Cesar Cardoso é escritor e roteirista, autor de “As Primeiras Pessoas, Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos” (contos) e “coisa diacho tralha” (poesia), entre outros.
Este questionário veio numa hora boa, pois estou mesmo pensando não apenas como eu escrevo, mas também por que, para que, para quem etc. E a primeira pergunta que me vem é: como virei escritor? Situo essa resposta lá na minha infância. Eu tinha um avô que me contava histórias. E aquilo me encantava. Depois, entrei para a escola e descobri uns objetos de mais ou menos um palmo de altura, chamados livros. E não é que eles estavam cheios de histórias como as que meu avô me contava? Virei leitor. Talvez essa fosse a melhor forma de me descobrir, de conhecer meu mundo e tantos outros mundos. Lá pelos 16, 17 anos, quis dar mais um passo e inventar mundos também. Então comecei a escrever. E não parei mais.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Todas as manhãs, uma das primeiras coisas que faço é planejar o meu dia. O que vou ler, o que vou escrever, o que vou fazer de uma forma geral. Aliás, eu não planejo só os dias. Faço planejamentos mensais, semestrais e anuais. O que não quer dizer em absoluto que eu vá cumprir todos esses planos. Não sou um cara super organizado. Acho que estou é tentando fugir de uma bagunça que me ronda de algum lugar da casa ou de dentro de mim mesmo, da casa que sou, com seus quartos com vista e seus porões remotos. Além disso, é gostoso, a certa altura do ano, olhar meus planejamentos e ver o que já realizei, assim como pensar no que não deu certo. E ir sempre refazendo esses planos. Por que será que segui por aqui e não por ali? Às vezes foram escolhas minhas, às vezes a vida é que me empurrou para uma determinada direção e eu concordei, feliz, ou não pude impedir. Também percebo sempre que os planos costumam ser maiores do que a minha capacidade de realizá-los. Mas olho isso com humor, deve ser uma certa mania de grandeza.
(Nesse momento, por exemplo, cheguei pela primeira vez ao final desse questionário. Imprimi tudo e estou fazendo uma leitura no táxi que me leva para o trabalho. E vou reler esse texto dessa forma, pelo menos mais uma três vezes.)
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A manhã sempre é uma boa hora. Depois do café, a cabeça está novinha em folha, boa para ter ideias. A tarde também rende bem. O motor da criação já engrenou e está com força pra seguir por vários caminhos. A noite é quando menos gosto de escrever. A noite é boa pras conversas, pra se ir pra rua, pros bares, cinemas, teatros, pro amor, pros encontros com os amigos e as amigas.
Não tenho exatamente um ritual para escrever. A coisa toda é mais informal. Eu escrevo literatura infanto-juvenil, poesia, contos, crônicas e humor. Escrevo basicamente livros e sou roteirista, escrevendo humor para a tv. Então, vou me dividindo entre esses vários campos. Tenho projetos para todos eles. Alguns vão se desenvolvendo mais rápido. Possivelmente, esses acabarão tendo uma prioridade no dia a dia. Alguns vão ficando para trás e às vezes até param por anos. Talvez nunca cheguem ao final. Talvez virem outra coisa (um conto sobre futebol virou um livro infantil 15 anos depois). E a tevê me obriga a uma outra rotina. Lá eu trabalho basicamente em equipe. Então tenho sempre alguma tarefa para executar, seja bolar ideias para uma reunião, seja escrever ideias que foram aprovadas etc. Nessa área de humor para tv, já escrevi Tv Pirata, Sai de Baixo, Casseta & Planeta Urgente, Toma Lá Dá Cá, A Grande Família e outros programas. Hoje estou escrevendo o novo Zorra, que está no ar há cinco anos.
