Clara Baccarin é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotinazinha sim. Tento começar devagar, sou uma pessoa lenta, apesar que também sou bastante prática e multitarefa, mas sou lenta pra quase tudo, de manhã muito mais ainda. Então eu levo um tempo pra conseguir arrastar meu corpo pra fora da cama, depois pra conseguir interagir ativamente e positivamente com as pessoas, leva outro tempo (sim, tô dizendo que sou mal-humorada de manhã, rs). Mas aí no meu silêncio lento eu escovo os dentes, lavo o rosto, faço xixi, me arrasto pra cozinha, coloco a água pra ferver, faço um suco, esquento um pão, ajeito uma tapioca… sento, como lentamente. E abro um livro de poemas. Parece que as manhãs que eu não consigo silenciar e ler um parágrafo ou um poema, parece que eu não meditei, não espiritualizei o dia, não coloquei intenção de que ele fosse aprendizado, ou de que fosse possibilidade de abertura de algum portal…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não sei muito bem a hora do dia que eu trabalho melhor, sei que definitivamente não é de madrugada, sei que alguns escritores adoram a madrugada, eu não, eu gosto do sol. Entendo o gosto pela madrugada, porque é a parte do dia onde tudo silencia…. e eu também gosto e preciso de silêncio para escrever, para estudar. Mas eu gosto e tento achar esse espaço durante o dia. De manhã sou lenta no corpo e na mente, mas muitas vezes é justo de manhã que insights bons surgem, quando eu consigo cumprir esse ritualzinho de estar quieta, ler alguma coisa, respirar, deixar-me lenta, consigo pensar de uma forma diferente e gosto de fazer anotações. À tarde eu sou mais ativa, geralmente escrevo textos mais longos à tarde, elaboro melhor as coisas, organizo as anotações, pago os boletos, respondo e-mails, lavo as louças sujas… tudo junto… É de tarde que eu pego a matéria-prima das inspirações e verto em algo concreto, mais lapidado. No começo da noite isso também acontece às vezes, de ter energias para escrever textos. Enfim, é mais ou menos isso. Mas eu sinto que a atividade do escritor é solitária, eu escrevo mais e talvez melhor quando estou sozinha, quando tenho umas horas minhas em que eu posso mergulhar, refletir, filosofar… escrever umas linhas e divagar tantas outras… quando a casa está cheia de falas e pessoas eu às vezes tento escrever, mas é muito mais difícil.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando eu estava escrevendo um romance, houve um momento (acho que durou uns 3 meses) que eu tinha uma rotina e uma organização para a escrita, que veio claro, com o objetivo de terminar o livro, o romance. Então eu sentava todos os dias de manhã na minha mesa de trabalho depois de tomar café da manhã, e escrevia a manhã toda; começava relendo os capítulos anteriores e as notas (a minha escrita de prosa é um tanto bagunçada, tenho um documento só com notas, insights, rabiscos… vou pescando dessas notas para o romance). Foi assim também com trabalho acadêmicos, quando escrevi a dissertação de mestrado, por exemplo. Teve um período em que eu sentei por alguns meses e escrevi, talvez mais do que escrevi, eu organizei as notas, toda a pesquisa que eu tinha feito, as resenhas, leituras… Quando estou imersa num tema, num propósito de livro assim, parece que estou sempre escrevendo, mesmo quando estou fazendo qualquer outra coisa… Surgem ideias nos bares, nas caminhas, nos supermercados da vida, nas conversas… Vou anotando em caderninhos ou no celular. Em outros momentos, quando não estou trabalhando num livro ou trabalho longo em prosa, o processo é diferente, mais livre talvez. Teve momentos em que eu escrevia crônicas toda semana, escrevia para alguns sites, eu tinha uma rotina, mas nada muito organizada, eu apenas tirava uma tarde da semana em que eu estava mais livre, me sentava e escrevia uma crônica. Toda semana eu escrevia pelo menos uma crônica, essa era a meta. Tenho um documento word no computador com várias ideias para crônicas, então eu sempre tinha um tema para escrever uma crônica (geralmente eu me dedicava a temas que estavam mais vivos em mim, mas quando eu estava sem muita ideia, abria esse doc, escolhia um tema e escrevia). Já escrever poemas é ainda diferente, escrevo poemas em qualquer parte do dia, em qualquer lugar, em papel ou meio digital… já escrevi até na pele porque não tinha outro lugar, aí depois lapido um pouco quando transfiro o poema para o computador. Mas é um processo mais rápido. Hoje em dia eu estou bem sem rotina para escrita, muito por escolha mesmo, não porque eu quero me dar a liberdade de não escrever, mesmo porque não escrever pra mim é péssimo, é o contrário de liberdade… escrever é que me liberta. Mas estou sem métodos e organizações porque estou querendo deixar a escrita mais livre (não eu mais livre, a escrita, entende?). Não quero sentar e buscar um tema para escrever uma crônica, não quero sentar e mexer em tantos poemas soltos por aí à espera de serem lapidados… Eu quero escrever menos talvez agora, quero ler mais, quero ouvir mais, quero ler muito. Estou me dando esse tempo sabático, mas é sempre um grande alívio quando eu escrevo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar é quase sempre o mais difícil e o mais chatinho, na minha opinião. Aquela coisa de você caçar o fio solto certo do novelo de lã, depois que você acha (ou forja com uma tesoura boa), aí desenrolar é bem mais fácil, porque eu me deixo fluir, escrevo tudo que me vem, as besteiras também, nesse momento do desenrolar o novelo eu nem penso num leitor, eu vou ali dançando de olhos fechados, curtindo a brincadeira com as palavras e o desenrolar das ideias. É a parte gostosa da escrita. Mas depois eu tenho que mudar de personagem de novo, e vir com a faxina geral, relendo, cortando, limpando, substituindo termos, completando partes… Da pesquisa para a escrita eu me movo dessa forma: pegando notas, selecionando-as e dançando com elas. Às vezes começo questionando a nota, e o texto começa com uma pergunta, aí eu e a nota vamos dialogando, vamos interagindo, vamos poetizando.