Charles Marlon é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Temos uma filha de um ano e três meses, depende muito do sono dela, o dia começa com ela, é o Sol da casa. Então, por vezes, o começo de um dia é continuação do anterior, principalmente quando os textos têm prazo. Mas considerando as noites dormidas a fio, acordo cedo e saio para resolver a questão dos boletos que teimam em chegar todo mês. Em geral, acordo atrasado e com vontade de dormir, quando saio em um horário bom, gosto de ir aonde preciso caminhando, para ir colocando as ideias no lugar, ou fora dele. É uma forma de forçar a cabeça a acordar também. De fim de semana gosto de ir à feira, ouvir as histórias que sempre pegamos pelos pedaços.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sempre funcionei melhor de madrugada, mas nem sempre a vida deixa a gente fazer o que precisa na melhor hora. Tenho a sensação, quase todo dia, que só acordo mesmo depois das 14h. Mesmo que trabalhe com textos durante o dia, só de madrugada, quando a cidade dorme quase completamente, e poucos ecos chegam pra acompanhar, consigo produzir com mais fôlego e concentração, até porque durante o dia, seja pela vida real ou pela virtual, me distraio muito facilmente e perco aquele negócio que tá na moda, o tal do foco. Agora, quanto aos rituais, não sou muito disso não, em todos os níveis da vida, acho que a única constante para mim, que me acompanha em tudo, é a desorganização. Mas no fim, parece que acho um caminho. Quase nunca o que havia imaginado, mas tem dado resultados. Tenho aprendido. Em geral, para escrever qualquer texto, acadêmico ou literário, leio o máximo que consigo, quase nunca tudo o que preciso, principalmente considerando os programas das matérias que faço para o doutorado. Mas acho que todo texto para mim começa com a leitura, até porque costumo escrever durante a leitura, na própria página, entendo melhor assim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho um planejamento fixo, sou desorganizado, faço as coisas na última hora possível, quando não dá mais para adiar. Mas acho que enrolo mesmo só para escrever, pois vou lendo, pensando, conversando com amigos sobre coisas que angustiam e que vão dar em texto, acho que aprendemos mais coisas importantes no bar, muitas vezes, que na escola ou na faculdade. E sou professor de formação, gosto de ser, acho a escola importante, sem dúvidas, mas não é um lugar sagrado do aprendizado. Escrevo, quando preciso fazer algo acadêmico, de acordo com o prazo, geralmente, preciso começar a escrever uns três dias antes do prazo acabar. Quanto aos textos literários, vou escrevendo, às vezes, em um mesmo dia escrevo dois, em alguns meses escrevo alguns pedaços por semanas seguidas, mas posso passar meses e meses sem escrever nada. Tenho escrito bastante nos intervalos de sono da Louise, que quando está acordada passa como um furacão, quer colo, coisas de criança saudável, quando não sou eu que quero o dela, claro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita começa para mim já durante a leitura, costumo ir escrevendo ao longo dos textos, nas margens, anoto coisas bobas, alguma coisa que me lembrou o texto, alguma ideia para desenvolver, às vezes, só copio mesmo o trecho, para entender melhor. Quando dá tempo, antes fazia isso mais vezes, copio as anotações em um arquivo de Word e imprimo, anotando página e tal, para facilitar quando precisar encontrar para rever ou citar, não conto com a memória, a minha é bem ruim para o que preciso lembrar, porém, ótima para o que era melhor esquecer. Depois de ler anotando, fichar, quando é o caso, tento fazer um esqueleto do texto que, inclusive, raramente consigo seguir, quando vejo o texto foi e me levou junto. Sempre tive muita dificuldade em começar um texto, mas isso tem se tornado cada vez mais difícil, às vezes penso em desistir e ir vender coco na praia, contar e ouvir histórias ao vivo, sem ter que planejar, corrigir, revisar, mas uma vez que começo e engreno, a coisa flui, em alguns momentos aparecem travas, volto a ler, vou dar uma volta, tomo um remédio etílico e retomo, tem dado certo até aqui. Da pesquisa para a escrita acho que é sempre o mesmo movimento de ler e escrever e ler e escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que escrever é uma coisa bem difícil, temos a impressão, que colocam na gente desde cedo, que escrever é tarefa cristalina, a pessoa senta, pega caneta, lápis, computador e vai colocando uma palavra na frente da outra em fila indiana e tá lá, o texto pronto e acabado. Tenho tido cada vez mais dificuldade, falando de textos acadêmicos, de