Cinthia Kriemler é escritora, autora de Todos os abismos convidam para um mergulho (Patuá, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Faço como todo o mundo – ou quase todo o mundo. Acordo e tomo café-da-manhã. Sou uma criatura noturna, o que significa que preciso “engrenar” pela manhã. No mínimo meia hora até conseguir ser gente (gente pensa, semiacordados pensam que pensam). Depois do café, vou ler as notícias do dia em meio digital. Sem notícias me sinto um ET. E depois… Bom, depende. Tem dia que escrevo, dia que vou jogar sudoku, dia que vou conversar no WhatsApp, dia que vou ler. Não necessariamente nessa ordem. (Em tempo: sou aposentada, por isso essa rotina tão folgada. E, mesmo assim, quando não estou fazendo nenhuma revisão.)
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com certeza, não tenho certeza. Eu acreditava que era à noite, porque é a hora da paz, do sossego. Cachorros dormindo, filha dormindo, casa só para mim. Mas descobri que era mentira. Porque não preciso de silêncio para escrever. Quando estou com vontade de escrever, escrevo. Pode ser a qualquer hora e sob quaisquer circunstâncias.
Quanto ao ritual. Preciso estar esparramada. Deitada ou sentada, mas toda relaxada. E tenho de estar com roupa frouxa, um vestidão, um pijama largo, uma camisola solta. Eu escrevo no Ipad. No começo, achava meio desajeitado ter de escrever com dois dedos (que é o que se faz no iPad). Agora, estou completamente habituada. Mas comprei uma capa que vira uma plataforma, e isso facilita. Mas só consigo escrever depois que abro todos os arquivos de que vou precisar – dicionário, fontes de consulta. Se não estiverem abertos (mesmo que eu não use), eu fico incomodada e não me concentro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou uma indisciplinada. Não estabeleço metas, porque sei que não vou alcançar nenhuma delas. As metas me deixam ansiosa, como se fossem um patrão escravocrata. Mas tenho objetivos. Um de cada vez. E, geralmente, o mais simples de todos: conseguir terminar de escrever (um texto, um livro). Já me aconteceu de escrever cinco linhas apenas num período de trinta dias. E de escrever páginas e páginas de repente, numa noite só, até ver o dia amanhecer. Aí, nessas horas, se alguém me interromper: a) eu ignoro; b) eu mostro os dentes; c) eu mordo.
Agora, se for um trabalho, uma revisão, por exemplo, eu trabalho dentro do prazo. Só sou certinha com o trabalho alheio e com as responsabilidades de trabalho que assumo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de compilar. É a parte gostosa e relaxada do processo. Leio uma coisa aqui outra ali, recorto, salvo, comparo com outras informações. Depois que pesquiso, anoto conclusões ou dúvidas no bloco de notas, ou salvo no iBook, quando é artigo ou reportagem. Deixo tudo lá, marinando. (risos) Na hora em que começo a escrever o livro, aí é uma ansiedade só. É um tal de pega, lê, separa. Jogo metade fora e volto a pesquisar. Não fico satisfeita, cismo que ainda tem alguma coisa que pode parecer inverossímil. Volto a pesquisar. Às vezes, bem raramente, consulto pessoas. Não que eu me importe de ouvir os outros, mas já me aconteceu de a pessoa mais me confundir do que me ajudar.
Então, finalmente, quando não tenho mais desculpas, paro de pesquisar e vou escrever. Isso significa, muitas vezes, uma distância de um mês ou mais entre o fim da pesquisa e o início da escrita. Entre o descompromisso de pesquisar e a ansiedade de escrever – e de escrever alguma coisa da qual eu goste e que considere bem desenvolvida.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em relação à procrastinação, já parei de me cobrar. Comigo não adianta pressão. Muito menos autopressão. Eu sei que procrastino. Mas, e daí? Nem sempre procrastinar significa preguiça. Na maioria das vezes, pelo menos no meu caso, significa que uma ideia ainda não está madura. Pode ser um parágrafo, uma página, ou a ideia do livro todo. Enquanto não me vem um frio na barriga, ou um zumbido nos ouvidos, ou uma ligeira taquicardia, ou tudo isso junto, não está na hora. Temperamental? Cheia de manias? Não sei se é isso. Acho que sou de lua. Preciso de um combustível não usual para começar a escrever. Que pode ser uma tristeza grande, um choro de dor. Só não pode ser alegria, coisa boa. Felicidade me bloqueia qualquer tentativa de escrever. Como o meu material de escrita se baseia nas misérias (sociais, morais, físicas), não tem como combinar os dois extremos.
