Claudia Dugim é queer e professora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Pelo menos em quatro dias da semana minhas manhãs são bem corridas, pois começo a dar aula às sete. Nos dias em que não dou aulas pela manhã, costumo tomar um café da manhã bem reforçado antes de escrever um pouco, depois eu paro e tomo outro café da manhã e por fim como mais alguma coisinha porque sou um hobbit.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto mais de escrever pela manhã, mas ultimamente tenho preferido sentar e escrever de qualquer forma, sem pensar se será ou não mais produtivo. Eu não tenho um ritual de preparação, mas tenho um ritual de concentração quando estou me dedicando a um projeto específico, no caso de ser um conto, eu releio tudo o que escrevi antes de retomar. Quando escrevo um livro, costumo avaliar o planejamento, o ponto em que parei e reler capítulos anteriores. Essa rotina me faz imergir na história e ser mais coerente, diminuindo possíveis interferências do meu estado de espírito na trama ou nos personagens.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas diárias, por causa do trabalho, coloco metas nos projetos, e sigo o cronograma que determino. Eu reescrevo muito, até cansar, porque sou devota de São Dalton Trevisan, patrono dos que reescrevem, então há dias em que na verdade eu não escrevo nada novo, só reviso o que já fiz, neste tipo de processo é difícil dizer quanto foi escrito. O meu livro Matando Gigantes foi reescrito cinco vezes, acho que foram mais de duzentas mil palavras até o resultado final.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa para mim é inspiradora, às vezes a idéia vem da pesquisa, como escrevo ficção científica um artigo com uma nova tecnologia pode ser bem inspirador. Por exemplo, a inspiração para o conto Ronda, sobre uma transsexual com superpoderes, veio depois de ouvir por puro acaso um podcast sobre microbiologia de alunos da UFRJ. Também não é difícil começar, tenho muitas ideias anotadas aleatoriamente que costumo costurar no texto. Não vou dizer que não procrastino, mas quando me decido eu não faço nenhum ritual, escrevo onde e como posso. Lembro de escrever meio capítulo de livro numa visita à minha prima, enquanto ela cuidava do jardim e discorria sobre hortênsias, o capítulo já estava planejado então só segui o baile, parava aqui e ali, para opinar sobre as flores como se estivesse ouvindo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que parte desta pergunta respondi na anterior. Na minha idade, tenho 61, não dou a mínima para as expectativas dos outros, nem as minhas, estou vive e produzindo, cada dia é lucro, escrevendo ou não. Lógico que fico frustrade se percebo que não alcancei o objetivo que me propus ao iniciar o projeto, jogo fora o que fiz sem remorsos e refaço. Já escrevi quatro livros, embora só um tenha sido publicado, três coletâneas de contos de autores diversos, a primeira individual publicarei no próximo ano, acho que justamente por não ser jovem, não tenho essa vontade incontrolável de acabar logo e publicar, se não está bom, deixo na gaveta mais um pouco, se preciso pensar melhor na ideia, o que está acontecendo com o novo livro que estou escrevendo, são dois anos pensando na história e planejando, então que a história espere até que possa retornar a ela, a história não manda em mim, eu mando nela, mais ou menos isso. Quanto aos bloqueios criativos, minha solução infalível é exercício, seja caminhadas (difícil em termos de quarentena), seja limpar a casa ou dançar qualquer coisa, o sangue circula e o cérebro trabalha melhor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como já disse, reviso infinitas vezes, tantas quantas necessárias, mas também chega um ponto que digo a mim mesme que já está de bom tamanho e toco o fod*-se. Sobre a segunda pergunta – Nossa! Eu queria essa confiança e a perfeição de uma deidade para não precisar da opinião de ninguém, mas como sou só um ser humano qualquer não dispenso leitura beta, o ideal para mim são quatro pessoas, duas leigas e duas com algum conhecimento de escrita, leitura sensível, se necessário, e por fim leitura crítica. Como pago por tudo isso? Em prestações, tem gente que compra par de tênis no cartão de crédito, eu compro opinião alheia.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho vários cadernos de notas e planejamento, não compro cadernos específicos, uso os que tenho até que acabem, as vezes cada caderno serve para dois ou três projetos, não sou muito organizade com anotações, anoto ideias em qualquer lugar e guardo as notas em lugares diferentes, quando vou escrever saio procurando onde anotei. Para escrever, só computador, eu ganhei uma máquina de escrever dos meus pais quando tinha quinze anos, na época era uma necessidade saber datilografia para conseguir um emprego, e nunca mais escrevi histórias à mão. Nunca escreveria em máquina de escrever, é um saudosismo artificial, de quem não passou a juventude trabalhando como datitografe e ralando os dedos naquelas teclas duras. Uso drive e word, meus amigos me recomendaram alguns aplicativos para planejamento, mas eu preciso ver o mapa todo de uma vez em tamanho grande na parede.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de qualquer lugar, um podcast, uma música, um poema, uma pessoa no ônibus que me chamou a atenção, por exemplo, Bebês e Gatinhos Espiralam no Torno, que está na pequena coletânea Rede Vermelha na Amazon, surgiu de observar numa viagem de ônibus uma mulher que voltava no trabalho, mas nada no conto sugere uma viagem de ônibus ou uma mulher como aquela. O melhor lugar para mim são galerias e museus, sempre gostei de artes visuais, cinema, séries, shows, exposições, performances etc, felizmente moro em São Paulo e bem próximo ao Centro onde museus são fáceis de chegar e de graça, o próprio Centro de São Paulo é uma grande fonte de inspiração para mim, desde a adolescência.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu caso com a escrita sofreu uma separação de mais de 20 anos, eu parei de escrever ao final da década de 80 e nos juntamos novamente em 2009. A volta teve como inspiração meu filho, adolescente nos anos 2000, que me pedia para ajudá-lo com a construção das histórias para as mesas de RPG. Eu me arrependo muito de não ter estudado teoria literária antes de voltar, de ter lido textos técnicos, de ter feito bons cursos com pessoas realmente profissionais. Só fui fazê-lo em 2012, então perdi três anos escrevendo porcarias que enterrei num túmulo em Chernobyl sob protesto dos russos que acham que meus textos desvalorizam o lugar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tem um projeto que quero muito fazer, ele está todo planejado, mas tenho outros projetos na frente dele, como encerrar a terceira reescrita de 70% Água, meu próximo livro, revisar os contos para publicar a coletânea, a segunda parte da Bandeira Manchada de Sangue. Eu gostaria de ler um livro escrito por gente da periferia falando de gente da periferia, porque me espanta muito que mesmo a cultura e o pensamento periférico tenham que ser apropriados por pessoas de classe média, que nunca puseram os pés nos subúrbios pobres, nem mesmo na badalada Perifacon, para que a cultura periférica tenha reconhecimento.