Clarissa Wolff é escritora, autora de “Todo mundo merece morrer” (Verus, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A única parte fixa da minha rotina matinal é que, seja dia de semana ou fim de semana, eu acordo e checo as notificações no celular enquanto enrolo por algum tempo antes de sair da cama.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando não trabalhava, gostava muito de escrever de madrugada. Morava com meus pais e era o único momento do dia em que a casa caía em silêncio total. Gosto do silêncio e da solidão quando escrevo. Atualmente, o horário não faz diferença, mas preciso me sentir descansada. Escrever usa muita energia, e eu sinto que se eu estou cansada, irritada, meio doente, por exemplo, não consigo escrever direito. Textos que não são de ficção até podem ser trabalhados nesse estado se for extremamente necessário (e com alguma perda na qualidade), mas ficção é impossível, não consigo. Meu ritual de preparação pra escrita se chama procrastinação: quando sei que preciso escrever é quando resolvo dar uma olhada no feed do Facebook, ver se saiu um vídeo novo no YouTube, checar o que andam falando no Twitter… é uma guerra interna entre o arquivo do Word, minha consciência de que preciso escrever, e aquela parte de mim que quase foge da necessidade – e essa necessidade vale também para aquela necessidade interna que move quem escreve. Mesmo em momentos de inspiração a brancura da página falsa no computador assusta. Por isso, com frequência escrevo textos curtos ou ainda rascunhados nas notas do Mac, parece menos intimidador. Loucura, né? Mas enfim, procrastino muito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou de férias ou não estou trabalhando por algum motivo, escrevo quase todos os dias. Quando estou trabalhando, na rotina normal, é mais difícil escrever todos os dias porque chego cansada. Costumo escrever mais de quinta a domingo, então. Com textos de não ficção (para algum veículo, para a minha coluna na Carta Capital etc), em geral quando sento para escrever já sei o que o texto vai dizer e vou do início ao fim em uma tacada. Alguns textos – como o que escrevi para a Cult sobre a Sylvia Plath – são mais difíceis, por algum motivo ou outro (no caso, por se tratar de escrever sobre a minha escritora favorita) e então não saem de uma vez só, mas é exceção. Com ficção, é diferente. Quando a história ainda não está clara na minha cabeça, só escrevo cenas soltas que já aparecem prontas, e daí não me cobro metas de escrita. Quando o que vai acontecer já está mais ou menos delineado e a história já tem um esqueleto, tento sim me estabelecer metas pessoais que façam a história ir adiante como precisa seguir. Mas sou bastante autoindulgente, se naquele dia estou cansada, por exemplo, tudo bem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu amo a parte da pesquisa, porque eu sempre fui uma pessoa obcecada. Quando eu era pequena, eu tinha fases em que queria entender tudo sobre alguma coisa e ficava pesquisando e escrevendo em cadernos. Enchi um caderno inteiro sobre o Egito e outro sobre felinos antes de fazer dez anos. Essa parte da pesquisa é sempre uma delícia. Fico horas pesquisando quando faço pautas para entrevistas, gosto de ler muito antes de escrever artigos sobre qualquer coisa. Com textos de não ficção, de novo, é bem mais fácil. Em algum momento da pesquisa acontece uma virada de chave e eu passo a saber exatamente o que o texto vai ser e como ele vai ser conduzido, então é só sentar e botar no papel, o que acontece com relativa facilidade. Em textos de ficção, eu vou pesquisando e salvando matérias sobre assuntos que me interessam e que quero utilizar na história. Para o livro que vai sair esse ano pela Verus (Grupo Editorial Record) era um pouco mais fácil, porque ele é fragmentado. Mas a protagonista da história que eu quero escrever agora é bailarina, e eu nunca fui: então imagina a quantidade de livros e textos sobre o mundo do ballet que ando consumindo! Tem outros temas que sei que quero tocar em histórias no futuro – genética, a privacidade nas próximas gerações, a tecnologia com inteligência artificial, enfim. E são temas que eu não domino. Então vou acumulando textos e mais textos. É difícil explicar o momento que paro a pesquisa para escrever porque eu