Em relação a não corresponder às expectativas, sou bem preocupada. Não queria ser, mas sou. Mas já fui pior. Hoje, pelo menos, aprendi que o que eu escrevo não vai interessar, tocar, agradar, despertar, atrair a todos. E tudo bem. Eu mesma aviso às pessoas, quando vão comprar um livro meu: não é sobre amor, não tem final feliz, não tem meias palavras, tem palavrão, tem sexo, tem abuso sexual, tem suicídio, tem abandono, tem violência física e moral, tem dor. Não gosto de enganar ninguém. Mas fico torcendo por dentro para que a pessoa queira ler sobre tudo isso e consiga enxergar o viés da denúncia, do compadecimento, da empatia, da convocação à mudança deste ou daquele status quo. Um leitor me dizer “Eu me senti mal lendo o seu livro” é um grande elogio. O incômodo, a reação de repulsa diante do que acontece aos invisíveis é o que eu espero de um ser humano. Mas me entristeço quando alguém me lê e não sai da superfície. E me culpo. Sinal de que não passei o que queria passar. Está ruim, não serve. Mas me surpreendo mais é quando alguém me aconselha: “Você precisa escrever com final feliz.” Tenho vontade de perguntar de volta: “Quantas pessoas estupradas, surradas, abandonadas, desempregadas, discriminadas, com medo, solitárias você conhece que tiveram finais felizes?”
Quanto aos projetos longos, perdi um pouco de medo depois que escrevi um romance. Mas ainda acho uma empreitada de fôlego. Já estou escrevendo outro romance. Mas concordo que a ansiedade aumenta horrores. E o medo também.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu já escrevo revisando. Às vezes, fico empacada num parágrafo por quase duas horas, indo e voltando, porque acho que uma palavra fica melhor que outra, que um verbo fica melhor num tempo verbal que no outro. A cada vez que retomo a leitura, releio e reviso novamente as páginas anteriores. E depois que termino, quando vou ler a obra pronta, reviso de novo. Tem umas coisas que eu faço para facilitar. Uso muito o Localizar/Substituir, por exemplo. Checo num contador de palavras quantas vezes usei as palavras mais comuns como: não, sim, coisa, muito, pouco, demais. Para ver se estão em excesso. Nessa revisão final, muitas vezes, acabei mudando ou suprimindo trechos da história, falas de personagens. E é a hora, também, em que passo um pente fino na verossimilhança. Já comecei uma novela policial chamando o protagonista de Antenor e terminei chamando de Antero. Já descrevi o vestido de uma personagem como sendo um tomara que caia, logo depois de dizer que na cidade em que ela morava estava fazendo 5°. E falei dos olhos verdes de uma personagem para, algumas páginas depois, descrever os mesmos olhos como sendo “amarelos como um tom de outono”. Eu pratico três tipos de revisão. A gramatical. A que vai procurar por inverosimilhanças. A que procura por vícios do autor (eu, por exemplo, tenho mania de dizer “Confesso que” e “Na verdade”). Eu só não mando o livro para ser revisado por terceiros porque os revisores nos quais eu confio cobram caro, e eu geralmente estou dura. Também não dou a obra para ninguém ler. A não ser, claro, para quem vai prefaciar ou escrever a orelha.
Qual é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre, sempre no computador. Ipad, notebook, celular. Sou uma criatura tecnológica. Quando não sei, quero aprender. Sou da área da comunicação, em que já não se queria que o aluno escrevesse à mão quarenta anos atrás. Na Universidade de Brasília, entre 1976 e 1977, os professores de comunicação já pediam que os trabalhos fossem datilografados – acho que os mais jovens nem conhecem esse verbo. (risos) Quando vejo gente da minha idade dizer que não dá conta de aprender a lidar com tecnologia, fico triste. Nada a ver com idade, mas com vontade. Faço tudo o que posso pela internet, até escolher cor de tinta para a parede num simulador. Por que seria diferente em relação à escrita? Viva a tecnologia!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Nossa… Tenho ideias vindas de todos os quadrantes. Desde à simples observação do cotidiano até uma análise dos problemas sociais, tudo pode me dar ideia. Às vezes, uma cor, um objeto, um gesto me chama para escrever. As fotografias, quase sempre. As questões envolvendo a mulher são referências constantes na minha escrita. Como já citei antes, abusos, violência, velhice, desigualdade, solidão – tudo é matéria para meus textos.