produzir, pois chega aquela hora que não temos mais a pouca idade do início da graduação que as pessoas leem e perdoam quase tudo porque somos “jovens” e tal. Não há muito uma pressão. No mestrado, a coisa piora, você escreve, quase ninguém vai ler, é verdade, mas você tem aquela esperança e acha que tá super escrevendo algo importante. No doutorado, estou encontrando muita dificuldade, pois começo a pensar no que estou pensando e a questionar o que aquilo avança na discussão, que diferença vai fazer. Fora o fato de a gente querer escrever coisas inteligentes, profundas, relevantes. O que é, ao mesmo tempo, um trabalho árduo e ridículo. A maior trava tem sido um desânimo que tenho tido com o meio acadêmico e artístico, todo mundo é inteligente, profundo, sabido mesmo, mas a realidade só decai e piora a cada dia, tenho me sentido meio hipócrita e impotente. Não tenho exatamente medo de projetos longos, tenho é dificuldade em pensar algo distante no tempo, não sei nem se terá país pra gente viver depois de outubro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende, na verdade, tenho muita preguiça de revisar meus textos, primeiro porque releio e acho que tá faltando coisa, e sempre falta, depois por pura preguiça mesmo. Termino de escrever, cansado, às vezes, quase sempre, de ressaca, e quero fazer qualquer outra coisa que não tenha a ver com o texto, esquecer dele por um período. Quando eu era mais novo e tinha um tempo sobrando de puro ócio, podia me dar ao luxo e tinha o privilégio, injusto e para poucos, inclusive, de praticamente só estudar, escrevia tudo à mão, quando digitava, além de ir mudando muita coisa, acrescentando, cortando, já fazia a revisão. Hoje, escrevo direto no computador, ele já corrige muita coisa, mas todo dia antes de retomar a escrita, quando o texto leva dias, releio tudo e vou revisando, não tem um número de vezes exato, ao fim, reviso outra vez e peço para que alguém leia. Alessandra, minha companheira, é quem mais sofre, pois acaba sobrando para ela. Alguns amigos também caem na bobeira de aceitar ler e revisar, depois vejo os apontamentos deles e releio, corrigindo. Mas sempre passa um erro ou outro, não me aflige muito, tenho preguiça dos puristas da gramática, minha avó Isabel era a maior filósofa que já conheci, falava na língua dela, tinha ditados que explicavam o mundo em poucas palavras, além de ter me ensinado quase todos os palavrões que sei, tive professores, super chiques que não me ensinaram metade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antes, por ter mais tempo livre, escrevia tudo primeiro à mão, tenho ainda guardados vários cadernos com quase tudo o que escrevi durante a faculdade, acadêmico ou não, depois passava para o computador. Quanto aos textos, lia, anotava e fichava em arquivos de Word. Hoje, escrevo os textos finais diretamente no computador, mas ainda faço as anotações nos textos à mão, risco livros, cópias, sem problemas, as pessoas costumam abominar riscar livros, mas um livro, para mim, sem risco é um livro lido pela metade, eu preciso anotar, nem que seja só para me concentrar na leitura, para não dispersar, senão acabo lendo sem ler, só para chegar no fim e ficar livre, mas aí é melhor não ler. A única coisa que ainda resisto muito é ler na tela, não consigo, sei que é possível fazer anotações, sublinhar, fazer tudo o que fazemos com a mão, mas ainda preciso do texto no papel, nem que tenha que imprimir quatro páginas por folha, com letras minúsculas, para não acabar com as árvores do planeta.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sei lá de onde vêm as ideias. Acho que tudo o que a gente pensa vem de alguma outra fonte, a gente pode adaptar, mudar, dar um caráter mais pessoal para aquilo, mas não acho que tenho nada muito inédito. Acredito que o que dá para fazer é reproduzir um modelo sem refletir e reproduzir o que está posto, o que dá, inclusive, mais likes, mais visibilidade, ou a partir de várias fontes, tentar criar um monstro quase novo, que faça nem que seja alguns detalhes diferentes, avance em alguma coisa, mas é uma luta complicada. As ideias que tenho são fruto de tudo o que vivi, das coisas que lembram e sei de onde vieram, mas muito do que nem lembro que lembro e que me assombram sem que eu me dê conta. Ainda acho que ler é bastante importante para ter ideias, ser criativo, não se cria nada do nada, há um princípio, um processo, ainda que a gente não consiga recuperar precisamente. E ler como uma atividade ampla, não é só romance, teoria que contam, aprendemos muito lendo qualquer coisa, nem que seja aprender como não escrever, a como não pensar. Prefiro mil vezes ler um gibi do Tex, cheio de questões problemáticas, herói, mocinho, vilão, um mundo um tanto simplificado, do que um texto acadêmico hermético, chique, que diz o que todo mundo já sabe só que de um modo empolado para que pareça novidade. Outras formas de leitura também me ajudam, ver filme, séries, obras de arte que não sejam necessariamente literárias. Além disso tudo, a vida, andar na rua, pegar metrô, encontrar amigos, conversar, fazer comida, mas, principalmente, tentar estar atento para o que tudo isso pode nos ensinar, do mundo, da escrita, de nós mesmos, ficções bastante inverossímeis.