tenho dificuldades de entender quando posso parar de pesquisar – de novo, pessoa obcecada. Mas vou sentindo determinado nível de familiaridade que me permite trabalhar o texto. Mas a pesquisa nunca para, escrevo e pesquiso ao mesmo tempo conforme a história avança, tudo se retroalimenta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É claro que eu também fico ansiosa e com medo de não corresponder às expectativas, mas isso só costuma aparecer depois que eu já escrevi e o material está encaminhado para a publicação. Então isso não afeta o processo de escrita – quando escrevo, raramente entro em contato com o mundo lá fora e tudo o que penso é interno. Mas a procrastinação é o meu mal do século. Puta merda, esse é meu maior problema. Acho que vem da consciência de que escrever ficção, para mim, não é algo suave e despende muita energia. Eu preciso escrever, vem de uma necessidade interna muito grande desde que sou muito nova. E escrever me faz bem, é algo que eu preciso para me sentir completa, mas os momentos antes de começar a escrever sempre causam uma inquietação diferente. Acho que é um pouco de medo da entrega para o texto, sabe? Mas não sei, pode não ter nada a ver com isso. Vai entender.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Com textos para internet, reviso poucas vezes, para ser sincera. Gosto de dormir um ou dois dias e reler com a cabeça mais limpa, ajuda a perceber nuances e coisas que poderiam mudar. Com o meu livro, depois que terminei o primeiro rascunho, imprimi, deixei o manuscrito dormindo por um ou dois meses, e depois passei um mês revisando ele todos os dias sem parar, incontáveis vezes, até sentir que podia enviar. Sempre mostro os textos para minhas melhores amigas (Amanda e Marina), que também escrevem (e muito bem). Às vezes peço ajuda para escritoras que admiro (mandei o texto da Cult para a Fabiane Secches, já mandei um conto para a Lucrecia Zappi, enfim), mas isso rola menos porque não gosto de ficar incomodando. Mas adoro essa troca. Em geral, as sugestões de alterações que recebo são sempre maravilhosas e costumo acatá-las.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador. Parece que flui melhor – digito muito rápido e à mão escrevo muito devagar, acabo perdendo frases inteiras com a demora.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Bom, eu já disse que sou obcecada, então minha pesquisa eterna (seja qual for o assunto) impacta na minha criatividade. Também acho que ler ficção interfere positivamente. Mas eu sou meio fantasiosa nesse sentido de pensar como sou criativa ou de onde vêm minhas ideias. A sensação que eu tenho é que eu não “crio”. As coisas aparecem prontas para mim e eu preciso só transformá-las em história. Sabe aquelas pessoas que falam sobre decidir matar ou não um personagem? Para mim isso é muito louco. Eu não consigo ser deusa nas coisas que escrevo, meu poder de decisão é muito pequeno. A história parece que já está pronta, a minha responsabilidade é só encontrar onde ela está e passar para o papel.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Eu li “fanfics” em vez de tese pois é isso que escrevia quando era mais nova. Escrevo historinhas desde muito pequena, mas foi lá pelos doze ou treze anos que conheci o mundo de fanfics e comecei a me dedicar diariamente para escrever. Eu acho que meu processo em si mudou muito pouco, mas naquela época eu tinha um tipo de confiança que vem da ignorância do mundo literário que eu sinto um pouco de falta. Eu escrevia muito mal – quer dizer, eu tinha treze anos – e publicava na internet achando tudo incrível. Eu não sei se diria alguma coisa além de me mandar continuar. Escrevi tanto e por tanto tempo tão mal que acabei aprendendo a fazer direitinho, sabe? Se eu não tivesse escrito aquelas milhares (sem hipérboles, é real isso) de páginas, talvez não tivesse exercitado tanto. Então até gosto de ter sido tão ruim. Todo mundo melhora com esforço.