Chris Ritchie é escritora, professora, tradutora e intérprete, autora de “O tantra de tudo” (2015), “Na terra do fogo” (2016) e “Olé nas Fúrias” (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho atividades profissionais e interesses variados que impedem uma rotina diária. Há dias em que as aulas começam cedo e estes são os mais difíceis para mim, porque apesar de acordar às 6h desde os tempos da sexta série nunca me acostumei à pressão de ter que me agilizar para sair. Em geral, lembro bem os meus sonhos e demoro um pouco para sair deste espaço. Quando encontro nele uma boa história para contar, então, pode ter certeza de que vou me atrasar. Preciso fazer um rascunho antes de me levantar, porque os sonhos não resistem muito tempo depois que abro os olhos e vejo as horas. Nos dias em que as aulas começam mais tarde, faço as anotações com calma e, dependendo do que surge, começo a desenvolver o texto e fico com ele por duas, três horas ou vou correr. Gosto muito de esportes, pratico corrida e ciclismo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Embora tenha boas ideias pela manhã, como contei acima, com as anotações, prefiro fazer o “trabalho duro” mais no fim da tarde, quando não tenho aulas, e noite adentro. O silêncio da casa, da rua é fundamental para que eu ouça o que estou escrevendo, mesmo antes de escrever. Não creio que eu tenha um ritual para me preparar para a escrita porque fico pensando no texto que abandonei de manhã. Na verdade, acho que é o contrário, talvez eu tenha um ritual para encerrar a escrita do dia, vou à cozinha tomar chocolate quente para dormir, até no verão. Mas, às vezes, estou tão cansada que tomo só água mesmo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo sempre em qualquer tempo que eu tenha, mas sem metas diárias. Quando o tempo é pouco para a escrita, na época de projetos de tradução ou eventos de interpretação, por exemplo, sacrifico o tempo dos esportes, das tarefas domésticas, dos amigos e da família.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não acho difícil começar, mas sim parar. Normalmente começo o texto livremente com uma hipótese ou ideia, seja de sonho, de insight, de conversa, de notícia, de coisas que vejo e ouço por aí, e a pesquisa se desdobra a partir das necessidades do enredo, é ele que norteia a pesquisa. Até agora não aconteceu o contrário, a pesquisa definir o enredo, embora ela certamente me obrigue a ajustá-lo nem que seja para extrapolar ou jogar com os dados corretos, como fez magistralmente Tarantino com Hitler no Bastardos Inglórios, um dos meus filmes preferidos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Graças à disciplina do esporte, não creio que eu tenha problemas com travas, procrastinação, ansiedade ou medo. Fui atleta de corrida de longa distância dos 14-17 anos, treinava de segunda a sábado, com chuva ou sol, febril ou com cólica, porque o objetivo do atleta é ter um bom desempenho em competição mesmo se não estiver no seu melhor dia e, a cada competição, com ou sem pódio, voltar a treinar. Quando mais tarde comecei a praticar ciclismo de montanha, a primeira coisa que me disseram foi: não tenha medo de cair, porque você vai cair; aprenda como cair para não se machucar muito, porque você vai se machucar. Tudo no esporte sempre foi intenso para mim, como na escrita, e acho que naturalmente transferi esses aprendizados. Da escrita para o esporte talvez tenha sido respeitar a voz própria, o estilo, que, com um treinador gritando no seu ouvido ou pesquisas dizendo o que você tem que fazer, pode ser sufocado pelo excesso de técnica e metas. Quando se parte destas premissas de dar seu melhor sabendo que para muitos, inclusive você próprio, não será o suficiente e que você vai se machucar independente da sua técnica e esforço, parece que ajuda bastante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisão é para perder a conta, a medida não é um número, mas um prazo ou a exaustão. A leitura crítica de terceiros é fundamental para eliminar os cacoetes do nosso pensamento, os deslizes na coesão ou a possível chatice das nossas ideias brilhantes. Sim, sim, mostro tudo, menos estas respostas aqui. Por isso não se espantem se encontrarem problemas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou mais orgânica do que tecno, mas escrevo com o que estiver à mão. Na rua, além do celular, que tem a função “notas”, ando sempre com caderninhos, são eles que ficam do lado da cama, por praticidade, já que o PC fica no escritório e não durmo com o celular no quarto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Será que já respondi na 1 e na 4? Mas para resumir, acho que meu principal hábito é prestar muita atenção, tanto ao mundo externo quanto ao interno e como eles se relacionam. Acho que no filme Adaptação, de Spike Jonze, há uma discussão entre os irmãos gêmeos sobre como fazer um filme sem história – este é o projeto de um deles e o outro afirma que é impossível porque, a partir do momento em se aponta a câmera para algo ou alguém, as histórias já estão lá. Acredito nisso e acho que, como vocês podem ver, eu gosto muito de cinema e também de música, além de escritora, sou poeta e amo a poesia – a apreciação de diferentes formas narrativas e linguagens é um estímulo constante.