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Acho que mudou bastante, mas a escrita é que me mudou bastante ao longo do tempo e continua me mudando, nem sempre pra melhor, infelizmente. Lembro dos primeiros textos que escrevi, não mostro para ninguém mas não é nem vergonha, aquela que temos no início, com o tempo passa e vira só vontade de ser lido mesmo, uma espécie de carência. Me formei – (formei-me é muito formal) – para ser professor e escrevo, duas formas de existir que querem toda a atenção do mundo, professor e escritor são bichos extremamente carentes que imploram por atenção. Vejo que há um processo, desde o que fiz nos primeiros textos até os que escrevo agora, algumas características se mantiveram, mudando, se transformando, outras abandonei, mas sabe-se lá até quando. Acho que todo texto escrito é devedor dos que vieram antes, sem eles, acho que não escreveria do modo que escrevo hoje, bem ou mal, mas nem é disso que se trata. Percebo que academicamente tenho feito um esforço de me livrar do que aprendi em termos de escrita mais formal, evitando termos difíceis que usava para mostrar, e muitas vezes fingir, erudição, procuro aprofundar o máximo que consigo as ideias que quero desenvolver, mas usando uma linguagem o mais clara possível, tento avançar em algum sentido, mas quero ser compreendido, não quero mostrar que sei isso ou aquilo, usar o estudo que me foi permitido como modo de me colocar acima de quem não teve as mesmas chances, tenho aprendido sobretudo isso. Tento trazer isso pros textos. Ultimamente tenho escrito contos, um caminho mais ou menos novo, tem sido um aprendizado importante, como escritor e como pessoa física e sem dinheiro, mas com a consciência de que podia ser pior, como é para muitos que estão desempregados ou em condições miseráveis, é uma forma de aprender a ser o mesmo imbecil possível e de ficar angustiado com a realidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que quero desenvolver é, além de escrever a tese do doutorado, criar um romance; não tenho a mínima noção de como fazer, os contos são uma espécie de laboratório, além das conversas com amigos, sobre as ideias de escrita, mas, para variar, estou procrastinando o início da escrita, tenho lido, em compensação, vários romances produzidos nessa última década, para aprender formas possíveis que as narrativas encontram para continuar, para existir. Mas ando meio descrente do meio literário e acadêmico, vivemos uma época estranha, ao mesmo tempo que, e isso é maravilhoso, todo mundo tem espaço para falar, o que não quer dizer que todos têm o mesmo espaço, nem as mesmas oportunidades, sinto que ouvimos muito pouco, e me coloco no bolo dos que mais falam que escutam, o próprio fato de ter consciência disso não me faz especial, me faz, no máximo, um idiota consciente de um defeito, entre vários. A cada dia que passa, fico com a sensação de que estamos muito afiados, combativos, atentos, participativos, posicionados nos discursos, mas isso tudo não tem surtido efeito algum, segundo o que noto, sinto, vivo, na realidade, que decai sem disfarçar. Sei que estou sendo injusto com muitos que não se enquadram nas críticas que coloco aqui, muitos amigos que tenho, inclusive, mas, infelizmente, a hegemonia ainda é, na literatura e na academia, de certo modo, mais reforçar, do que recusar os valores e costumes condenáveis que vemos e vivemos em nossa sociedade, uma hegemonia branca, masculina, bem educada, de bem. Volto a escrever, aos poucos, depois de alguns dias de desânimo total, como uma forma de aprender a ser o menos babaca possível, como uma forma, não de revelar o que já está bem claro, não tenho que dizer que o mundo é injusto, desigual e cruel, mas como uma forma de manter viva a capacidade de se revoltar, de se indignar, usar o tempo que gasto estudando, lendo e escrevendo como um modo de pensar e tentar evitar, o quanto possa, a minha parte naquilo que a literatura e a academia tem de elitista e excludente.
