Christovam de Chevalier é poeta e jornalista, autor de “Marulhos, outros barulhos e alguns silêncios” (7 Letras, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Essa pandemia fez com que minhas manhãs ficassem mais parecidas umas com as outras. Minha gata Beta é meu despertador. Ela me tira da cama, reclamando comida e atenção. A primeira tarefa do dia é cuidar dela. O café, que vou tomando aos poucos, é uma peça-chave para eu acordar de todo e começar o dia com bom humor. Sem café, a coisa pode ficar feia (risos).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Admiro quem siga algum ritual preparatório. O Caio Fernando Abreu, escritor por quem tenho loucura, tinha, por exemplo, todo um barato de botar uma flor ao lado da máquina de escrever, acender vela, incenso, entre outras coisas. Meu ritual é o de estar disponível para a escrita, estar concentrado naquilo que me é exigido.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou um cara que vive da e para a escrita. Brinco que, aqui em casa, vivem o Christovam poeta e o Christovam jornalista. Os dois trabalham pra dedéu, mas é o jornalista quem arca com as despesas da casa. Todo dia escrevo, e nisso incluo desde textos jornalísticos, que variam entre releases e sugestões de pautas, a poesia, que abarca desde uma ideia para um poema ou um poema que avança a partir de uma ideia previamente anotada. Da mesma forma que não tenho rituais, não sigo metas. No caso dos textos jornalísticos, tenho, sim, prazos que não podem ser perdidos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é muito mais cerebral do que emocional. E muito intuitivo também. Não vejo a escrita poética como algo sacralizado, um dom para o qual eu fui escolhido. Se fui escolhido, eu também fiz da poesia uma escolha, minha forma de expressão. É um trabalho. E, como tal, exige vocação, estudo, dedicação, disponibilidade e disposição da mesma forma que esses predicados são exigidos do jornalista.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A preguiça é a única trava contra a qual me pego tendo de lutar. Há certas horas em que sei que preciso escrever e a vontade é ZERO. Só que preguiça é coisa que dá e passa. Quando ela chega, eu a driblo. Vou fazer outra coisa, cuidar da casa e escrevo dali a algumas horas, quando ela cantou para subir.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incontáveis vezes. No caso do “No escuro da noite em claro”, por exemplo, foram seis as provas antes de o livro ir para o prelo. Cada prova que chegava, eu ia lá e mudava alguma palavra ou algum verso. Gosto de falar os poemas em voz alta para perceber sua musicalidade, ouvir se aquelas palavras não brigam entre elas, se não tem cacófato, essas coisas. Essa dica quem me deu foi a Neide Archanjo. A Neide completou 80 anos e deveria ser mais lembrada e reverenciada. Foi esquecida pela imprensa e pelas instituições de ensino. Uma vergonha isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é parcimoniosa. Gosto da tecnologia, mas não sou louco por ela. Costumo brincar que sou um aquariano fajuto, inclusive. Meu laptop é o mesmo há dez anos. Troco de celular quando a situação do aparelho está como naquela canção (“Fera ferida”, de Roberto e Erasmo Carlos): “Esse caso não tem solução” (risos). Agora, o bloco de notas do celular me é tão útil quanto me são úteis os caderninhos espalhados pela casa (há o da mochila, o que não sai do criado mudo, o que fica sobre a mesa de trabalho etc). Vários dos meus poemas mais recentes começaram no celular e foram sendo trabalhados no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Da mesma forma que digo que notícia não tem hora para chegar, o mesmo vale para as ideias. Elas me ocorrem nas horas e situações mais inusitadas. Já aconteceu de começar um poema no transporte público, na mesa de bar, numa reunião na casa de amigos. O poema “Cantada” (do livro “No escro da noite em claro”, de 2016) me ocorreu na redação do Jornal do Brasil, por exemplo. Passei os quatro primeiros meses dessa pandemia em Minas Gerais e escrevi uma série de poemas motivado por aquele lugar e aquela gente. Recentemente, trabalhei num texto que é uma resposta às queimadas que grassam pelo Brasil, não somente na Amazônia e no Pantanal como também na região Sudeste, como no caso do Hospital Federal de Bonsucesso, no Rio de Janeiro. Fui despertado de madrugada pelo verso “O que fica após o lamber do fogo”. E o que fiz? Saí de fininho do quarto, para não acordar o Ricardo, e fui escrever na sala (risos). O poema começa assim: “A fúria do fogo é voraz/vagueia na várzea virulenta/adaga que decapita audaz/sanguínea sangria sangrenta//A fúria do fogo é sagaz/ em nada opaca; opulenta/sangra e singra lodaçais/com sua gengiva magenta” e por aí vai.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Na adolescência e no início da vida adulta, costumava aproveitar o silêncio da madrugada para ler e escrever. Hoje não faço mais isso. Um momento tranquilo para escrever é pela manhã, pois não tem whatsapp apitando, telefone tocando, cliente querendo atenção, nada dessas coisas que distraem nossa concentração. No mais, o que eu diria ao Christovam de 20 anos atrás? Bom, eu tinha 22 anos quando lancei meu primeiro livro (“Um livro sem título”, 7 Letras, 1998). Ao mesmo tempo em que isso foi um gesto de coragem, foi algo precipitado. Há ali textos muito verborrágicos, muito confessionais, quando a poesia não pede e nem precisa de confissão alguma. Então, diria àquele garoto: “Não publica ainda. Espera um pouco mais”. Minha autocrítica ficou tamanha que 18 anos se passaram entre o primeiro e o segundo livro (“No escuro da noite em claro”, 7 Letras, 2016). A quarta capa desse segundo livro é assinada pelo Ferreira Gullar, legitimando minha poesia. Vi com isso que valeu a pena esperar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu plano para 2021 era lançar um livro com textos em prosa. São reflexões sobre temas como amor e o próprio ato de escrever. Esse projeto começou, está em andamento, mas acabou atropelado por uma nova coletânea de poesia, que sai no ano que vem. Ela tem o título de “Inventário de esperanças e outros poemas” e reúne textos provocados por essa pandemia e pela perda de mestres e pessoas queridas como os poetas Jorge Salomão, Cairo Trindade e Marcus Vinicius Quiroga. Nesse livro olho também para o nosso país, para aquilo que o (poeta e jornalista) Luís Turiba chama no prefácio de “Brasil profundo”. Nessa pandemia quase comecei a ler a “Ilíada”, mas o plano foi mais uma vez adiado. Aproveitei a reclusão para reler coisas que gosto muito, como “A metamorfose”, do Kafka; “Dom Casmurro”, do Machado, e “Cobra Norato”, do Raul Bopp.