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Esta é a pergunta mais difícil. Cresci escrevendo e diria que minha escrita cresceu e cresce comigo, conforme meu corpo muda. O primeiro poema que me lembro de ter escrito foi aos 8 anos, em inglês, para minha mãe, mas ela não gostou e eu, desolada, o joguei fora. Durante o ano dos meus 10 anos, fiz um livrinho de presente de natal para ela e meu pai. Os poemas ali estão impregnados de um amor filial romântico, ideias românticas sobre o amor deles, mas também questões de hierarquia e até ambientais. Destes poemas ela gostou, guardou-os e me devolveu quando eu me assumi escritora, há seis anos, trinta e cinco anos depois de tê-los escrito, quinze depois de ter começado o ciclismo de montanha e aprendido sobre a certeza de cair e me machucar. Precisei deste tempo todo para ouvir e acreditar que eu tinha algum talento e não ter medo de me machucar por isto. Se pudesse voltar, eu me diria para começar o ciclismo de montanha o quanto antes.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho dois projetos de romance. Um é sobre os desdobramentos para uma personagem secundária de uma tragédia contada no meu primeiro romance, que deve ser publicado este ano. O segundo parte de um processo judicial baseado numa fraude. Gostaria de ler estes que vou escrever e também todos os que nossa brilhante literatura brasileira produzirá inspirada pelos descalabros destes nossos tempos.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O projeto precisa ter uma estrutura mínima para começar, quer dizer, claro que ele pode surgir de uma ideia espontânea, mas para ter status de projeto, precisa de um bom argumento e um roteiro de pesquisa, senão vira apenas um “imã de geladeira”. Depois de pronta a estrutura, virão as longas horas de escrita em que se deixa fluir, aí reside o risco permanente de abalo das bases, que deverão ser refeitas, então. A revisão constante entre esses dois momentos da criação é essencial para chegar ao texto que me satisfaça. Neste sentido, todas as frases representam um desafio.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Sou poeta e escritora, tradutora e professora independente. Isso significa que apenas parte da minha agenda é planejável, há trabalhos que surgem com urgência, sem falar nos poemas, que são tão imprevisíveis quanto inevitáveis. Estou acostumada a esta rotina ultra flexível, para não dizer caótica, mas com certeza preferiria fazer uma residência literária de seis meses a cada dois anos para dar cabo dos meus projetos literários arquivados. Precisaria de apenas uns 20 anos nesse esquema, por enquanto – rsrsrs.
O que motiva você como escritora? Você lembra o momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O desejo de existir me motiva e escrevendo existo como desejo, preservando um instante, uma paisagem, uma vida, realizando algo impossível, transformando ou denunciando uma realidade inaceitável, e também me divertindo com sons e ideias.
Sobre a decisão de ser escritora, há dois momentos marcantes, um na infância, aos 7 anos, e outro quase quarenta anos depois. Quando criança, eu gostava muito de bisbilhotar o quarto da minha mãe, me sentava no chão, recostada na cama dela, folheando seus livros de cabeceira. Ela tinha vários da editora Aguilar, aquelas edições caprichadas de couro com letras douradas e papel bíblia, entre eles Fernando Pessoa, a obra completa, incluindo os poemas em inglês. Era o livro de cabeceira que mais tinha anotações dela e, talvez por isso, fosse o meu preferido. Um dia pensei que minha mãe ficaria feliz se eu escrevesse algo para ela como Fernando Pessoa e fiz um poema em inglês. Lembro o meu orgulho e expectativa ao entregar-lhe o papelzinho dobrado. Infelizmente, ela não gostou, disse que não tinha nem pé nem cabeça. Mais que decepcionada, fiquei intrigada, porque, afinal, eu não percebia a diferença – para mim Fernando Pessoa dizia coisas as desdizendo e me parecia possível dizer o que se quisesse, como se bem entendesse. Em vez de me desencorajar, eu pensei, vou escrever outra coisa que ela goste e comecei a imitar Vinícius de Moraes e minha tia-avó, Maria José Aranha de Rezende. Daí saiu o meu primeiro “original”, aos 10 anos, uma seleção de doze poemas rimados (um por mês) numa brochurinha que encapei com papel de presente e dei para ela no natal.
