Chico Lopes é escritor e pintor.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Em geral, estou envolvido com vários projetos porque minha vida é bastante dividida entre escrever, pintar, prestar serviços a uma pequena editora de Poços de Caldas, MG, a Estância Projetos Editoriais, fazer traduções, ver filmes e estudar Cinema em livros e várias navegações pela Internet. Quando me dou conta, pareço precisar de tentáculos, mas, ao fim, consigo fazer muitas coisas com tranquilidade. Sou meticuloso e lento. Detesto trabalhar sob pressão e por isso sempre sonhei poder estar como agora, aposentado, e sentir que o tempo me pertence. Os projetos literários pessoais acabam tendo prioridade, mas a publicação de um livro, no meu caso, pode tardar que não me importo com isso. Aprendi a curtir o tempo de espera vivendo, até os 48 anos, sem publicar livro nenhum. Meu primeiro livro publicado (pelo Instituto Moreira Salles ) foi em 2000 (“Nó de sombras”, contos).
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Sou muito intuitivo e ouço meus sonhos ou, se surge um plano de romance ou conto, gosto de ter seu final bem claro em minha cabeça. Creio que o final é mais importante que o começo, nesse sentido prático, porque, escrevendo o que possamos escrever, é para lá que iremos. Esse final, bem entendido, pode até ser ligeiramente modificado, mas será uma referência sólida para seguir. Porque há muita vagueza e muita mudança de ideia ao longo do trajeto de criação e muitos escritores sucumbem a essa vagueza, deixando-se levar apenas pela linguagem quando a história, o enredo, é na verdade muito importante. Penso sempre, de início, em termos de personagens, do que eles sentem, de alguma coisa que me inspire a respeito deles e me dê um caminho. Meu novo romance, a sair em fevereiro, “A ponte no nevoeiro”, nasceu de um sonho. Sonhei exatamente com essa ponte desconhecida do título, situada num trecho de fronteira do Brasil com algum país da América do Sul. Daí decorreu tudo.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
O silêncio é fundamental, e eu disponho dele em casa, onde não há crianças nem barulhos que me interrompam. O meu ambiente particular é o doméstico mesmo, um escritório isolado que possuo. Costumo parar para refrescar as ideias, como se diz, dar uma caminhada, enveredar por uma outra conversa com minha mulher, “arejar” o trabalho muito concentrado que é o de escrever um conto ou romance ou outro escrito (ensaio, poesia, crônica). Mas um ambiente organizado e muito silêncio são condições realmente ideais.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Se me sinto travado no meio de um trabalho que está me apaixonando, espero o período de bloqueio passar, porque ele realmente passa. Não gosto de forçar muito as coisas, acredito muito em espontaneidade, se bem que espontaneidade conscientemente trabalhada, curtida. Há momentos muito férteis e outros de paradas pra pensar e, afinal, a vida fora da literatura tem também suas exigências. É preciso, naturalmente, que um escritor tenha uma vida interessante quando não está escrevendo. No momento, com a pandemia, estamos forçados a uma escassa sociabilidade, quase que restritos ao circuito da família, mas há sempre o passado para o qual podemos voltar os olhos sempre que necessário e outras fontes de inspiração que acabam vindo em meio a sonhos, desejos, projetos. Creio que nisso que chamam bloqueio novas ideias estão sendo fermentadas. É preciso deixar que o Tempo, que tem suas peculiares razões, nos dê seus hiatos e nos recompense depois.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Acredito que me empenhei a fundo em tudo que escrevi, principalmente nas obras mais pessoais. No meu caso, convém distanciar os trabalhos sob encomenda dos trabalhos que são realmente pessoais, já que fiz algumas coisas por necessidade comercial (traduções, biografias, orelhas de livros etc) e nada mais. Meu último romance me deu bastante trabalho, porque eu perseguia uma visão muito abrangente, muito panorâmica, mas não podia perder de vista os detalhes. De modo que me orgulho dele, mas ainda assim, quando um livro está pronto e publicado, ele sempre gera uma espécie de insatisfação que já é motor para o próximo livro.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Os temas é que me escolhem. Na verdade, quando você pensa estar fazendo uma escolha muito consciente, está simplesmente acionando mecanismos obscuros que te levam sempre a certos personagens, certas situações, certas relações com o mundo. Penso que tudo nasce de um descompasso básico entre o personagem e o mundo que o cerca. Ele é um outsider, ele vê o mundo com olhos críticos e, quanto aos seus desejos, são sempre bloqueados por obstáculos que ele procura vencer sem acreditar que possa realmente vencê-los. Várias crises, incluindo a de convicção, o perseguem. Penso que, como todo escritor que nasceu sob a sombra do realismo do século 19 ainda mais problematizado no século 20, que, digamos, nasceu com a sina do “Homem do subsolo” de Dostoievski, um desadaptado que nem de si sente muita pena, está predestinado a um confronto duro com a realidade. Em geral percorro um caminho que vai da ilusão ao desapontamento, o que implica num crescimento pessoal do personagem, mesmo que o ceticismo o corroa.
