Claudia Letti é cronista, autora de Coisa Abstrata (1983) e Onde Não se Responde (2004).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Ah, quem dera… Gostaria muito de ser mais disciplinada e ter uma rotina. Até mais que isso: gostaria de ter disposição matinal. Sou um ser noturno, então, geralmente reservo as manhãs pra responder clientes, alinhavar agenda, fazer ligações, deixar o dia livre para o trabalho andar. Respondo os e-mails por último porque já tento engatar em alguma ideia que quero escrever ou para elaborar releases ou textos para clientes – ou estudar astrologia, outra área onde atuo. Mas é depois do jantar que me debruço sobre a minha escrita – não de outros ou de eventuais consultorias de escrita criativa -, mas a minha escrita, comprometida apenas comigo, com o que eu quero realmente dizer.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A madrugada é uma bênção para pessoas com meu relógio biológico. Se não der pra ser na madrugada, que seja à noite. A noite é sempre uma janela cheia de possibilidades onde quase nada me dispersa. Passo um café ou sirvo uma taça de vinho, tiro o celular da mesa, coloco um mantra pra rodar e geralmente escrevo em corpo de e-mail – detesto a preocupação de ficar salvando continuamente, o Gmail faz isso por mim. E, se não consigo escrever um paragrafo que seja, alinhavo as ideias que já tenho. De algum jeito a escrita brota.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já tentei ter meta diária mas não rolou. Escrevo aos borbotões, em grandes enxurradas de palavras, parágrafos completos que duram de 1 a 3 horas. Depois deixo o texto dormir. Esta, aliás, é uma prática que insisto pra quem quer escrever porque quando você toma distância do texto, tira dele os excessos – ou enxerta o que falta – e pode trabalhar melhor naquilo que realmente pretende dizer. Um ou dois dias depois da escrita parida é quando os erros, todos eles, seja de concordância ou de interpretação, aparecem aos meus olhos e vou costurando, cortando. Escrever é cortar, já dizia Drummond, e essa é outra mania que tenho. Escrevo sem pensar muito, numa overdose de palavras. Cortar depois é mais fácil, produtivo e deixa o texto mais fluido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A ideia é sempre a primeira: caminhando, no supermercado, na academia, assistindo um filme, num bate papo, ela vem. E quando a ideia me assalta, escrever fica fácil. A pesquisa entra automaticamente junto pra saber melhor sobre o fato, o tema, a palavra. Escrevo e pesquiso no mesmo fôlego, nem saberia separar uma coisa da outra. Também começo pelo final, invariavelmente. Trabalhei muito tempo com TV e jornal, onde aprendi muito e também participei de algumas peças publicitárias, o que me faz dar ênfase ao final do texto. Preciso que o final faça todo o sentido. Claro que é uma mania até non sense eu diria, quase um vício que acabou se transformando numa técnica auxiliar. O começo é sempre o último a comparecer. Tem um texto (meu), “Estreia” que explica melhor: “(…) o que se ausenta de mim é a primeira palavra, – ignorada.” O meu processo é basicamente esse.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Admito que trabalho bem melhor sob pressão. Procrastino até o último minuto e quando vejo que não tem mais como adiar, a escrita sai. Atropelada e que precisará de várias suturas e enxertos, mas sai. Talvez por ser muito ansiosa eu prefiro ser, basicamente, uma escritora de crônicas (alguns contos), justamente para não precisar lidar com projetos muito longos que geram mais ansiedade. Meu trabalho se dá em pequenas doses, em drágeas que manipulo conforme a necessidade. Teve um final de ano que resolvi escrever um livro de receitas (Tricotando na Cozinha, Histórias e Receitas) em setembro e, como o prazo era apertado porque deveria ser impresso antes do Natal, tive que lidar com o tempo e sua rédea curta. O jeito foi escrever seis ou mais horas por dia. Mas, mesmo assim, a produção cresceu na última semana, quando o livro finalmente tomou forma. E, claro, quando pego trabalhos com prazo, não tem jeito, viro a noite se preciso – geralmente a noite anterior (risos).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso quantas vezes eu tiver tempo pra isso. E mesmo depois de publicado, acho que poderia ter uma coisinha aqui e ali, uma vírgula que seja, a mais ou a menos. Por isso gosto de deixar o texto dormir, me afastar dele ao mesmo tempo que ele fica comigo ainda, me ditando algumas coisas que eu poderia acrescentar ou escrever de outra forma. Esta entrevista por exemplo, dormiu dois dias. Só depois é que tentei melhorá-la cortando e/ou mudando palavras.
