Christian Ingo Lenz Dunker é Psicanalista, Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Faço minha oração matinal, como dizia Hegel, lendo o jornal diário com um café pequeno em mãos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor quando disponho de grandes extensões de tempo. Meu livro sobre “A História da Psicanálise” resultou de uma longa internação em casa nas férias de verão. Assim como na tese de doutorado ou no livro sobre os Condomínios a escrita demanda uma espécie de mudança para o mundo paralelo das letras e invenções. Isso não seria eficaz se não houvesse esta escrita miúda, dia sim dia não, para uma coluna, para um artigo ou mesmo as notas para a preparação de uma aula. Tenho sede de tempo para escrever, por isso não posso me dar ao luxo de rituais. Escrevo quando aparece um parênteses, às vezes um pequeno hiato de cinco ou dez minutos. Uma vez começada, a coisa fica pedindo mais e mais. Às vezes de pouco em pouco chega-se a algo maior. Outras vezes, as coisas não se juntam e sobram apenas os fragmentos. Preciso de alguma inquietude para entrar no ritmo da escrita, geralmente junto isso com minha mania de me meter em assuntos políticos ou da indignação com os malfeitos do poder na vida cotidiana. Tenho esta definição doméstica para o que deveria ser um intelectual hoje: alguém que fala fora de lugar. Ele fala não-sem mas em desapego-com coisas ridiculamente covardes como “a minha área”, “o meu assunto”, “o meu autor”, “a minha disciplina”. A cultura do condomínio é principalmente anti-intelectual por causa disso. Ela cria muros onde cada qual está no seu quadrado, cada qual fazendo sua parte, sem avançar cercas, em geral indo para casa com a “consciência limpa”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A meta é dada pela encomenda. Muitos textos têm prazo para fechar a edição ou a pauta da matéria pendente. Gosto de variar o tipo e o nível do discurso no qual a escrita se dá. Nunca me passou pela cabeça uma meta diária ou semanal. Os projetos têm seu tempo próprio, mas o sistema editorial, universitário ou jornalístico costuma ser soberano. Tese não se acaba. Ela acaba com você e por você. Geralmente por decurso de prazo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Vai e vem e preciso combinar muita leitura com escrita, depois escrita voltando para as leituras. Muitas vezes me exaspero porque não consigo encontrar o livro, autor ou texto onde está o que procuro, e este espaço de vagar pela biblioteca ou pela internet me é penoso porque te tira da solução angustiante daquele parágrafo. Muitas vezes, “chuto” uma solução provisória e depois é difícil consertar quando a memória, corrompida pelo desejo, criou coisas que não estavam lá. A escrita cria a pesquisa e a pesquisa derrama-se na escrita. Minha relação com a escrita é muito mais a de um cientista do que a de um literato. Escrever tem que ver com descobrir ou inventar, dentro de certa relação entre a verdade e o real. Meu bisavô era mecânico de automóveis e inventor. Temos as patentes das máquinas que ele criou. Ele lutou na primeira guerra mundial, assim como meu avô lutou na segunda. Meu pai lutou sua guerra para se tornar brasileiro depois de ser um refugiado da guerra. A batalha que me sobrou foi a ciência. Sei que não é assim para todos, mas para mim escrever é uma mistura destes antagonismos todos. Uma mistura entre duas misturas, ou seja, entre confusão permanente por não saber onde estão as coisas e exasperação com a tentativa e a repetição que não fica de pé nunca, e assim mesmo vai mudando ao longo do caminho.
Uma pesquisa importante é a dos seus próprios escritos. Ler-se é muito importante. Isso é diferente de criticar-se, deixe isso para os especialistas: bancas, revisores, resenhistas e alunos. O começo não é tão difícil, mas em geral para mim ele é uma espécie de ensaio para achar o tom da conversa. Interior e exterior. Por vezes, o tema funciona, mas os agudos não trabalham bem com a retórica do texto, outras vezes a pressa faz com que a conclusão a gol venha do meio de campo ou cria aquela tensão de fazer o segundo tento antes do primeiro. O começo, dizia Freud, revela tudo. O problema é que a gente só sabe disso no fim, por isso não me importo muito com o primeiro tiro. É o terceiro parágrafo ou o segundo capítulo que decidem se estou na pista certa. No começo é tudo como o corpo do adolescente, você não sabe se aquilo vai ter cinco metros e ser fino ou quatorze centímetros e ser rombóide, se aquela ideia dá um livro ou apenas duas linhas de comentário rasteiro para uma piada.