Quanto aos livros, seja lendo para análise crítica ou para aprendizado literário, não gosto muito de pensar como eu gostaria que os livros que leio fossem, mas ver como são, aprender com eles, sem tentar encaixar em escolas e estilos definidos, criar uma interpretação, parcial e incompleta, através da leitura e não chegar a eles procurando achar o que me agrade. Se fosse assim, nem leria, já estaria satisfeito.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Em geral, planejar não define muito o que tenho escrito até hoje, com o tempo, os textos vão tomando corpo e criando uma coletividade entre si, em determinado ponto do processo, percebo que eles possuem algo em comum, um tema, um sentido compartilhado, só aí que, de algum modo, outros textos são criados para constituir a vizinhança dos já existentes. Mas acredito que os textos são mais fortes que nós, eles decidem o que vão formar e quem os acompanha na jornada, podemos até tentar forçar, colocar algo que não pertence ali, naquele conjunto, por vaidade nossa, ou por não sabermos se outro conjunto igual virá, ou se ainda teremos tempo de outro conjunto, mas é lermos uma vez mais o conjunto, após darmos, ou obedecermos, uma determinada sequência, que fica evidente que algo está fora de lugar, que algo sobra, não pode habitar ali. Agora estou na luta com um romance, algo novo para mim, neste caso específico, eu planejei as divisões internas, as partes que vão compor a obra de acordo com a ideia que tive e com o tema que me propus escrever, mas quando escrevo os capítulos, ainda que exista uma pesquisa histórica por trás, um certo horizonte de onde a obra vai, eles tomam seu rumo ao serem escritos, não acho que dê para planejar isso, senão, pelo menos para mim, seria muito chato escrever, acho que se fosse assim, eu não ia querer.
Acho que na escrita tudo é difícil, escrever é difícil. Pelo menos agora para mim é assim. Antes eu escrevia o que vinha na cabeça, era mais fácil, não descartava nada, escrevia muito, toda hora, sobre tudo, achava tudo muito bacana, mas escrever para mim era algo que era mais para mostrar aos outros, me preocupava em produzir para ser lido, para ter um livro, com meu nome, que as pessoas comprassem e lessem, ou mentissem que leram, a “minha obra”. Hoje, escrevo menos, mais escrevo o que realmente preciso escrever, ao menos quando escrevo poemas e contos. Atualmente, quando vem aquela vontade, aquele ímpeto de escrever não saio gastando palavra mais, espero, para ver se a ideia vinga, cresce, toma corpo e incomoda tanto, de tamanho espaço que ocupou que quase que sai sozinha, pois são os textos que para mim, hoje em dia vale a pena escrever. Escrever toma tempo, ler também, há uma certa responsabilidade em perder o meu tempo com algo que vai passar dentro de mim mesmo e que não precisa de papel e o tempo do, se ele existir um dia, leitor. Hoje esse tempo eu gasto cuidando da minha filha, gastaria mais inclusive, se pudesse.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Organizar pra mim é quase uma impossibilidade, nunca consegui com nada na vida, sou meio caótico em tudo o que faço, justamente porque faço várias coisas ao mesmo tempo, nunca consigo fazer e me concentrar numa coisa só. Pra mim os projetos vão acontecendo, alguns ficam de lado por um período e convivem com outros que nascem, então sempre tem dois ou três em estágios diferentes sendo produzidos. Em geral, vou fazendo as coisas, improvisando e elas acontecem, ano passado tomei alguns tombos na vida e percebi que planejar, nem que seja minimamente é preciso, estou aprendendo aos poucos, nem sempre o acaso e o improviso vão me salvar, talvez funcione quando falo de algum assunto, às vezes alguns que nem sei sobre, quando escrevo um texto sobre algo que também conheço pouco, mas na vida real e para os nossos sentidos e sentimentos mais profundos, aprendi na pauta e na ponta da pedra, é preciso planejar, porque quando a gente erra o caminho na Literatura, pode resultar em algo incrível, ou