Cresci com essas ideias sobre ser poeta e sobre escrever, algo que se faz como brincar, e juntei uma coleção de cadernos e arquivos com poemas, histórias e crônicas. Foi só em 2012, quando meu filho passou por uma complexa cirurgia cardíaca, envolvendo alto risco de vida, que, nos 45 dias de hospital, comecei a escrever um romance que existia de forma germinal na minha cabeça desde a infância, acerca de uma tragédia na família: a morte do irmão caçula do meu pai escocês, aos 5 anos. Era um tabu, algo que se pretendia esquecer coletivamente e, portanto, ninguém falava a respeito. Eu conhecia o fato trivial – o Baby Robert morreu envenenado –, mas eu precisava saber mais e aos 9 anos, num dia das mães, que minha avó não comemorava e minha mãe inventava uma desculpa para darmos um beijo nela logo de manhã, sem presentes ou felicitações, perguntei se era porque o Baby Robert tinha morrido que ela não gostava daquele dia. Minha avó estava esperando que alguém a perguntasse há 35 anos. A partir dali, passamos a conversar sobre a vida dela e, anos mais tarde, quando me vi neste lugar da mãe que poderia perder seu filho, entendi que eu era a escritora que destrincharia essa dor. O romance histórico Glasgow Green, escrito em português, ainda está inédito.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Apesar de estarmos falando dos anos 1970-90, cresci num ambiente perversamente conservador e machista – perverso porque posava de moderno e liberal, mas no fundo esperava-se que eu fosse uma boa menina para um dia me casar bem e repetir o mesmo papel da minha bisavó. Eu me rebelava contra isso, mas não tive nenhuma mentora para ajudar com ideias, leituras e argumentações. Eu achava que para fugir desse script tinha que ocultar o que eu entendia por características femininas no ser e no escrever e assim copiava autores do cânone escolar – Bocage, Matos Guerra, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, José de Alencar, Euclides da Cunha, etc., além dos já citados Fernando Pessoa e Vinícius de Moraes, entre outros de língua inglesa como Hemingway – meu eu-lírico na adolescência era homem. Foi só na faculdade que comecei a ler autoras – Raquel de Queirós, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Jane Austen, as irmãs Bronte, Katherine Mansfield, Virginia Woolf, entre outras. E, a partir da ascensão no mercado da literatura feita por mulheres, na década de 2000, comecei a parar com a mutilação da minha escrita. A leitura de Orlando, de Virginia Woolf, foi crucial nesse processo de cura.
Caso ainda reste dúvida, este é mais um exemplo de como a questão da representatividade é essencial à formação e à realização de qualquer pessoa. Viva a diversidade!
Você poderia recomendar quatro livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Orlando, Virginia Woolf (1928) – pelos motivos citados na resposta 4: Orlando é um nobre inglês, que, ainda jovem, um belo dia simplesmente acorda mulher e se torna imortal.
O deus das coisas pequenas, Arundhati Roy (1997) – é uma belíssima história de amor que denuncia o sistema de castas na Índia; o livro levou a autora a ser processada por obscenidade.
Carta à rainha louca, Maria Valéria Rezende (2019) – a incrível história até então não contada do Brasil colônia que é um verdadeiro tratado de sororidade para os dias de hoje.
Deus adora besouros, Chris Ritchie (2019) – romance de formação de um portador da Síndrome de Asperger; organizado em 15 capítulos, cada um referente a uma mulher com papel decisivo na formação do protagonista. Participante do Prêmio Kindle (2019), disponível aqui.