O que eu faço para me manter criativa é ler: não só livros e artigos, mas as conversas sobre literatura, as opiniões antagônicas ou coincidentes acerca de determinados temas. É sempre bom ver o que os outros têm a dizer. Outra coisa é nunca aceitar limites. De conteúdo, de forma. Para praticar, às vezes escrevo sobre o que discordo pela visão dos que concordam. Para me colocar no lugar do outro. Para ver se sou capaz de ter empatia. Empatia não é aceitar tudo o que o outro faz, mas entender as razões pelas quais ele faz. Mergulhar na história de vida que o outro teve e se perguntar: “Se eu tivesse sido protagonista dessa narrativa, como eu teria reagido?” Meus personagens não precisam (nem devem) traduzir o que eu penso, mas, sim, o que representam.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Mudei muita coisa. A principal delas foi sair das frases imensas, dos parágrafos tediosamente detalhistas para os curtos. Hoje, muitas vezes, sou quase telegráfica. Mudei a pontuação (quase não uso, por exemplo, o sinal de exclamação; mudei a forma de escrever diálogos – não uso travessão e costumo inserir o diálogo na frase corrida, sem dar parágrafo; reduzi a adjetivação. Mudei também meu modo de conduzir as histórias. Antes, eu tinha uma visão mais ingênua da escrita. E não gostava. Até que decidi soltar os freios, pesar a mão, colocar o dedo na feridas.
O que eu diria a mim mesma se pudesse voltar aos meus primeiros escritos seria: “Não tenha medo. Saia da sua zona de conforto. Não seja tão detalhista. Não escreva para agradar a todos.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pergunta difícil. Eu gostaria de escrever uma história em quadrinhos. Mas usando um tema sério – nada de super-heróis. Nova linguagem, nova forma. Gostaria de escrever um livro de realismo fantástico. Uma história sobre ossos que contam histórias. Um ossário não macabro, mas lírico. Mas não sei se dou conta de fazer nada disso. Gostaria não é deveria, certo?
Quanto ao livro, não tem nada que eu gostaria de ler que não exista. Talvez o que haja sejam livros que eu ainda não li porque não sei que existem.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Quando escrevo contos, deixo fluir. Muitas vezes, o desenvolvimento e o desfecho são diferentes do que imaginei no início. Já no romance, depois que decido um tema, faço sinopse, planejo cada personagem, a interligação entre eles, os núcleos da história, e faço pesquisa, muita pesquisa: de profissões, de legislações, de características de personalidade, do local onde será ambientado.
Escrever a primeira e a última frase é uma tarefa igualmente difícil pra mim. Uma abertura bem-feita é o que vai atrair o leitor. Por outro lado, um fechamento bem feito é o que vai fazer o leitor dizer que o livro é bom. E ter vontade de ler outras coisas daquele autor. Eu demoro um mês ou mais para fazer uma abertura da qual eu goste. Depois da página de abertura, como eu chamo, parece que tudo o mais flui. Eu demoro muito para gostar, para aceitar, para considerar satisfatória a minha página de abertura. Já em relação à frase final, fico ansiosa. Procuro sempre alguma frase de impacto. E impacto não é uma coisa que a gente encontre facilmente.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Depende. De um modo geral, eu faço um projeto por vez. Mas se eu tiver assumido vários compromissos, como, por exemplo, estar devendo um conto para uma revista, um poema para outra, e assim por diante, acabo trabalhando mais de um texto ao mesmo tempo. Quando estou escrevendo um romance, no entanto, isso se torna mais difícil. Já tentei trabalhar um conto e um romance ao mesmo tempo. O que aconteceu foi que acabei “roubando” ideias, trechos do conto para o romance. Acabei tendo que reescrever o conto depois. Já me aconteceu também de estar escrevendo um texto e, de repente, achar que ficaria melhor como poema. Trabalhei as duas formas e no final decidi qual era a melhor. Eu faço, se precisar, mas me causa muita ansiedade isso de trabalhar em duas propostas de escrita ao mesmo tempo. A gente fica com a cabeça nas duas coisas e acaba privilegiando uma. Pelo menos comigo é assim.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Qualquer coisa me motiva. Até o nada. Mas, de um modo geral, as injustiças, o sofrimento, a dor, a tristeza, a desvalia, a impotência são os fatores que me motivam a escrever.