Todos esses tipos de escrita têm muita coisa em comum, assim como cada um deles tem suas especificidades. Enquanto nos meus livros eu trabalho o tempo todo sozinho, na tv tudo é em equipe, a maior parte do tempo. São experiências que se acrescentam. O trabalho de escrita solitário me dá uma responsabilidade grande: eu estou ali decidindo tudo (ou quase). Isso exige de mim muita reflexão. O trabalho coletivo da tv traz um desprendimento muito bom. Eu apresento uma ideia. Se o grupo não gostar, é só jogar fora. É uma grande lição saber que o meu principal instrumento de trabalho não é o papel, a caneta ou o notebook, mas sim a cesta de lixo, onde posso jogar fora muita ideia que tenho e não é boa. Considero o desapego uma qualidade para um escritor. Ou pelo menos para o escritor que eu sou.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias da semana. Sábado e domingo é mais raro eu escrever, pois tenho programas para fazer com a mulher, as amigas e os amigos, a família. Mas dentre esses programas, estão a leitura, o cinema, o teatro e as exposições. E todo esse material também faz parte do meu ato de escrever, pois me alimenta de ideias, me faz refletir sobre o ato de criação dos outros e o meu. Não chego a ter uma meta diária de escrita, a não ser cumprir os prazos que determinados compromissos me pedem. A tv, por exemplo, tem prazos muito definidos. Colaboro com o blog Caneta, Lente e Pincel, onde também sempre tenho prazos para cumprir.
No momento (abril/maio de 2019), estou finalizando meu novo livro infantil que vai sair daqui a uns dois meses. O texto já está pronto e o livro já está em fase de produção. Estou escrevendo alguns materiais que a editora vai poder usar na divulgação da obra.
Essas metas eu não sigo à risca, mas elas me dão rumos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo não é caótico, mas é múltiplo. Escrevo vários projetos ao mesmo tempo. Por exemplo, como disse, estou com um livro infantil prestes a sair. E tenho um outro texto nessa área que também está pronto e enviei para a editora avaliar. Estou finalizando um livro de crônicas, e tenho mais dois, um de crônicas de humor e um de contos, que estão no meio do caminho. Tenho um projeto de poesia visual, que envolve um livro e uma exposição, e que também está mais ou menos no meio do caminho, se esse caminho chegar ao fim. E tenho alguns outros projetos que ainda estão bem no começo.
O ponto de partida de qualquer projeto são ideias, que podem surgir de diferentes maneiras. Lendo um livro, ou revistas e jornais, vendo filmes, peças de teatro, exposições. Ou simplesmente vendo uma cena na rua ou estando deitado na cama e tendo uma ideia. Vou anotando e agrupando ideias afins, que sigo amadurecendo e desenvolvendo, o que já significa escrever para um determinado projeto. Há trabalhos que precisam de mais pesquisa do que outros. Por exemplo, fui convidado pela escritora e ilustradora Graça Lima para escrever um livro juvenil sobre capoeira. Ela fez as ilustrações e o projeto gráfico. Chamei o livro de Capoeira Camará, uma ficção que conta a história da capoeira. Para escrever este livro tive que começar com muita pesquisa, lendo e vendo filmes e documentários, pois eu conhecia muito pouco sobre o tema. Então fiz um trabalho de pesquisa grande. Nessa etapa já vou fazendo anotações e imaginando a história. Até chegar um momento em que o que tenho de informação já basta e então é só bolar a história em si. Participei da Coleção Ecoar, lançada pela Editora Garamond, com temas ecológicos para o público juvenil. O meu tema foi a água e escrevi um livro chamado Você Pensa que Água é H₂O?, para o qual também fiz muita pesquisa. É um processo interessante juntar dados reais e aplicá-los na ficção. Um pouco como criar o arcabouço, a estrutura de uma casa, que não se verá mais quando a casa ficar pronta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Fui aprendendo a lidar de uma forma boa com essas questões. Tem horas que a gente trava. Depois a coisa torna a andar. Quanto às expectativas, sei que muitos trabalhos não chegarão a um resultado tão bom quanto eu esperava, já recebi centenas de “nãos” e vou receber muitos mais pela vida afora e os projetos têm tamanhos e ritmos de realização sempre muito próprios, que eu tento ir descobrindo e entendendo. Mas, de 2015 para cá, acho que venho enfrentando a fase mais difícil de todo o meu caminho como escritor. É que tive um câncer de próstata, fiz uma cirurgia e desde então faço tratamentos para que a doença não volte e fique sob controle. Isso foi – e ainda é – um grande susto. Eu acabo tendo que tomar medicamentos que mexem muito com o funcionamento de todo o organismo, o que, sem dúvida, influencia o rendimento do meu trabalho e, mais do que isso, a minha vida toda. Mas o que resta fazer a não ser encarar o problema de frente – e até, quem sabe, usá-lo um dia como tema?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito meus textos. Escrever tem uma primeira etapa, onde a graça está na invenção pela primeira vez daquela história, na criação dos personagens que vão vivê-la, ou, quando escrevo um poema, no ritmo que determinados versos vão ter e como cada palavra vai cair ali no papel. Depois, vem a releitura, ou melhor, as releituras, onde vou questionando os caminhos que escolhi, vendo se há outros melhores, olhando as palavras, as frases, os personagens, a história como um todo, como estou contando, é por aí mesmo que vou? Posso seguir em frente ou voltar atrás, recomeçar. O texto em que estou trabalhando um dia irá para algum lugar: um blog, um livro, um programa de tv. E enquanto ele estiver comigo, pode ser mudado. Durante o processo de criação há mais de um momento em que pego o que escrevi e leio em voz alta, para sentir os ritmos, as sonoridades, ver se tal e tal frase cabe na boca de tal e tal personagem. Gosto também de imprimir um texto e levá-lo na bolsa para ler pelo dia afora, quando houver um tempo. Pode ser um texto de poucas páginas, que levo para ler no trânsito enquanto vou para o trabalho, pode ser um livro que estou escrevendo e levo quando vou viajar e passar alguns dias fora.