Sobre o leitor ideal, creio que todo escritor tem o seu. Ainda que ele não seja mais que um vago fantasma, dialogamos com ele, porque estamos sempre nos esmerando em função do que ele poderia aprovar. O meu não é um alter ego complacente, eu acho que nenhum livro escapa a precisar de reescrituras, tantas quantas forem necessárias e possíveis.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Ao longo dos meus 68 anos de vida (grande parte deles dedicados à escrita), tive muitos amigos, passei por turmas e gerações diferentes, e em geral procurava expor os meus trabalhos concluídos a pessoas cuja cultura literária ou cuja percepção me parecia aguçada. Ouvi sugestões e as acolhi. Não acredito, na verdade, que um escritor se faça sozinho, ainda que seu trabalho seja em grande parte muito solitário, pois a opinião de alguns amigos seletos importa, mas, quando estou realmente convicto de ter feito algo certo, ouço sugestões criticamente, algumas acolho, outras descarto sumariamente. O que busco é a cumplicidade, a percepção correta do que escrevi, e muitos amigos perspicazes sabem dá-las. Mas o risco é profundamente pessoal e os erros e imperfeições são quase inevitáveis. Por vezes, um livro revisado e já pronto nos assusta pelos cochilos, vulgaridades, insuficiências, sentimos uma vontade louca de refazer partes que nos parecem mal resolvidas e tudo que se pode fazer então é esperar por uma segunda edição, isso quando uma segunda edição é possível…Se não é, só nos resta o consolo filosófico de que ser humano é ser sempre imperfeito, todos somos como que rascunhos de algo maior que gostaríamos de ser.
Geralmente só mostro meus trabalhos quando concluídos. Prefiro não dar nomes das pessoas que consulto quando tenho dúvidas a respeito do meu trabalho concluído. Sou muito grato a elas, que sabem do que estou falando.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Gostaria de ter tido um ambiente mais literário na minha juventude Sempre vivi em cidades pequenas onde a Literatura encontra pouquíssimo interesse e escassos representantes, os amigos em sintonia com a escrita eram raros e por isso me vali muito dos correios, dos correspondentes, alguns que já eram escritores famosos, como Ignácio de Loyola Brandão, com quem troquei longas cartas durante muitos anos (principalmente quando ele esteve na Alemanha escrevendo “O verde violentou o muro” e “O beijo não vem da boca”; trechos de cartas minhas apareceram nesse segundo). Creio que esses longos anos que me dediquei a ser correspondente de muita gente só fizeram aperfeiçoar minha embocadura de escritor, porque o correio era a salvação de todos nos anos 1970 sem internet, celular e os recursos de hoje em dia. Minhas cartas eram muito extensas, confessionais, repletas de achados literários.
Só que, como disse no início, o ambiente literário para mim sempre foi uma questão problemática. Minha família, gente simples, achava que eu era maluco por ler e escrever tanto e os amigos, naquela época, estavam mais preocupados com a música popular e as namoradas. Eu, por força do gosto por ler, escrever, pintar, me manter à parte, sempre fui considerado um tanto antissocial. Ninguém me disse o que eu precisava ouvir, mas, em todo caso, tinha correspondentes bastante cultos e eles me influenciaram e estimularam.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Acho difícil enumerar influências, porque lia demais, lia o tempo todo, de revistas populares a livros mais ambiciosos como os de Dostoiévski e Proust, sempre tive um grande ecletismo de leituras, mas reconheço que os livros policiais, os filmes de suspense, terror e mistério me atraíam mais que os outros e que há um lastro disso naquilo que escrevo.
Comecei pela poesia, lendo muito Cabral, Drummond, Pessoa, Cecília, Quintana. Mas os contistas me seduziam e por isso há mais livros de contos do que outro gênero em minha carreira. Eu lia Dalton Trevisan, Clarice, Graciliano, Machado, Poe, com grande prazer. Não sei qual autor pode ter me influenciado mais que os outros, porque creio que sou resultado de tudo isso e pinçar uma influência única parece impossível. Mas eu diria que nenhum escritor me impressiona tão profundamente quanto Marcel Proust, que leio e releio há décadas, sempre com paixão. No entanto, Proust é o modelo mais elevado que existe, porque escreveu um Livro dos Livros, ao menos sob meu ponto de vista.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
De meu recomendo sempre o último – no caso, “A ponte no nevoeiro”, que será lançado no próximo fevereiro pela Laranja Original. Mas, se a pergunta se refere a outros escritores, estou no momento lendo muito o albanês Ismail Kadaré, que me seduz porque é um escritor obstinadamente em luta contra ditaduras de seu país que acabou se exilando em Paris e tem uma obra muito rica, muito extensa e variada. Fiquei fascinado por suas memórias em “Crônica na pedra” e decidi ler quantos livros dele caírem em minhas mãos. Portanto, o recomendo sem piscar.
Quanto a outros, recomendo também Truman Capote, em cuja obra, romances, contos, ensaios, perfis, confissões, encontro um grande prazer, e Carson McCullers, escritora americana esquecida que tem alguns livros maravilhosos. Faço recomendações dos livros que aprecio com muita regularidade no facebook, conquisto algumas adesões (ninguém é obrigado a ter o meu gosto). Livros serão sempre meus melhores e mais fiéis amigos. Como imaginar uma vida sem ler? Às vezes, a sensação que se tem é que os livros são a única possibilidade de inteligência no panorama de deserto e estupidez que vivemos.