O tempo é crucial, mas não o tempo de horas ou fins de semana, o tempo lógico da escrita, o instante no qual você vê um novo horizonte lindo na sua frente (só que você está no meio de uma conversa de bar e começa a ficar disperso na frente de seu amigo). Depois, chego em casa louco para escrever. Deixo para amanhã porque estava meio alto. Daí vem a insônia e acho melhor dar uma volta no computador para ver se passa. Raramente isso me toma a noite. O instante fulgurante da ideia esplêndida no meio da festa vira uma enfadonha tentativa de compreender-se e explicar a piada para quem não é da sua paróquia mais íntima. Muito se perde até compreender o tamanho, a perspectiva e volume das coisas, até achar o ponto de consequência. Quando se tem isso tem-se o texto. Ele caminha, ele fica de pé. O tempo seguinte é a conclusão. Essa não depende sempre do juízo das coisas e das perfeições da polidura última do seu unicórnio interior. Quando dá para amadurecer bem fica bom. As partes anteriores de gordura começam a cair como as pelancas de uma velha senhora. Aí o texto faz regime. Depois, diz minha esposa, vem a fase do polimento impossível, na qual uma “ajeitadinha” vira uma outra coisa e ganha vida própria.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Depois de escrever um livro de 657 páginas, apelidado carinhosamente pelos meus alunos de “O Jabuti Gordo”, que as más língua reputam dotado de conexão metonímica com o autor e, depois de rever a tradução infinita dele para o inglês, em um projeto que apelidei junto com meu tradutor, de “a volta ao mundo com Magalhães e Pigafetta” (um tripulante da expedição que fez um relato incrível desta façanha), jurei a mim mesmo que não existiriam mais projetos longos. Mas como dizia Tim Maia, sou meio mentiroso. Adiamentos também não são o problema maior, estou mais para tentar conter meus apressamentos.
Corresponder a expectativas é um tema que ficou para trás depois que vi trabalhos “feitos às pressas”, como dizia este paranoico extraordinário que foi o presidente Schreber, serem saudados como textos primorosos enquanto pérolas esculpidas a sangue, suor e lágrimas rolarem na lama da crítica e da querela improdutiva. Costumo dizer que é como a análise, vá dizendo ou vá escrevendo, vá naquela sessão para qual a sua vontade está zerada. Quase sempre, quando não são as piores, são as melhores. A cura vem por acréscimo, dizia Freud, acho que o reconhecimento e a autoridade também são assim. Outra forma de lidar com as expectativas de recepção é transformá-las em polêmica e controvérsia. Tento antecipar o autor maledicente, o crítico preguiçoso que vai cair na minha armadilha retórica, isso é veneno pois adiantar-se às críticas é caminho óbvio para me tirar o sono quando não se tem mais substância para a criação naquele dia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mostro sempre que posso porque tenho esta mania de achar que a criação é coletiva. Os tempos do indivíduo grande autor, como Freud ou Lacan, terminaram, hoje o que às vezes pode dar certo são grupos de trabalho, gente se enchendo o saco tão cotidianamente que você não sabe mais onde começa uma ideia sua ou quando o que você falou está lendo e interpretando uma ideia de um amigo ou aluno. Não tenho vergonha de publicar ensaios que podiam ter sido mais polidos e, na verdade, gosto da reescrita. Hoje a publicação está mais para uma versão do diário íntimo que você faz todo dia do que para a grande obra prima saída do gabinete do montador profissional.