Sempre mostro meus textos para alguém antes de publicá-los. Quase sempre mostro para a minha mulher, que não trabalha nessa área, mas é talvez a minha maior leitora. Meus dois livros de contos foram lidos e discutidos comigo pelo escritor Flávio Carneiro, em conversas fundamentais para o estabelecimento do livro e o resultado final. Modifiquei muita coisa a partir de ideias que ele deu. A excelente parceria que tenho com o pessoal da Editora Biruta, onde publico a maioria de meus livros infanto-juvenis, me possibilita sempre um diálogo sobre o texto final que enviei. Ou às vezes conto uma ideia para a editora Eny Maia e ela dá logo o pontapé inicial, abrindo o diálogo sobre a criação da obra. Certa vez, numa Bienal do Livro de São Paulo, estávamos conversando no stand da Biruta e ela me falou sobre histórias de detetive e como elas funcionam bem para um determinado público. Encarei aquilo como um desafio e daí resultou meu livro “Quem Pegou Uma Ponta do Meu Chapéu de Três Pontas que Agora Só Tem Duas?”, lançado pela Biruta.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A relação é tranquila, quando já domino a tecnologia. Mas como hoje surge uma nova tecnologia de manhã e outra à tarde, a coisa pode complicar um pouco. De qualquer forma, o ideal é ir descobrindo como elas funcionam e ir aproveitando o que elas têm de bom (e largando de mão o que elas têm de ruim, afinal, nenhuma tecnologia é santa ou demônio, tem sempre pelos menos dois lados, se não tiver vários outros).
Este questionário, por exemplo. Sento no notebook e começo a responder. Depois imprimo e vou com esse material para a rua, leio, faço anotações, volto pra casa, continuo no computador, depois leio em voz alta e por aí vai, até chegar a uma forma final. Então, os meus rascunhos também surgem assim, nesse bate-bola: escrevo no computador, imprimo e releio, fazendo anotações à caneta, volto para o computador, retrabalho, imprimo novamente e vou assim até o texto ficar pronto, seja um poema, uma crônica ou um livro.
E acho que nunca tenho férias, pelo menos férias totais. Estou sempre com papel e caneta no bolso ou na mesinha de cabeceira ao lado da cama. Uma ideia, uma frase, um verso, eles nunca têm hora marcada.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como falei, ideias podem surgir de muitos lugares. Coisas que li, filmes que vi, peças de teatro, exposições, jornais, qualquer coisa que vi na tv, músicas que escuto (adoro música, adoro cantar), cenas que vejo na rua. Ou simplesmente ideias que aparecem, sei lá eu de onde vieram. Da memória? Da infância? De lugares da mente que a gente nem conhece direito?
Meus hábitos para ajudar a criatividade são: leitura, tv, cinema, teatro, conversas, ou pensar simplesmente. E pensar engloba refletir não apenas sobre literatura e escrita, mas também sobre as experiências da vida, minha e dos outros.
