Chico Lopes é escritor e pintor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho rotinas meio indefinidas. Sou aposentado e, como também sou pintor, com muitas exposições já realizadas, minhas atividades se dividem. Em geral, começo a escrever pelo Facebook, postando minhas ideias, ou respondendo a amigos pelo inbox. Se saio um pouco pela cidade, parando nos cafés, levo sempre meus cadernos para anotações, que podem ou não serem posteriormente aproveitadas em textos literários. Estou atualmente num processo de corrigir um romance e um conto, que serão publicados, creio, em 2019.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho horas específicas. Mas gosto das horas do dia, em que a lucidez parece estar mais viva, manhã avançada ou tardes. Não escrevo à noite, embora, em certa fase de minha vida, tenha sido um notívago inveterado. Hoje em dia me parece que a luz diurna propicia uma objetividade maior. E também, como aposentado, tenho esse luxo de poder escrever quando me dá na telha.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não estabeleço metas e, francamente, acho horrível ver como os americanos (escritores ou candidatos a escritores, pode-se ver isso em filmes) dizem com naturalidade que precisam escrever mil palavras (ou mais) por dia, como se literatura tivesse algo a ver com aritmética. Escrevo o que a inspiração (palavra maldita, mas oportuna) dita, sem nem de longe pensar em contar palavras. Às vezes um jorro enorme acontece, e quase sem precisar de revisões. São momentos mágicos. Hoje em dia há uma tendência (derivada de uma crítica muito rígida) que desdenha da inspiração, dizendo que só o trabalho medido e racional importa. Não concordo com essa tendência de modo algum. O grau de produtividade que um escritor pode alcançar é muito variado e subjetivo. Aliás, “produtividade” também é uma palavra torpe, porque não somos operários destinados a apresentar uma certa quantidade de trabalho diária.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sou muito de compilar notas, mas faço anotações, que posso aproveitar ou não. Não é difícil começar, mas sempre penso numa frase que me arraste, me enfeitice. Quando me entrego à escrita, ainda que tenha certos trilhos a seguir, nomes de personagens e situações mais ou menos esboçados, me entrego ao mistério. O que acontece pode ter a ver com o que foi previamente anotado ou pensado, mas pode ser coisa bem outra, e eu gosto do imprevisto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As únicas ansiedades e expectativas que tenho são em relação a mim mesmo e ao que vou achar do que fiz. Já trabalhei sob prazos, mas eram trabalhos sob encomenda, traduções, biografias etc. em que não punha muito de mim, apenas me sentia trabalhando em função de determinados resultados e pagamentos. Quanto a meus escritos mais pessoais, adquiri, creio eu, a segurança blasé de um veterano, que não se importa mais com o que os outros possam pensar. Se tenho um trabalho em que me aprofundei muito e em que muito acreditei, dispenso qualquer opinião em contrário, a menos que seja muito construtiva e oportuna (já aceitei modificações de editores numa boa). Mercado e publicação são coisas que vêm por último. Estreei aos 48 anos com um livro de contos. Passei, portanto, quatro décadas escrevendo apenas, sem pensar em publicar. Isso me deixou bem desprendido.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Vou lá saber quantas vezes reviso uns textos? Quantas acho necessárias, e, aliás, por que tanta preocupação com números? – escritores que dão números certinhos, respondendo no ato, estarão mentindo, na certa. Mostro meus trabalhos para algumas pessoas nas quais confio sim. E aceito modificações, contanto que me pareçam vir a aperfeiçoar uma ideia, corrigir uma outra. Quem não as aceita é vaidoso e tolo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre no computador. Facilita muito. Mas anoto muita coisa em cadernos, coisas que, aliás, têm vida própria, não desembocam necessariamente em livros a publicar. Assim, preservo minha letra e posso escrever num canto qualquer, numa mesa de café.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De onde vêm minhas ideias? De todos os lados e até dos mais inesperados. Leio muito e vejo muitos filmes. Além do mais, me interesso por artes como a pintura e a música. Tudo acaba sendo filtrado. Não posso deixar de dizer que me alimento muito do meu passado, que acho muito fértil, muito rico. Tenho a impressão de possuir um vale particular de fantasmas, aos quais posso sempre que possível recorrer.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não creio ter mudado muito em minha forma de escrever ao longo dos anos. Quando estreei, tinha 48 anos, já sabia bem o que queria. Coisa, aliás, que costumo aconselhar aos mais jovens: demorem, demorem muito para estrear, não publiquem qualquer coisa que estão escrevendo na pressa de fazer sucesso ou, sei lá, conquistar algum amor precoce. Livros, na juventude, melhor que sejam rasgados, rasgados até que haja alguma coisa que valha a pena. Suprimir é melhor que publicar, nesses casos. Se eu voltasse às porcarias que escrevi na juventude (e que, claro, eu achava o máximo), olharia com cuidado para elas e aproveitaria o pouco que delas dava para aproveitar em algum projeto novo, maduro, consciente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho nenhum projeto que gostaria de fazer. Meu último romance, terceiro do gênero pela ordem, me satisfaz bastante, passei a vida pensando em escrevê-lo. Não há também nenhum livro que eu gostaria de ler e que não exista ainda. Estou numa fase de releituras. Reler Em busca do tempo perdido, de Proust, ou Grande sertão: Veredas, de Rosa, me deixam muito feliz, com a impressão de que a fecundação pelos clássicos tem validade pra todo resto da vida.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Iniciando um novo projeto, tenho quase sempre uma noção parcial do que vou escrever. Geralmente, são personagens que vão me surgindo a partir de certas situações e não os esquematizo muito – deixo que prossigam em condições latentes na minha mente e depois os transfiro para o papel. Mas tenho sempre uma espécie de rota a seguir, ainda que não seja muito clara, e acredito muito que ter um final definido na cabeça ajuda a construir melhor um romance ou novela ou conto. É preciso ter parte dos trilhos dispostos para pôr o trem a funcionar, por assim dizer, e um final estabelecido é um horizonte fixo a que deveremos chegar, de um modo ou outro, o que deixa mais claro o processo (em geral obscuro) em que mergulhamos.