Creio que o Brasil tornou-se (ou teria antes se tornado) um país de grandes jogadores de futebol porque simplesmente aqui temos muita gente jogando. Jogando por prazer, muitas vezes, em condições insalubres. É assim com a escrita também. Muita gente fazendo, e, sobretudo, se lendo e se falando, torna a crítica menos impiedosa e o compartilhamento da produção uma experiência coletiva. Mandar aquele texto para um amigo, lembrar daquela discussão, retomar uma ideia perdida, tudo isso faz parte de um cotidiano de escrita coletiva. Guardo sempre a experiência com a revisora do meu livro sobre o “Mal-estar, Sofrimento e Sintoma”, a Isabella Marcatti, que se “meteu” no texto, opinando, criticando e me perturbando até a última vírgula. Tenho certeza de que sem ela este nunca seria o “Jabuti Magro”. Só acontece porque deixo e gosto que outros se metam, de preferência sem deslealdade. Sinto que compartilho com ela algo da autoria do livro, mas não sei dizer muito bem o que é. Talvez seja o fato de que o livro vai saindo do monólogo e entrando em estrutura de diálogo.
Para mim o pior inimigo da escrita é a solidão narcísica do gênio, daquele que se acha prometido para um destino nobre em algum lugar entre Machado e Rosa, na quarta constelação à esquerda de Freud e seu filho unigênito Lacan, acima do seu inquisidor de tese, antes chamado orientador, que nunca compreende a originalidade incrível da sua ideia. Escrita é coisa que corta como machado e perfura como rosa, deve ser extensa como Lacan e humilde como Freud. Por isso ela ainda desorienta e perturba as pessoas neste mundo de sucesso instantâneo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevi a primeira versão de meu mestrado em uma máquina de escrever, Práxis 20 da Olivetti, que consegui comprar depois de trinta e oito dias seguidos dando aulas particulares. No verão seguinte era impossível não ter um computador 286 e arrumar uma impressora Olívia, barulhenta, para conseguir escrever alguma coisa melhor.
No começo o fetiche da caneta é irresistível. É impossível não achar que você vai jogar melhor porque tem aquela chuteira nova nos pés ou a camisa do Barcelona brilhando. Gosto de tecnologia profundamente, a de hoje e a de antigamente. Sou capaz de comprar uma caneta tinteiro com papel de arroz japonês especial em uma daquelas lojas pega-turista de Veneza (sem esquecer do selo com goma e sinete imitando século XVI que nunca vou usar).
Sou facilmente seduzível pela mais banal promessa de que uma tela maior ou um novo mouse pode criar magicamente aquela grama a mais de tempo e de prazer que resolverá tudo no próximo texto. Mas meu gosto pela tecnologia é profundamente paranoico. Como disse meu filho em um contexto que o leitor vai facilmente adivinhar “não deixe o computador saber que você está com pressa”. Sempre acho que há algum vírus maledicente fazendo com que o arquivo fundamental tenha sido roubado, ou que a impressora só não funcionou desta vez porque tinha que ler o paper no dia seguinte e o e-mail que não vai… então? Nunca confio nestas coisas tipo Dropbox, compartilhamento de textos que quando você mais precisa escondem a “senha” propositalmente de você.
Já escrevi à mão, mas também já terminei texto digitando em celular, sentado em banco de aeroporto com a carga a menos de 1%, já escrevi diante do mais lindo pôr do sol na Tanzânia ou da noite mais romântica na Grécia, já escrevi no intervalo do jogo final do Palmeiras. De fato perdi grandes momentos escrevendo. Devo tudo isso à tecnologia e à minha compreensiva esposa (ademais craque em tecnologia).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Gosto muito da história do Joyce que revirava latas de lixo em Dublin lendo receita velha e papel de propaganda para ter ideias. A origem maior das ideias, as melhores e as piores, vem inevitavelmente da escuta de meus pacientes. Só depois elas se combinam com as velharias que adoro ler simplesmente porque são velharias que ninguém mais dá atenção ou importância: meditação árabe sufi, tratado dos polinômios de Arquitas, filosofia metafísica da pior qualidade, textos técnicos de matemática ou narrativas ameríndias dos quais não entendo a metade.