Um exemplo. Acabei de ler “Relato de um Certo Oriente”, do Milton Hatoum e vi a construção de um personagem-narrador, criando uma obra como um quebra-cabeças, onde a leitura vai aos poucos montando as peças que nos empurram adiante naquela travessia, que acabarão incompletas e que nos empurram a recomeçar a leitura, ao chegar ao final. Um livro que me faz pensar sobre a criação de livros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou no meu processo de escrita. E espero que continue mudando. Guardo meus primeiros escritos, guardo muitos rascunhos. De vez em quando volto a alguns desses textos e releio para pensar quem eu era, quem eu sou e que processo aconteceu entre esses dois momentos. Qual foi o percurso que me trouxe até aqui? E qual será o percurso que me levará para onde eu ainda não sei?
Mas meus textos já escritos e publicados estão escritos e publicados e não penso em voltar a eles. Aqueles foram momentos determinados e decisões tomadas. Prefiro seguir para tudo que ainda está por vir e que tem tanto que eu não sei o que é.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah, projetos! Tenho tantos. E sei que muitos nunca chegarão a se realizar. Mas isso não é ruim. Esse ano, além dos livros que já falei que estou escrevendo, quero botar um site meu no ar e retomar meu blog, o Patavina’sque está parado há um bom tempo. Escrever guarda uma semelhança com viver. E eu não vou escrever nem viver tudo que desejo.
Quanto à leitura, gosto de ler textos que tenham proximidade com algum dos projetos que estou realizando. É uma das maneiras de pensar o projeto. E adoro passear em livrarias para ir descobrindo livros e autores, mesmo que não venha a lê-los. Também tenho minha lista de escritores preferidos: na poesia, Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, Paulo Henriques Brito, que considero o melhor poeta brasileiro de hoje. (É claro que tem muita gente que eu não conheço, minha opinião vem com minhas limitações). Na prosa, Dalton Trevisan, Sergio Sant’Anna, Amos Ós, Antonio Tabucchi, Luiz Vilela, Rubens Figueiredo e tantos outros. A lista é grande, não há como completá-la. Melhor parar por aqui.
Existem tantos livros já escritos que gostaria de ler que nem sobra tempo para pensar nos que ainda não foram escritos. (E nem falei aqui da fotografia, outro trabalho meu que está completamente parado.) A minha formação é uma espécie de queijo suíço, não pela qualidade, mas sim pela quantidade de buracos. Li pouquíssima coisa de Dostoievski, por exemplo. E morro de vontade de mergulhar na obra dele. Preciso de mais umas cinco vidas para ler e escrever tudo que quero. Não sei se a ciência vai chegar a tempo de me dar esse presente.
Achei bom anexar dois textos, para quem ler ter uma ideia de como escrevo. “A Luta do Século” é um conto do livro “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos”, que lancei em 2017 pela Editora Oito e Meio. E “a quadrilha de mata-cavalos” é um poema do livro “coisa diacho tralha”, publicado pela Editora Texto Território em 2015.
A LUTA DO SÉCULO
Para Oswaldo Martins
A primeira Bienal do Livro do Rio de Janeiro aconteceu em 1923 e conseguiu uma façanha: juntar na mesma festa literária Jorge Luis Borges e Franz Kafka. Os dois vieram ao Rio aceitando um desafio: provar qual deles era o melhor. Não iriam esgrimir canetas, papéis ou máquinas de escrever. Não. Kafka e Borges vieram ao Rio de Janeiro para se enfrentar em uma luta de boxe, proposta por eles mesmos como a forma ideal de se decidir quem era o melhor escritor, senão do mundo ou do Ocidente, pelo menos da primeira Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
Como Borges já estava praticamente cego, Kafka concordou que a luta fosse disputada em total escuridão. E na noite de 12 de maio de 1923, diante de um recém-construído Maracanãzinho inteiramente lotado e com uma multidão do lado de fora tentando entrar, as luzes se apagaram, um silêncio avassalador caiu sobre o estádio e Kafka e Borges subiram ao ringue, ajudados por seus segundos. Ouvia-se apenas o ruído dos tênis dos dois escritores, em seu atrito contra o chão emborrachado, as respirações ofegantes e os eventuais gemidos acusando algum golpe. Todos tentavam imaginar quem estaria levando a melhor. De três em três minutos o gongo soava, como que trazendo de volta à realidade aquela multidão. Até que o gongo soou indicando o final do oitavo round, o último. E as luzes voltaram de súbito, cegando por um instante a multidão. Todos esfregaram os olhos e finalmente puderam ver o ringue vazio. Os dois escritores haviam desaparecido.
