. Porque fiar com é compor com o invisível, e assim é muito mais gostoso.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos. Tenho um ensaio sobre a peça Romeu e Julieta, de Shakespeare, que pretendo publicar, mas ainda não consigo focar para voltar a ele. Também pretendo escrever a continuação de Mistérios da Bússola Azul, que é uma trilogia. Para isso, preciso me aprofundar em estudos místicos que ainda estou no comecinho, em questões políticas que me doem muito e necessitam coragem para mergulhar e, principalmente, numa visão de futuro que foque na reconstrução. Ainda não tenho uma imagem clara disso, mas tenho pedido por essa inspiração.
Também gostaria de voltar à dramaturgia, porque tenho saudade das salas de ensaio. Tenho uma peça teatral em esboço, onde pretendo explorar uma história em múltiplos planos temporais. Tudo isso junto a um novo projeto para o qual estou pesquisando a criação de narrativas (com linguagem oral) para podcasts. Esse é um desafio que me instiga: escrever para palavras que serão contadas, sem imagens de apoio, num meio eletrônico. Pensar a palavra como fala e como música, a potência da sua sonoridade, tão usada pelos contadores de história.
Eu adoro essas mesclas, essa palavra que passeia. Palavra que sai da música e vira fala: O ato de se contar, a vida em sotaque, pérolas colhidas em depoimentos de documentários, linguagem que também experimentei.
Tudo isso junto, observando as várias facetas do lírico.
Eu vivo no através, saltando de um campo para outro, entendendo como a poesia pode se metamorfosear em tantas coisas.
No meu trabalho, isso também se vê. A minha poesia não se contenta em ficar parada. Um mesmo texto pode estar em vários lugares. Um poema autônomo vira abertura de livro de relatos pessoais sobre partos em casa. (Canto da Terra). Uma peça de teatro escrita no gênero “dramático” (diálogos e jogo de cena) explode, no seu fim, para o lírico em solilóquios. Esse solilóquio torna-se um poema autônomo descolado da peça, como é o caso do texto Jukebox. Uma canção escrita como poema para a história de um livro é musicada e vira videoclipe (“Anjo em Barro”).
Poemas podem também partir de comunicações profundas. Sim, eu converso com meu mundo interno. Um canto de mulheres sacerdotisas é soprado no meu ouvido enquanto elas se apresentavam a mim. “De onde isso vem?”, me pergunto. Visualizo. Esse canto vira espaço, vira um lugar sagrado onde uma personagem do livro chega se transforma. Torna-se o Templo Daquelas que Riem, de Mistérios da Bússola Azul.
Também escrevo “poemas – poemas” Começam e terminam (por enquanto) quietinhos no mesmo lugar. Partem de transbordamentos. Partem de momentos em que, mesmo tomada pelo cotidiano, a palavra voa. Quando me permito lembrar de quem sou e descansar no estado de poesia que colou em mim logo ao nascer, mas que às vezes me esqueço por me achar irresponsável por ser tão leve num mundo de densidade.
Ainda bem, a lua sempre me captura. Então volto pra casa.
A poesia não acontece em mim sem chamado.
Mas (ufa), às vezes ela faz visitas sem que eu tenha um café com mesa posta. Então é ela que me convida.
E paro
Para parir.
Porque uma coisa eu sei: ela é musica que nasce de mim.
Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro que conta como nossa humanidade conseguiu sair de tanta densidade e chegou à nova Idade de Ouro.