bacana, ou um lixo que a gente descarta, na vida o preço é mais alto e convivemos com os juros por muito tempo. Mas resumindo, não é exatamente que eu prefira, apenas não consigo ficar num projeto só, ler um livro só, escrever um livro só, ser sempre eu mesmo pra todo mundo, por isso sou mentiroso, não é nem para me dar bem e enganar os outros, até porque em geral me dou mal, não faço questão de ganhar, nem no jogo, nem na vida, que não deixa de ser um jogo também, no qual ninguém sabe as regras mas adora dizer que sabe. Minto porque me aborreço rápido com uma coisa só pra me concentrar, ler um só livro por vez, viver um dia de cada vez, tropeço ou no passado ou no futuro, ser um só o tempo todo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Escrevendo eu posso mentir e ser outro sem ser acusado de nada ruim, na vida real todo mundo mente o tempo todo e finge coisas, pra “não magoar”, “pra proteger” alguém, sempre temos os melhores sentimentos em nossos corações, mas ninguém assume isso, ou quase ninguém, do mesmo modo que as pessoas pedem “quero sempre que me diga a verdade, somente a verdade”, experimenta dizer a verdade para todo mundo, em metade de um dia, fica fácil ver que amamos a mentira, mais que tudo na vida, escrever é contar mentiras que revelam verdades, seja de um sujeito, de um tempo, de um espaço, de uma literatura, eu antes escrevia e publicava, acho que não exatamente pela minha qualidade como escritor, que hoje não acho de verdade que seja lá grandes coisas, mas é o melhor que tenho por ora. Publicava muito porque era jovem e gostava de escrever, isso era raro e o Eduardo Lacerda me deu uma chance que abriu caminho para que eu tomasse coragem para seguir e sigo até hoje, porque pesquisava literatura, fazia mestrado, tinha um futuro promissor me esperando, isso tudo, eu poderia ver como algo ruim, me deprimir, mas não é minha culpa, nem do Eduardo, mas isso revela que há um sistema em nossa sociedade que se chama literatura e que por mais que nós, que participamos como escritor, leitor, ou qualquer outro or, gostaríamos que fosse algo fofo e totalmente diferente de nossa sociedade que privilegia uns e exclui e elimina outros, por ser ela também parte do mesmo balaio, tende a se estruturar, em seu cerne, como um sistema seletivo e excludente, em todas as pontas de seus processos de criação e recepção.
Por ser parte da sociedade, a literatura é também, em grande parte, sei que alguém vai levantar o dedo e dizer, “mas tem o fulano de tal que escreveu a obra x que contraria seu argumento”, mas um fulano não muda o que é a hegemonia, mas a literatura é também, racista, como vi na Flip, única edição que fui na vida e que irei, aquilo não é a literatura que busco, é machista, tive, como vários autores homens que conheço, hoje reconheço e não tenho vergonha, assumo, aprendi que era babaquice e tento mudar, não que consiga sempre, uma fase que a literatura era um status para romance, impressionar as mulheres, ter livros publicados dá um charme, uma ideia de alguém destacado, aparentemente pensamos que nos dá o direito de agirmos mal, tratarmos as mulheres com pouco respeito, sermos homens no sentido pior da palavra. Não estou aqui dizendo que superei isso, nasci homem, moro em sociedade, respiro de um ponto de vista machista, tenho que me policiar todos os dias, inclusive na escrita, quando falo num evento sobre literatura, quando organizo um evento de artes. Eu vivo um momento literalmente belchioriano, “ano passado eu morri”, sete vezes para ser exato, sozinho no meu apartamento, que aluguei pois não conseguia viver lá sozinho, hoje dou conta, mas já se passou um ano, “mas esse ano eu não morro”, hoje escrevo para ficar vivo, vivo, escrevo, mesmo quando não dou uma linha à página, escrevo o dia, em estar vivendo, sendo eu mesmo meu próprio texto, sendo “o estudante” da vida que eu quero dar “pra mim mesmo” e para Louise, minha pequena, minha companheira na vida, minha filha, mas quem cuida melhor de mim do que eu mesmo.