Eu me dediquei à escrita literária muito tarde. Apenas quando fiz 50 anos. Passei a vida inteira escrevendo projetos de comunicação. Mas escrever ficção foi um projeto tardio. Sempre fui leitora. E sempre gostei de ler muito. Escrever foi um projeto que surgiu quando comecei a pensar que faltavam poucos anos para eu me aposentar e que eu não gostaria de me tornar uma aposentada inútil. Eu queria continuar a ter um cérebro ativo. E aí pensei que gostaria de fazer alguma coisa que dependesse só de mim. Escrever é isso, esse prazer que depende só de mim mesma. Se vou ser lida ou não, isso já é um outro prazer. Naquela época, por acaso, vi o anúncio de um concurso de contos. Participei. Fui bem. E aí não parei mais. Lancei meu primeiro livro há 10 anos. Cheio de altos e baixos. Um livro que não me deixou muito satisfeita. Mas insisti até descobrir o meu estilo. Hoje, sei o que e como quero escrever. O que não me impede de, vira e mexe, experimentar algumas coisas diferentes. Gosto de desafios.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Em relação ao meu estilo, foi o que eu disse na resposta anterior. Levei uns dois livros para descobrir como queria que fosse. A minha é uma escrita crua, direta, sem subterfúgios, sem finais felizes. Eu sou aquela pessoa que arranca o esparadrapo de uma vez só. Faço a mesma coisa com os meus textos. Se morreu, eu digo que morreu. Se foi estuprada, eu não digo que foi “violada”. Se eu tiver que escrever palavrão, escrevo. Se eu tiver que escrever trepar, transar, não vou escrever fazer sexo.
A gente sempre tem a influência de grandes autores. Talvez, no meu caso, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles. Eu sou primordialmente uma contista. E não tenho problema em dizer que sofro influência também de homens. Machado de Assis sempre foi um autor de cabeceira. Drummond, igualmente. Assim como Jorge Amado (para quem tantos torcem o nariz, infelizmente). Na poesia, Cecília Meireles, Adélia Prado. Mas eu gosto de pensar que consegui me distanciar das minhas referências e que encontrei uma voz própria.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
O romance “Torto arado”, do Itamar Vieira Júnior. Como já disseram antes de mim, com muita propriedade, o livro já nasceu um clássico. A história é bonita, envolvente, bem construída e, acima de tudo, fala da realidade brasileira, que precisa, cada vez mais, ser mostrada como uma fratura exposta. Como se isso não bastasse, a narrativa é lírica e de uma beleza única. Itamar é um autor de grande sentimento. Um dos grandes do seu tempo.
O livro de poesia “Arraial do curral del Rei”, da Adriane Garcia. A autora é uma das melhores poetas da atualidade. Além de escrever muito bem, impressiona pela pluralidade dos temas que aborda e pela elegância com que faz todo tipo de denúncia social. Esse livro, especificamente, mostra as famílias que tiveram suas casas desapropriadas para a construção da cidade de Belo Horizonte. É um livro histórico, que faz uma abordagem diferente. Mostra o ponto de vista do fraco, do pobre. Daqueles que passaram pela violência de ver todos os seus valores de referência serem destruídos por um progresso do qual não tomaram parte. Adriane dá nome e face às pessoas, aos humildes que a história só costuma tratar quantitativamente. E resgata uma memória necessária e dolorosa. Pra mim, um livro magnífico.
O livro de contos “A mulher que ri”, de Thays Pretti. É um livro que aparentemente flerta com o leve, trazendo linguagem e ambiente contemporâneos, mas que traz latente todo um apanhado de angústias, dores e problemas que atingem o universo feminino. A estrutura de conto tradicional da obra ressalta positivamente a fina percepção com que a Thays conduz cada narrativa. A gente vai lendo e sentindo cada história, imaginando cada cenário. No gênero, dos melhores que tenho lido.