Eu diria que há um tanto de planejamento e outro tanto de deixar fluir. Sem mistério, sem descobertas imprevisíveis, não teria a menor graça escrever. Penso que a última frase de um livro é mais importante que a primeira, embora ambas tenham grande importância. Acontece que muitos livros são prejudicados por desfechos decepcionantes ou que não complementam logicamente o que o leitor leu até ali.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Muitas coisas acontecem ao mesmo tempo ao longo de uma semana – sou tradutor e tenho prazos a cumprir com encomendas, mas ao mesmo tempo estou aposentado, aos 67 anos, o que me permite tempo para me dedicar melhor a projetos pessoais. Os projetos vão se acumulando sim, livros inéditos em andamento, sem prazo para publicação, e também uma atividade constante na internet, devido às solicitações dos amigos e a postagens sobre Literatura e Cinema, que são as áreas que mais me interessam. Além disso, de vez em quando procuro um tempo para a Pintura, pois sou pintor também, com muitas exposições realizadas. De modo que minha vida é de certa forma um turbilhão, a que procuro dar uma direção disciplinada, nem sempre conseguindo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
A motivação para escrever é um assunto vasto e complexo. Costumo dizer que vivo num mundo mental um tanto fantasmagórico e que nele fantasmas me assediam exigindo tomar forma no papel. Em geral, são desejos não realizados, sonhos não muito definidos e uma vontade obstinada de construir outro mundo, esse que a arte literária nos permite. O passado me obceca também, porque fui um menino medroso, infeliz, perturbado por pesadelos, de modo que alguma coisa desses desejos e terrores antigos ainda me compele a escrever. Não me lembraria com exatidão quando comecei desejar a escrever, mas creio que fui muito estimulado por ser um daqueles ginasianos cujas redações os professores elogiavam e depois encontrei amigos que faziam música popular, para os quais fiz letras, e fui me aprofundando um tanto mais em poesia. Quando comecei a escrever os contos (que são, de certo modo, a parte mais substancial de minha obra de ficção), foi sob o impacto das leituras de Dalton Trevisan, nos anos 1970.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
As dificuldades para encontrar uma voz própria, no início, são imensas, porque, como leitores, estamos sujeitos às influências das leituras mais recentes, tudo parece desmedido, os caminhos todos parecem abertos e dificilmente escapamos de escrever algo que não seja, de algum modo, derivativo. Mas a voz vai surgindo, à medida que descartamos aquilo que não nos parece provir de uma fonte mais autêntica, mais pessoal. Tive influências de Jorge Amado, Dalton Trevisan, Dostoiévski e muitos outros autores no início. O impacto de ter descoberto Proust naqueles anos foi também decisivo. Mas, quando publiquei meu livro de estreia, já tinha 48 anos, e já havia forjado minha própria persona literária. Se eu tiver que escolher um autor de predileção, escolheria Proust, porque o releio com muita frequência e fico abismado pela complexidade psicológica de seus personagens e pela riqueza de suas percepções. Por outro lado, um escritor bem mais conciso, às vezes até mesmo seco (em comparação com Proust), me afeta bastante também; é Graciliano Ramos, que releio com frequência.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Três livros a recomendar aos leitores? Bem, escolherei um meu, recente, “A passagem invisível”, que é meu quarto volume de contos (comecei a publicar em2000). Foi publicado pela Laranja Original e está no catálogo desta editora, bem como em livrarias de S. Paulo e Rio. São oito narrativas, e acho que nelas consegui uma evolução em relação aos meus contos iniciais. Em segundo lugar, escolho “Que fim levaram as flores?”, do escritor curitibano Otto Leopoldo Winck, publicado recentemente, que recomendo por trazer uma preciosa visão dos revolucionários sonhadores dos anos 1960 num painel muito completo da época da
ditadura e da luta armada no Brasil (em Curitiba, mais propriamente). Em terceiro, recomendo muito a leitura de “Capote”, biografia de Gerald Clarke que reli muitas vezes e acho que é do maior interesse a todos os escritores, porque é um livro de rara compreensão da vida de um escritor mostrando seus anos de formação até a chegada ao sucesso, à fama e à riqueza, só para indicar como essas três coisas podem ser nocivas para o homem e o literato, pois depois delas Capote entrou em triste decadência.