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que quero fazer e ainda não comecei é essa história nova sobre a bailarina. Quer dizer, comecei a pesquisar, tenho algumas cenas soltas, mas ainda não consegui estruturar o esqueleto, então considero que ainda é um embrião. A gestação mal começou. Outro projeto que quero lançar em breve é sobre biologia e química da nossa pele e a relação do nosso organismo com tudo o que a gente consome, relacionado à obsessão estética da pele perfeita. É algo que me interessa muito também – como a gente se dispõe a dormir de um jeito específico para evitar rugas, mas não conhece os ingredientes dos produtos que usamos no rosto, ou dos alimentos que consumimos. Não consigo pensar em algum livro que gostaria de ler e não existe, porque acho que os melhores livros são aqueles que a gente nem sabia que precisava antes de ler.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Um misto dos dois. No começo, acabo sempre deixando fluir, mas em determinado momento preciso estruturar o pensamento de forma mais concreta. Preciso pensar em cronologia, na relação entre os capítulos, em como o enredo acontece e como ele se encaixa no formato. Acho que escrever a última frase é o mais difícil. A primeira frase é sempre rascunho até a última chegar.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
A escrita não é meu trabalho primordial já que não é de lá que tiro meu sustento, então raramente consigo manter a semana da forma que gostaria. Na minha semana ideal, consigo encaixar 2 horas de escrita por dia. Essa escrita pode ser desde diários, poemas e artigos até o trabalho de desenvolver uma ideia que pode parir um livro. Nessas ideias mais longas e que exigem maior planejamento, tento criar metas internas que mantenham o compromisso com o projeto sempre em dia (mas nem sempre consigo seguir). Além disso, tento encaixar pelo menos 1 hora de leitura por dia, contando livros e reportagens longas como as da New Yorker. Às vezes consigo mais, outras menos. Às vezes mergulho mais na ficção, outras no jornalismo.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Acho que nunca houve essa decisão, escrever sempre foi parte da minha vida mesmo sem passar por um processo de escolha. Ainda não me dedico exclusivamente a isso, mas a escrita é parte gigante da minha vida desde pequena. O que me motiva a escrever hoje é a mesma coisa de sempre: uma necessidade, uma urgência interna. É difícil de explicar. O que vem depois da escrita – o que fazer com o texto pronto – passa pelo crivo da decisão, mas a prática acontece independente da consequência.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Eu acho uma loucura falar em estilo próprio, acho que não tenho nem roupa pra responder isso… Mas vou tentar. Eu acho que as principais dificuldades são crenças que a gente carrega. Eu lembro que ler “A visita cruel do tempo”, da Jennifer Egan (que além de ser super gostoso de ler é uma aula de escrita), foi uma libertação. Eu não tive estudo formal de escrita, então, mesmo escrevendo desde criança, de certa forma toda escrita passou pelas influências do que havia sido lido anteriormente. Esse livro da Egan foi o primeiro que eu li, há quase 10 anos, que mata completamente e de uma vez só várias regras da escrita: cronologia, pessoa gramatical, ponto de vista, papel do narrador. Foi um grande marco na minha vida como leitora/escritora. Acho que todos os livros que mexem comigo de forma profunda acabam influenciando de alguma forma. Existem alguns que fazem isso por identificação (como a Sylvia Plath), outros pelo deslumbre com a forma (como a Donna Tartt). Mas acho que é uma conversa recorrente e permanente que acontece entre quem escreve, o que se lê e o que se vive como indivíduo e como sociedade.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
“Ritmo louco”, da Zadie Smith, é provavelmente meu livro contemporâneo favorito. Ele traz discussões importantes e relevantes ao mesmo tempo que tem um poder artístico gigante. É maravilhoso.
“As garotas” da Emma Cline é um desses romances de estreia arrebatadores. Pensando na conjuntura atual em que é cada vez mais fácil ser massa de manobra, esse livro é realmente especial, já que entra na psicologia de uma ex-participante de um culto que questiona, em retrospecto, o próprio papel.
“Imunidade”, da Eula Biss, é uma investigação sobre o papel da imunidade na nossa saúde, desde os mitos sobre a vacina até o processo de imunização populacional. Com muitos dados científicos (e críticas a alguns deles, inclusive), parece ser o livro mais importante a ser lido atualmente – e, de quebra, tem uma narrativa super envolvente.