a quadrilha de mata-cavalos
bentinho amava capitu que amava escobar
que amava iaiá garcia que amava brás cubas que amava carolina
que não amava ninguém.
bentinho foi pra o engenho novo, capitu para a suíça,
escobar morreu afogado, iaiá garcia acabou na tv,
brás cubas foi o primeiro defunto-autor
e carolina casou-se com joaquim maria machado de assis
que sempre quis entrar para a história.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Sempre faço planejamentos para meus projetos literários. Nunca deixo fluir. Se vou escrever um conto, começo pensando na história, com seu princípio, meio e fim. Depois penso em como vou contar aquela história, qual a melhor forma. Depois é que inicio a escrita literária propriamente dita. A mesma coisa vale para um romance, um texto de teatro etc. Talvez a poesia me permita partir apenas de alguma palavra, de uma ideia mais vaga, uma expressão qualquer e sair escrevendo direto. Agora, os planejamentos não são rígidos e muito menos imutáveis. Conforme vou escrevendo posso descobrir que tenho que mudar todo o planejamento que já fiz, sem problemas.
É muito mais difícil escrever a última frase do que a primeira. A primeira é o pontapé inicial, surge a partir de uma ideia que já pensei e pode ser mudada a qualquer momento. Então não é difícil. E é mais irresponsável, ainda tem o livro todo pela frente. A frase final será a frase depois da qual eu encerro o projeto, considero ele terminado. Ela nem precisa obrigatoriamente ser a última do livro, na última página. Mas ela traz consigo todo aquele trabalho. Isso tem muito mais peso, é bem mais difícil do que o começo.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Tenho vários projetos acontecendo ao mesmo tempo, sempre gostei de trabalhar assim. E os projetos são variados, já que escrevo conto, poesia, crônica, humor, esquetes e textos para tv, literatura infanto-juvenil… Isso sem falar no trabalho de fotografia que está parado e quero retomar. Então organizo minha semana de trabalho dividindo o tempo que tenho entre esses projetos. O que não quer dizer que eu siga à risca o planejamento, sempre há uma saudável bagunça nesse andamento de trabalhos. E, às vezes, a bagunça nem é tão saudável assim, mas está presente de qualquer forma. A gente não controla tanto assim a nossa própria vida. Eu, pelo menos, não.
Também carrego comigo, quase sempre, uma sensação de incompletude, de falta, nos meus trabalhos como escritor. Desde trabalhos que estão pelo meio do caminho e eu acho que já devia ter terminado até um livro meu já publicado que eu releio e descubro que ficou faltando (ou sobrando) alguma coisa. Às vezes uma crítica sobre um livro aponta uma falha e eu concordo com quem escreveu, “essa pessoa tem razão, eu errei aqui, sim”. Mas esses são os bons problemas, que podem fazer a gente crescer. O pior é não conseguir editor pro seu livro, ou ele ter uma péssima distribuição e ninguém conseguir encontrá-lo em lugar nenhum.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Muita coisa me motiva a escrever. Sempre fui ligado à palavra. Quando era criança, viajava de ônibus com os meus pais e eles perguntavam se eu estava gostando da viagem, da estrada, das paisagens. O que eu gostava de olhar pela janela eram os nomes das empresas de ônibus: a Cometa e seus ônibus que se chamavam Flecha Dourada ou coisas assim, a Pássaro Marrom, a Fácil e a Útil, que iam pra Petrópolis. E o anúncio na rodoviária que me fez descobrir a poesia: Para tal lugar? Vá e venha pela Penha. A rima e a sonoridade dessa frase: vá e venha pela Penha… Desde pequeno, tinha um avô que me contava histórias e uma estante cheia de livros em casa. E ali eu descobria mundos. Quando cheguei aos 16 anos, quis começar a criar meus próprios mundos. E assim fui me tornando escritor.