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bom, hoje em dia eu não tenho medo de não corresponder às expectativas. Expectativas quebram o prazer, a liberdade, a gratuidade e a verdade de dentro. Cada vez menos também escrevo com ansiedade, por isso estava falando na resposta anterior sobre deixar a escrita livre, eu faço reiki com minhas palavras, elas que venham quando quiserem e do jeito que quiserem e se quiserem. Tenho ainda alguns prazos sim para alguns textos e projetos, daí que eu vou deixando tudo livre, e um dia qualquer eu sento, pego o tema e escrevo. Escrevo a minha verdade sobre aquilo. Eu não tenho mais ânimo para escrever sobre o que não me toca, eu não tenho mais ânimo para viver sobre o que não me toca. Eu não escrevo para prazos, para puxar sacos, para honorários, para leitores x, y ou z. Eu não escrevo para agradar e nem para desagradar. Escrevo para expressar algo que me tocou, se tocar ou não outra pessoa, tudo bem. Nesse sentido, eu não penso em travas de escrita, não tenho medo que ela vá e não volte, enquanto escrever me fizer sentir mais viva escreverei, se não fizer mais, não escreverei, é assim né… com tudo…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu mesma reviso pouco, estou me trabalhando para melhorar nisso. No último livro que publiquei eu tive menos ansiedade e menos cansaço do livro (falo isso, porque reler as próprias palavras é cansativo), então eu consegui reler algumas vezes, eu também consegui deixar o livro de lado, em banho maria, por algumas semanas e até meses, e aí relia depois de passado um tempo, o que é sempre bom, pois traz o olhar novo… Também fiz questão de ter duas revisoras para o livro, de contratar o trabalho, aliás, isso é essencial para todos que escrevem, sério. Tem escritor que acha que não, que pode ir pedindo pra amigos lerem (isso é importante também, mas é essencial o trabalho de pelo menos um revisor). Hoje em dia eu mostro meu livro para várias pessoas antes de publicar, isso também não é muito natural de mim, antes eu queria publicar e pronto, me ver livre daquilo, sabe? Mas hoje em dia eu acho bem importante e gosto muito de mostrar o livro e de saber das opiniões, e realmente eu as levo em conta e elas fazem a diferença. É um aprendizado e um crescimento.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia hoje em dia é boa, acho que acabei aprendendo a usar bem o computador e etc. Isso não veio muito de mim (fui convencida, mas um dia conto essa história rs), só sei que hoje tenho uma relação estável e equilibrada com a tecnologia. Eu escrevo meus primeiros rascunhos de todas as formas, se o computador está do lado, é nele mesmo que surgem as primeiras anotações (muitas vezes é assim mesmo), mas também escrevo muito à mão ainda, adoro caderninhos. Escrevo também em notas do celular, isso é a pior forma… mas muitas vezes é a forma acessível… e vai assim mesmo. Aliás, tenho uma lista de notas gigante no meu celular, coisas escritas à espera de serem levadas em conta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de tudo, é só estar atento. De absolutamente tudo, da formiga, da rachadura na parede, do velho sentado na praça, da música no rádio, da revolta que me toma o peito, do momento político, das dores da vida, da conversa nas casas lotéricas, do vento, da xícara extra de café, de muitas garrafas de vinho, do chinelo que arrebentou, da lembrança de uma paixão… Hábitos ajudam sim, o principal deles é viver. É não apenas escrever, sentar e escrever. É sair andando, tomar um café numa esquina, fazer faxina na casa e colocar uma música, assistir uma nova série de tv, brigar com o ex, escutar a narrativa do senhor que compra algo na loja de ração, restaurar uma peça de madeira, fazer um bolo, pegar a estrada, etc… o que ajuda a escrever é movimentar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou um pouco a ansiedade que às vezes causava atropelos, hoje acho que sou menos ansiosa durante o processo de escrita e de edição e de publicação também. Hoje em dia eu deixo a escrita livre para vir, para não vir… e me deixo livre, para ser para não ser. Hoje em dia acredito no tempo de fermentação das coisas, quero fazer pães mais maduros, mesmo sabendo que o pãozinho francês que eu já aprendi às vezes é tão prazeroso. Hoje to cozinhando um pão foda de fermentação natural que demora horas para ficar pronto e no processo pede grandes descansos e solidão. Mas se desandar tudo no meio do processo e o pão não virar nada, ta bom também. O que eu diria pra mim mesma no início do processo? Eu não sei… odeio essas coisas de que agora minha versão mais madura pode ensinar grandes coisas para a minha versão mais ingênua… o caminho todo foi importante, com todos os meus atropelos e tropeços, então acho que eu diria para mim mesma talvez apenas: isso meninas, escreva, escreva!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acho que eu gostaria, mas também tenho um tanto de medo disso, de escrever com o meu mais profundo, escuro, desconhecido lado… Mas tenho medo disso atrapalhar muito a minha vida. Tem alguns livros que li que sinto que chegaram perto ou chegaram nisso, e depois o que aconteceu com o autor? Sei que um deles não quis escrever mais e foi criar galinhas. Eu que to longe de mergulhar nos meus escuros com a lanterna das palavras, já estou criando galinhas rsrs, então imagina!
Eu não sei o que eu gostaria de ler e que ainda não existe, eu gostaria mesmo é de ler muito mais do que leio e que já existe.