Na adolescência fui fascinado por teoria das religiões, alquimia, teosofia, yoga e todo tipo de espiritualidade. Depois, encontrei uma grande admiração por gente que já estava meio fora de seu tempo, tipo Umberto Eco, nos anos 1990. Quando estava na faculdade, tínhamos uma competição para achar nos sebos o livro mais irrelevante de todos. Não esqueço nunca de “Paisagem Literária da Finlândia Medieval”, o emérito ganhador depois de anos de disputa. Minha esposa me chamava de “indi-folha” (uma estatística que o tal jornal publicava conhecida pela sua falta de contexto e relevância).
O hábito genérico que cultivo impiedosamente é a qualidade da experiência discursiva. Podemos estar morrendo de fome, de sede ou de tédio, mas a inconsequência com palavras e ideias é imperdoável. Este é também um grande defeito: me apego demais às palavras. É um grande sofrimento quando refaço diálogos ocorridos há quinze ou vinte anos, só para alimentar mais uma insônia “produtiva”. Escrever é só uma cura ou uma doença paliativa para isso. Uma conversa sem interessância é um livro perdido.
Por outro lado cultivo um hábito complementar, executado sumariamente na criação de meus filhos, que é a evitação de costumes babacas, esperados por intelectuais, eruditos e afins. Para isso recorro ao mito familiar de que os alemães se diferenciam dos franceses porque os primeiros têm cultura, os segundos têm civilização. Etiqueta, dizer coisas para agradar, criar imagens e efeitos pirotécnicos para parecer ou impor ideias é a coisa mais província francesa que há no Brasil. Só que seu oposto pragmático, de que “tá pagando tá valendo”, tipo “cada um por si e o dinheiro por todos” também é muito pouco. Precisamos um pouco mais de laboratório industrial e carregamento de peso na formação cultural para desfazer este complexo de elite “personalidade sensível” que só serve para recriar ideias fora do lugar. Mais Apollinaire e menos Baudellaire. Por isso misturar alta cultura universitária de vanguarda, com cultura futebolística popular é a minha receita. Não esconder demais os erros de meu português ruim, nem esquecer que neste país a primeira obrigação do intelectual é o dever da humildade e a dívida de gratidão por poder ter estudado, ademais coisas inúteis como psicologia e filosofia, em uma paisagem improvável.
Uma última, e talvez mais abrangente, origem da minha escrita são as experiências de luto. A perda de relações, de pessoas, de ideais e de projetos que às vezes nunca se realizaram. Escrever tira algo e cria um novo vazio, que não substitui, mas deixa o vazio anterior vir junto com a gente. Ele passa quando a gente passa ele para os outros. Escrever, neste caso, tem muito que ver com reparar, reconstruir e acertar as contas em um tablado substitutivo, mas também se despedir e dizer o que poderia ter sido dito e não foi. Não sou muito simpático com a ideia da escrita como sublimação, prefiro a ideia de que é ela o modelo do trabalho de luto. Aprender a escrever é aprender a morrer, porque uma hora vai ser o luto de si mesmo que vamos ter que fazer. Daí não vai adiantar rezar para São Ozymandias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Tanto como psicanalista como quanto escritor considero que tudo que pude fazer, com os outros e comigo mesmo foi resultado de trabalho, de formação, deformação e des-deformação. Tenho poucos dotes e talentos psicológicos, tipo fala macia e toque charmoso de violão. Não sou muito inteligente, portanto não vai ser no jeito predestinado, mas no “braço” que alguma coisa vai acontecer.
Também minha escrita começou como uma mistura vexatória de lacanismo barroco com aquela típica ostentação universitária, cheia de cacoetes que você acha que ninguém está percebendo. Dizem que tenho recaídas, mas na verdade luto com elas. Ao longo dos anos a escrita foi ficando mais solta e fluida, com menos pretensão e peso de fazer algo como uma “obra séria”. Você acaba descobrindo que perdeu já na saída. Que você não nasceu nos anos 1960, e que jamais saberá grego ou latim, nem terá aula com Foucault ou Barthes. Os pecados de juventude são os que ficam porque você ainda não sabe de nada disso.
