Charles Burck é escritor, heterônimo de Wilson Costa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou um ser noturno, sempre fui, mas a cada dia mais estou, assim o meu dia começa antes mesmo do dia nascer, assim que eu me deito e a cabeça não para, ativada, estabelecendo comigo diálogos, debates, proposições e textos, aos pedaços ou inteiros, e ai de mim se não os anoto, voam de mim como se me castigassem ou ironicamente dizem-me; Há mais em você, para que tanto?
Eu não digo nada, apenas espero.
Assim eu não elaboro nada, sempre digo que eu me basto para ser feliz, ou ao menos me basto sendo feliz, mas não me acorde cedo.
Tenho algumas tarefas diárias, rotineiras, mas a elas me entrego com felicidade, e espero o momento de sentar-me, de me entregar à escrita, à leitura, às colagens no photoshop, ou fazendo as capas dos meus livros, recolhendo as imagens que posto no me perfil. Escrevo em média três poemas por dias, quase em sequência há mais de quatro anos, mas escrevo desde sempre, desde que me lembro como gente.
O que eu menos desejo na vida ê rotina, exceto a de escrever.
Um homem com rotinas é um homem aprisionado, e o meu maior bem é a liberdade.
Escrevo para ser ainda mais livre.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Preciso do silêncio, prefiro a noite, mas a tarde sempre tenho algumas horas, nunca me preparo, nunca me cobro, nunca me anseio, sei que se me sento a inspiração me vem, se não, basta que eu leia, entro nos blogs, muitos portugueses, então uma palavra me basta, duas palavras que se unem a formar uma ideia, um contexto, uma chamada, uma chama, quando tudo se inflama.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não, não quero compromissos, embora pareça que os tenha quando escrevo três poemas por dia, não os tenho, se não quero não escrevo, senão quero deixo o dia seguir, o bom é quando crio e não quando me forço a criar, quem sabe se a criação não seja o ato de ser.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não pesquiso, sou um intuitivo, vivo ligado no não ser, a tudo que não pareça estabelecer ligação, converso comigo, falo contigo, e as frases vão brincado de cirandas. Já escrevi romances, inteiros, sem jamais me perguntar, para onde essa historia irá? Quero ser surpreendido também.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso por vezes me ocorre, creio que seja o dilema de quem escreve, mas o fato é que ninguém pode com escrita suprir o todo, nem o contrário é verdadeiro.
De verdade a maior das preocupações é que eu não me corresponda, perder o contato com o belo, empreguiçar, mas só partirei cheio de felicidade se me for escrevendo. Amo a vida e viver, mas falo da morte com singeleza e simplicidade, sem medos, não sou alheio ao que ela me conta, e ela sempre me chama à vida, e não criar ansiedades, elas, de algum modo nos causam obstáculos, a ansiedade é querer pular etapas, quase sempre com uma cerca no meio.
Viver sem procrastinação ou sem ansiedades é facilitar o fluxo de sintonias com a vida, com a escrita, com o estado de alma apropriado a estabelecer conexões.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Bom, ai está a minha deficiência, a quem deixa as energias soltas, revisar é a própria definição de castigo. Sufrago, peno, padeço, meu olhos se recusam a ver, perco o contato com a obra, é pronto acabamento, fim dado, The End, mas sofri muito com as faltas de cuidados, não com os contextos, conteúdos, mas com ortografias, como ou troco letras, as mãos e o cérebro, por vezes destoam, cada um corre para um lado e eu preciso definir a obra em primeira instância.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não fujo do novo, mas uso os papeis de bar se preciso, papel e lápis é de uma essência visceral, é o que de mais apropriado se aproxima do vazar, do recolher lágrimas, orvalhos e regar flores, tudo como fossemos um jardineiro. O grafite é de uma bondade precursora, é o pó de giz, cinza.
As grandes vantagens dos eletrônicos são escrever claramente, sem garranchos e corrigir sem perder o texto e guarda-los.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Um tanto de vertigem e um tanto de prazer, ler e ler, e uma resultante que advém da mexida dos pensamentos, de revolver o estanque, de dar vida às coisas adormecidas, de tocar o intangível, de repor pedaços largados dentro dum contexto possível, impossível, surreal, de indomesticar o domesticado, fugir de si para de longe podermos nos ver. Sabermo-nos capaz de no dia seguinte criar das mesmas coisas tudo novo. Tudo dito de trás para a adiante sem medir o caminho feito, saber que a cada tom de cor o novo pode ser descrito trocando os lápis de cores de posições. Por isso leio, para comover os sentidos, e dar emoção ao que eu tiver que dizer. Se não, nada faz sentido. Sou o ermitão abrindo caminho entre sonhos e magias num mundo qualquer, penetrado, invadido, ou criado. Emociono-me com uma palavra bem colocada, isso é o atributo do sentir de alguém, de uma frase singela ou de um texto que desloca de dentro para fora partes da alma.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudei tudo, mudamos a cada minuto por si só, e por isso já seria o suficiente poder de mudarmos, mas eu escrevia de forma singela, lírica, romântica e precavida, não punha os temperos todos da vida, o mel e a bílis, a língua e a saliva grudada nas palavras, não cuspia, apenas doava o néctar tentando adoçar os amargores do mundo. Um dia uma escritora me disse, amadureça, ocupe o pedaço que lhe cabe do mundo. Não tema a você, vai, diga. Ainda não digo tudo, algum pedaço dentro de mim não se soltou, não creio que todas as amarguras sejam boas se ditas, ou que sempre ajudem a transformar alguma coisa ou alguém, se eu não perceber algum valor intrínseco positivo de mudar as condições do mundo para que dizê-las?
A ofensa gratuita pode ser poesia ou pode ser agressão, a agressão pela agressão é forma de machucar o outro com a dor sua, não traz crescimentos, não traz evolução, é machucar por pensar que a sua dor vai doer menos em você, mas não vai. Só duplicação de dor.
Eu escrevo sobre a dor, sim, a dor que exalamos para explicar porque doer pode ser lenitivo à dor do outro, a que partilhada não soma, dividi.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre há um livro ainda por escrever e, o arcabouço da vida nunca é obra acabada, se não há respostas para tudo façamos perguntas, cutuquemos a vida, revolvamos a lama que pode haver nela uma pedra brilhante aos questionamentos do mundo.
Eu queria escrever sobre a minha vida dos dias que eu primeiro me lembro, até onde um dia a minha ingenuidade acabou. A ingenuidade criança, meninice de poder contar o mundo sem ser o adulto lhe ditando as frases, esse livro possivelmente eu jamais poderei escrever. Tentei, uma vez, achei que estava pronto, mas pedi o HD, não se reescreve um livro a partir do mesmo ponto. Achei que havia coisa do destino tramando contra o menino, na segunda vez que perdi uma outra parte pronta dele, me dei conta do que não deveria ser contado, mas sem os não contados não haveria história nenhuma.
Há algum livro que não deva ser escrito?
A vida pode ser um colar de contas no pescoço de uma menina, mas pode ser um estupro de um amigo, ou uma dor pronta na ponta de um acoite todos os dias e todas as noites, uma maldita história que só se conta uma vez para não ferir ainda mais a criança.
Há as gestações doloridas e as dores paridas, eu não quis parir uma criança ferida.
Nem todas as palavras carregam as curas prontas, nem todas as dores se aliviam quando contadas, mas as histórias vivem no ar, um dia quem saiba essa caia do céu, em papeis, pronta.