Semana passada, uma amiga da época da faculdade me lembrou que certa vez nós conversávamos sobre nosso futuro profissional. A grande maioria dos alunos e alunas de Letras vai ser professor. Mas eu disse para ela: não quero ser professor, quero viver de escrever. Que bom que consegui o que queria. Escrevo para ter o prazer da invenção, para dizer o que penso do mundo, para me divertir e para ganhar a vida, financeira e emocionalmente. E também escrevo para vencer a morte, ou melhor: ter a ilusão de vencer a morte e continuar mais um pouco por aqui quando eu já não estiver aqui.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Acho que desenvolver um estilo é uma tarefa eterna do escritor, não termina nunca. Muita coisa que li me influenciou. Li todo o Lobato na infância. Depois novas leituras me marcaram: na poesia, comecei com Drummond e Bandeira. Li os contistas mineiros, principalmente Sergio Sant’Anna e Luis Vilela, li Cortázar e Borges, Kafka, Rubens Fonseca e Dalton Trevisan. O Pasquim teve uma influência grande, ali conheci humoristas como Ivan Lessa e Millôr Fernandes, de quem li absolutamente tudo. A revolução que o Pasquim fez na escrita jornalística também foi importante na minha formação como escritor. A música de Adoniran Barbosa e o grande samba, de Noel e cia, me influenciaram. Também me formaram ouvir Caetano e Chico, ver Zé Celso, as peças do Brecht, ver de Caravaggio a Cildo Meirelles, de Van Gogh a Iberê Camargo… E ainda poderia citar muitos outros nomes que me formaram e me formam. E, hoje, quero descobrir quem está vindo aí, que artistas e que linguagens. Ainda mais nesse novo mundo tecnológico e digital. E aprender, aprender, aprender.
Hoje identifico traços comuns em minha escrita, como a presença de um humor, que vai do mais leve até o sarcasmo. E também um certo lirismo. Além de uma tentativa de fugir dos clichês e de uma linguagem empolada, que vejo muito em certa poesia. No mais, Millôr é quem tinha razão, quando, em sua coluna, assinava logo abaixo de seu nome: “enfim um escritor sem estilo”.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Três é muito pouco, vou recomendar mais do que isso. Recomendo Macunaíma, de Mário de Andrade, por ser um livro que reinventa o Brasil e a linguagem; Histórias de Cronópios e de Famas, do Cortázar, pelo seu humor fantástico; Dicionário dos Seres Imaginários, do Borges, por ser um dicionário e ao mesmo tempo a paródia de um dicionário; O Homem que Amava os Cachorros, de Leonardo Padura, por ser um grande retrato do século XX e por contar tão bem uma história; a Coleção Postal, de poetas brasileiros contemporâneos, lançada pela Azougue Editorial e pela Editora Cozinha Experimental e que é um mapa da melhor poesia brasileira dos últimos 30 anos. E também recomendo qualquer livro de Ítalo Calvino, do Machado, é claro, do Campos de Carvalho… Ah! E recomendo a leitura dos livros da historiadora Mary del Priore e do jornalista Laurentino Gomes, como uma forma de abrir portas para o conhecimento de nossa história, o que, pelo menos no meu caso, é muito importante para embasar a literatura.
E agora vou recomendar também livros meus. Se bem que isso não é uma recomendação e sim uma publicidade descarada. Tenho dois livros de contos publicados pela Editora Oito e Meio. As Primeiras Pessoas reúne contos todos escritos na primeira pessoa. Dele, Ronaldo Correia de Brito disse: “em todos os contos Cesar Cardoso imprime sua marca de narrador experiente, seguro do que é escrever bem”. Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos é uma reunião de contos curtos e com humor que, entre outras coisas, repensam o ato de escrever e conversam com muitas outras obras e personagens da literatura. Já coisa diacho tralha, publicado pela Editora Texto Território, é poesia. Nele há o mundo, o estar no mundo e o mal-estar no mundo. Há o amor, que ama e desama e há o humor, que arma e desarma. Na literatura infanto-juvenil tenho muitos livros publicados. Destaco dois, publicados pela Editora Biruta: O Que É Que Não É?, comilustrações de Cris Alhadeff, e que foi selecionado para o PNBE – 2012 – Programa Nacional Biblioteca da Escola, para o SME –SP 2012 da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e para o Programa PNAIC 2013 – Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa, do Ministério da Educação; e O Gigante do Maracanã, com ilustrações de Larissa Ribeiro, selecionado para o Acervo Básico da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e, também pela FNLIJ, para fazer parte do Catálogo do Brasil para a Feira Literária de Bolonha, na Itália.