Eu me dedico muitas coisas profissionalmente, pesquiso, está tudo atrasado? Claro, pois prazo foi feito pra ser cumprido, sempre no último segundo, leciono, sou apaixonado por isso, não por me iludir que ensino alguma coisa aos meus alunos, pelo menos não com o que falo, um terço da aula são piadas, outro, são frases irônicas e sarcásticas que nem eu entendo às vezes, o último terço, amém, é “conteúdo”. Aprendi na faculdade, a teoria que a gente ensina mais com as ações, com os gestos do que com as palavras, desde que Louise nasceu, minha experiência como pai é deixa-la experimentar o mundo, algo que eu não fiz, e faço mal até hoje, não dou bronca, não grito, não boto de castigo, alguns dizem e podem dizer que isso é irresponsabilidade, que sou um pai “errado”, com se tivesse um “certo”, que eu não cuido dela, que não “assumi o meu papel de pai, porque sou novo ainda” (risos). Mas nada disso é pipa no vento, eu tenho um projeto muito coerente na minha vida como educador, talvez a única coisa coerente em mim, mas acho que esse ponto positivo em carrego em mim, perdido em mil defeitos. Louise nasceu e desde pequena pude comprovar e hoje tenho certeza absoluta que ensinamos pelas nossas ações. Sendo pai, professor, amigo, qualquer papel que se possa gerar uma situação de trocar e mútuo aprendizado, acho q aquilo q fazemos faz muito mais efeito do que o que falamos. Não sei quando me tornei escritor, se é que tem isso, acho que todo mundo pode treinar a escrita e escrever o que sentir que precisa expressar, não tenho dom de nada, nem sou escolhido divino, eu fui lendo muito e escrevendo e melhorando, ou mudando, mudar é o caminho. Mas o que eu sei é que, ano passado, depois que passei um mês afastado do mundo, da minha filha, dos estudos, do trabalho, tive tempo para pensar só em mim e na minha vida, eu me tornei o pai, o professor, o estudando e o escritor que sou hoje, aquele que aparece pouco, que parece que não tá fazendo o que tem que fazer, mas quando minha filha experimenta a queda e percebe que pular no sofá pode ser perigoso, eu estou ali do lado, para não deixar ela se machucar mais que o suficiente, ela sabe, eu sei, que tem minha mão pelo caminho que ela for, por escolha e vontade dela, quando precisa dizer que algo está errado, converso com ela, ela fica triste, chora, deixo chorar, ninguém morrer de choro, chorar faz crescer também, eu sou um bom pai dentro dessa minha escolha de pai que quero ser, o mesmo faço com os alunos, independente da idade, criança é criança, não é imbecil, quando a gente cresce é que fica burro, eu, pelo menos, posso dizer que emburreci muito com o passar dos anos, converso, dialogo, nunca dei uma bronca, nunca gritei, nem por isso já fui desrespeitado, deixei de “ter o controle” da aula, a gente tem medo de dar liberdade, pois acha que se alguém que depende da nossa “criação” se perder, a culpa será nossa, se perder é também caminho, só se encontra quem já se perdeu algum dia, quando escrevo, o recado é quase sempre igual, “é duro, a vida não vale muito, mas há pequenos milagres pelos quais vale a pena persistir o amor, eu conheci o amor com Louise, antes eu não sabia o que era, a literatura, a arte, as poucas amizades que merecem o nome, do ano passado pra cá, perdi muitos amigos, acho que mereço, mas enfim, a escrita é minha melhor amiga, quando não tem mais ninguém, quando todo mundo desistir, quando a mão sobrar sozinha, vai haver uma caneta e um canto qualquer pra eu escrever.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Acho que esse negócio de “próprio” não existe completamente. O que é nosso na vida? Se a gente leva ao extremo, eu escrevo um poema, um conto, um texto qualquer, mas nenhuma palavra é invenção minha, não são minhas propriedades, de certo modo sinto que os textos não são muito meus, o mesmo penso sobre o estilo. Tudo acaba sendo uma mistura de influências, algumas nem sabemos, esses dias meu pai lembrou que minha vó só usava roupa com estampa de flor, eu adoro camisa florida, olha só que original meu estilo, não é? Na escrita, na minha, só falo por ela, o estilo é um remendar de influências das leituras que fizemos, não só de textos escritos, mas de outros “textos”, pessoas, coisas, objetos, tudo o que nos marca profundamente e faz a gente ser quem somos, o que também não tem muito de original.
Conscientemente sei que, eu poderia dizer que influenciou, mas vou ser sincero aqui, comecei quase que copiando a poesia do Rui Pires Cabral e um pouco do Manuel de Freitas, mas não por querer levar crédito em cima da obra alheia, mas exatamente por não me sentir alheio a elas, mas sentir que elas ecoavam forte dentro de mim e conseguiam, conseguem até hoje, dar forma, para coisas que eram sem nome e que doíam anônimas dentro do peito.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Recomendo, não sei se consigo destacar, gosto deles, fazem sentido em mim e gosto sempre de compartilhar essas leituras com quem eu puder.
Festa no Covil de Juan Pablo Villalobos.
Morada de Rui Pires Cabral.
Como um romance de Daniel Pennac.