Clarice Fortunato é mulher negra, escritora, professora, pesquisadora, feminista, autora de “Da vida nas ruas ao teto dos livros”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Basicamente, meu dia começa com um café bem preto. Em seguida, leio notícias, e-mails e mensagens mais urgentes. Só então, inicia a rotina de estudo e trabalho, sou docente na secretaria do Estado de Santa Catarina. Fecho o dia vendo noticiário e uma dose de leitura. No fim de semana, é que tenho tempo para ler mais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O escrever é um lugar de desconforto confortável; é um paradoxo, eu sei, mas, do desconforto nascem as melhores ideias, os melhores personagens. No silêncio da madrugada é, sem dúvidas, o melhor momento para escrever; é quando a mente está mais inquieta e disponível para a criação. Não tenho um ritual específico para a preparação da escrita, a leitura é a maior sustentação nesse processo. Assim sendo, leio mais; releio autores que me inspiram, como Conceição Evaristo, Toni Morrinson, Clarice Lispector e Goethe. Deste último, gosto de “Os Sofrimentos do Jovem Werther”. “A montanha mágica”, de Thomas Mann, também é um livro de cabeceira, uma obra que nunca termino de ler.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
O trabalho como docente me ocupa em tempo integral e, por esta razão, escrevo em períodos concentrados. Nesses momentos em que não é possível me debruçar na escrita, anoto todos os insights em post-its, no caderno de anotações ou mesmo no bloco de notas do celular para, posteriormente, utilizar nos esquemas de escrita.
As metas colocam limites na expressão, não creio que uma escrita genuinamente criativa possa surgir, em nenhuma medida, de um processo assim; a arte precisa fluir livre. Talvez para alguns escritores, a escrita possa funcionar desse modo, para mim, não.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita é um quebra-cabeça, em que monto e remonto as partes, troco nomes de personagens, mudo os papéis; escrevo, apago; susto a escrita e aí vem um hiato – que pode ser breve ou longo – sem escrever. Não é difícil começar. Particularmente, acho mais complicado embarcar na história; para isso, é preciso que eu goste dela, que os personagens sejam muito verossímeis, que não haja desencadeamento de ideias; chegar nesse ponto, pode ser um processo bastante demorado. Inicialmente, gosto de definir conflito, protagonista e, então, situar a narrativa no espaço através da pesquisa, para onde só retorno quando tenho uma trava na escrita; caso contrário, me deixo conduzir pelo fluxo da história.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A ansiedade e a procrastinação são inerentes ao processo da escrita, não há nada de errado com isso; já o medo pode ser uma prisão, que não combina com a força libertadora que tem a escrita; então, para escrever é preciso se libertar dele. Os esquemas ajudam bastante, mas chega um momento da escrita, em que todas as peças do quebra-cabeça se emaranham. Aí, é preciso deixar a história descansar um pouco para, só mais tarde, voltar a ela. Enquanto isso, vou lendo obras que possam me inspirar a escrever ou pesquisando sobre os elementos que fundamentam a escrita. Outras vezes, durante as pausas, só preciso fazer uma seleção das informações armazenadas em excesso — como se fosse num “hd” mesmo — que pode estar deixando a memória lenta. Excluindo as informações desnecessárias, o raciocínio flui muito melhor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Parafraseio Nélida Pinon para dizer que “temos uma língua tão suntuosa, tão poderosa, que se presta a qualquer serviço linguístico, portanto, qualquer coisa que o escritor não conseguir dizer, a falha não é da língua, é dele”, ou seja, temos uma língua riquíssima ao nosso favor para expressar o mundo. A propósito, como disse Thomas Mann, o “escritor é um homem que mais do que qualquer outro tem dificuldade para escrever”, ele é o seu maior crítico. Tento não permitir que a autocrítica seja maior que a vontade de escrever; mesmo assim, é normal perder a conta de quantas vezes reviso meus textos. Literalmente, eles parecem nunca estar prontos. Chega num ponto em que não tenho mais disponibilidade para a reescrita e, então, é hora de submetê-la à publicação. Antes, mostro aos amigos próximos, mas nem sempre eles têm tempo para uma leitura crítica.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma alma antiga, sou uma pessoa do século passado, literalmente! Por outro lado, desfruto de bastante intimidade com a tecnologia. Faço anotações no papel mas, uso também o bloco de notas do celular e várias ferramentas de computador e tablets. Sou avessa aos e-books, prefiro o livro impresso, para marcar e rabiscar. A internet nos permite acessar facilmente uma vastidão de informações, o problema é que, muitas dessas informações são supérfluas e a gente gasta um tempo considerável a filtrá-las; nesse ínterim, corre-se o risco de desviar a atenção do que é realmente importante: o fio do processo criativo que, em si, que acontece longe das telas, com livros, dicionários e papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Cada um encontra um ritual para se manter criativo, mas basicamente, estou atenta a tudo o que acontece a minha volta, busco conhecer os autores que me inspiram, leio e assisto muito filmes e séries. Aposto na serendipidade, ao divagar como um flâneur de uma obra a outra, de um filme para um livro, uma música, uma paisagem, isso é inspirador. Não basta mergulhar na obra e no contexto dela, é preciso flutuar para tomar fôlego, sentir a brisa, a imensidão do céu como uma metáfora para a vasta possibilidade de criação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo inicial de escrita foi uma redescoberta, onde nasceu a escritora. Se pudesse voltar, eu escreveria antes, para que o lançamento ocorresse fora do período de isolamento social, mas, a própria pandemia foi imprevisível. Antes, me via sempre no papel de crítica literária, minha área de pesquisa no doutorado foi teoria literária, não me imaginava no papel de escritora. Depois que mandei o rascunho para a editora, recebi tantos elogios da fundadora da Pallas e das pessoas que leram o original, que me convenci do valor da minha escrita, que eu posso escrever e, principalmente, que eu gosto de escrever. Não que eu tenha ficado deslumbrada, porque sei que não há glamour por trás da profissão. O que há, de fato, é muito trabalho, reconhecimento distante e pouquíssimo retorno financeiro. Ainda assim, se pudesse voltar ao começo, diria a mim mesma que não demorasse tanto em titubeios: a “escrevivência” da mulher negra é urgente, escreva logo!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um livro de contos e um romance; ainda não decidi qual virá antes. Não sei se há um livro que nunca foi escrito – “Quais são as palavras que nunca são ditas?” – porém, um livro que eu gostaria de ler – e acho que não foi escrito – é um diário de bordo de navio negreiro, escrito por uma mulher negra escravizada.