Mostro meus textos pra minha filha que é historiadora, escritora de mão cheia e que também trabalha com conteúdo; ela tem um olhar mais crítico e politizado que me ajuda muito. E também peço a leitura preciosa de uma amiga de muitos anos, que considero uma irmã, cuja formação passa bem longe da literatura ou da escrita. Talvez por ter um olhar exclusivamente leitor, ela consegue pontuar onde há falta de entendimento e até de excessos no meu texto. Costumo dizer que o ela é meu termômetro, porque ajusta o que quero passar para quem lê.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já usei muito iPad mas hoje, sempre no computador – embora a minha relação com ele seja bem enxuta, uso o essencial – word e navegador – que é o que eu preciso, de fato. Escrever à mão gera uma certa ansiedade – e eu já sou muito ansiosa – porque quando a minha cabeça já terminou de “ditar” um parágrafo inteiro, a mão ainda está escrevendo a primeira frase. Digitar é bem mais produtivo. Na verdade, nem sei se ainda tenho caligrafia pra escrever à mão, porque tem coisas que escrevo que nem eu decifro depois, imagina se eu fosse rascunhar…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A rua, o cotidiano e as pessoas são minhas melhores fontes. Alguns sonhos também. Como tenho certa dificuldade com o ficcional, tiro a escrita das cenas que eu vejo e daquilo que escuto. Um lugar, no supermercado, no elevador, num filme, tudo é cenário. As vezes, de uma frase dá pra montar uma “teoria” e sai uma crônica. Noutras, a escrita está pronta, toda arrumadinha na cabeça mas ela não consegue estrear, não entra na roda e fica lá até um próximo convite. Ou até nunca.
O meu hábito mais importante, que desenvolvi nos últimos tempos, aliás e tem dado resultado, é mandar mensagens de WhatsApp pra mim mesma (criei um contato que chamo de “Notas”). Quando surge uma ideia que pode dar samba, mando uma mensagem pra “Notas” e passo pro computador antes de colocar o celular no silencioso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria, leia mais, bem mais, não pense que só porque você é uma leitora acima da média, pode ler menos. Leia muito mais. E leia também os escritores que você não gosta porque é sorvendo vários estilos e linguagens que se lapida o próprio. E espere mais uns anos para lançar seu primeiro livro (que foi em 1983), não se dê por pronta ou preparada tão cedo mesmo que as pessoas que gostam do que você escreve digam que sim. E escreva, escreva sempre mais e sem medo, sem constrangimentos. Só escreva, sem pretensão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho três projetos na gaveta que me deixam culpada por não tirá-los de lá e procrastinar tanto assim. E essa culpa não me permite juntar mais um projeto, que fica cada dia mais longe de realizar, que seria reunir as minhas três atividades – gastronomia, astrologia e escrita – num livro só. Quem sabe, hora dessas eu desembeste essa fila de espera e esse projeto que nem ouso desejar muito, nasça bonito na sequência.
Não sei se eu gostaria de ler um livro que ainda não existe. O que eu sei é que existem milhões de livros que eu gostaria de ler e, que nunca terei tempo possível pra tanto, o que me causa até certa aflição. Tivesse todo o tempo do mundo, eu leria um mundo de livros e talvez escrevesse mais.