Lacan dizia que é sinal de que você se profissionalizou quando começa a sentir tédio no que faz. De fato, às vezes escrever se torna tedioso, não porque o assunto não venha, mas porque as fórmulas antigas se tornam fáceis demais ou porque o pendor para a polêmica se impõe ao tempo de maturação das ideias. Ler também fica ruim quando tudo o que você tem pela frente é a próxima tese ou o próximo artigo obrigatório. Você fica sonhando com as férias, este estado infinito de “pós-tese” quando finalmente poderá ler “qualquer coisa”.
Uma coisa que poderia ter acontecido antes é a descoberta do Brasil. Digo a descoberta de que você está neste país, nesta língua, com suas limitações, envolturas e imposturas. Tive que estudar na Inglaterra para descobrir que é preciso levar o Brasil a sério, o Brasil como método, por assim dizer. Isso poderia ter vindo antes se tivesse me libertado mais rapidamente do complexo de estrangeirice. Se tivesse que voltar atrás teria investido mais em alguns fundamentos que depois é muito difícil compensar: mais estudo gramatical e sensato das línguas. Leio alemão, inglês, francês e espanhol, mas nunca tive nenhum curso regular, destes mais especializados sobre línguas… logo vai tudo na fé e na força, cheio de erros. Também me falta muito os clássicos de verdade, tipo Shakespeare e Homero, ou mesmo Thomas Man ou Proust, não uma coisa aqui e outra ali, mas aquela antiga experiência de poder se movimentar na obra. Talvez reler Freud inteiro ou Lacan de novo, agora para fixar bem, poderia ser uma alternativa mais caseira para o problema. Tem coisas que você lê antes da hora, outras que vêm tarde demais, quando não são mais necessárias ou se tornaram impossíveis.
Acho que teria arriscado mais e mais cedo, feito mais oficinas de poesia, com mais disciplina e constância desta vez. Teria levado mais a sério os laboratórios de teatro e uma formação mais sistemática em música ou história da arte. Sinto que minha escrita está sempre cheia de “rebarbas”, como em uma máquina extrusora de onde saem pequenos objetos plásticos, mas com uns restos inoportunos que atrapalham muito o conjunto da experiência, deixando ela mais rústica ou árida do que devia. A mania de reinventar o texto no meio acaba concorrendo muito para encobrir isso. Mas eu sei que o problema está lá. Ele vem de casa. Não tem cura, é como um defeito de origem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há uma onda de psicanalistas escrevendo romance policial, fazendo teatro e escrevendo minisséries para televisão ou dirigindo documentários para o cinema. Gostaria de fazer tudo disso um pouco, mas no fundo a resposta mais básica e sincera seria: escrever um romance. Um romance que fosse realmente lido. Talvez um romance histórico sobre a psicanálise no Brasil. Escrever com fartura de tempo, com desperdício de tempo, com a possibilidade de pensar devagar e febrilmente. Tenho este sonho de escrever em alguns lugares, tipo uma casa encoberta por folhas de plátano do lado da biblioteca do Boston College, um apartamento na Urca, em cima de um Pub na Holy Island no leste da Inglaterra, ou ainda perto da prisão congelante de Ushuaia na Argentina.
Gostaria de ler um livro sobre minha análise, vista por outros lados, que não este que se repete indefinidamente, que é o lado de cá. Podia ser pelo meu analista, mas também pelos meus amigos ou alunos, ou pelos meus filhos, que sofreram as transformações e efeitos colaterais do processo. Não precisa ser uma verdade muito benevolente, basta ter uma estrutura razoável de ficção. Gostaria de ler um livro que fosse uma tessitura dos outros livros que já li, uma espécie de súmula do percurso de coisas que poderiam ter sido outras, mas não foram. É um sonho de que em algum momento, no final, ou no começo, a gente encontra alguma ordem. Que não seja uma ordem de identidades ou de finalidades, mas uma ordem que permita contar uma história.