Cesar Augusto de Carvalho é escritor e poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa no final da manhã, começo da tarde. Acordo, tomo vários cafés e fumo vários cigarros enquanto leio as notícias diárias via jornais e redes sociais. Estas últimas podem se tornar um problema se a gente se deixa envolver. Após as obrigações domésticas como arrumar a cama e cuidar do lixo, faço minha aula de inglês pela internet e passo o resto da tarde resolvendo coisas corriqueiras. Após banho tomado e jantalmoçado, assisto a algum noticiário na TV ou a algum filme. Onze, meia noite começo a fazer o que realmente gosto, escrever. Aí vou até cinco, seis horas da manhã nesta rotina próxima da vida vampiresca.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Madrugada. Hora da cidade quieta. Poucos pneus, patas e pés circulando. Hora que você consegue ver a lua e ouvir o coração de pássaros solitários piando para a amada. É nessas horas que o espírito se sente pronto para trabalhar as palavras que melhor hospedam o mundo que vivenciamos, um mundo nem sempre são, nem sempre insano, mas real.
A preparação para a escrita se dá no momento em que a ideia geradora foi aceita e assimilada. Aí a mente não para. Nesse processo, volta e meia registro em papéis uma ou outra ideia, uma ou outra palavra e rabisco coisas. Depois que a ideia geradora se transformou em estrutura narrativa é que faço o projeto de redação no computador e começo a escrever. Poesia já funciona um pouco diferente. Até hoje não entendo como elas brotam em mim. Melhor nem comentar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nem sempre escrevo todos os dias, mas todos os dias trabalho o processo da escrita.
Quanto a estabelecer-se meta diária de escrita, nada tenho contra. Mas não gosto. Me dá a sensação de estar num processo de produção impessoal, numa linha de montagem. Prefiro o jeito artesão. Estabelecer apenas que o produto tem que estar bem feito, independente do prazo que se tenha para fazê-lo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando surge a ideia, pode ser também uma solicitação externa, para se desenvolver algum produto literário, meu primeiro passo é procurar definir qual a melhor forma narrativa. A proposta gerará um conto, uma poesia, novela ou romance? Enquanto penso nessas questões, começo a pesquisar. A rascunhar papéis com palavras, ideias, o que vier.
Na etapa inicial, de gestação, não escrevo nada, exceto essas notinhas, uma ou outra palavra. Mas leio tudo que tenho em casa sobre o assunto, desde livros clássicos a livros nem tanto, gibis, filmes. Pesquiso várias fontes e converso o máximo possível a respeito do tema com minha mulher e pessoas próximas. Quando a linha da história está pronta em minha cabeça, sento no computador e começo a escrever. Primeiro a linha da história, uma sinopse do que será escrito com apontamentos de tudo que será necessário para desenvolver a narrativa. Aí, bye bye leitura, bye bye pesquisa. Se antes desaparecia no meio de livros, filmes, jornais e revistas, agora estou imerso na escrita e nela, obsessivo, só sossego na última revisão, quando mando para o editor.
Você me pergunta se é difícil começar. Respondo que depende da situação. No meu caso, quando comecei a escrever, o fazia anarquicamente e o resultado era catastrófico. Muitas vezes nem resultado tinha. Chegava no meio da história e empacava. Mais do que burro velho. Depois, com leituras, práticas e cursos, fui aprendendo a planejar e aí escrever passou a ser menos dolorido. Às vezes nem dói.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
No meu caso, procrastinação tem mais a ver com minha vida íntima, pessoal mesmo, e menos com a escrita. Quando procrastino é porque aconteceu-me algo que me chateou e costumo relaxar com as coisas. Tendo a largar tudo e ficar horas vendo o nada na TV. Passada a crise, retomo a escrita como se nada houvera. Evidente que este tipo de procrastinação não chega a comprometer meus compromissos com terceiros. Afinal, os outros não tem nada a ver com meus problemas pessoais, né não?! Então, se prometeu, cumpra!
Já os projetos longos são compromissos sérios e precisam ser muito bem pensados antes de iniciá-los. Se para escrever um conto gasto normalmente de três a quatro semanas, um projeto mais longo, um romance exigiria muitas vezes esse tempo. Para mim, isso é um problema sério porque, quando envolvido nestes processos malucos de escrita, eu desapareço. Até minha mulher, que mora comigo num apartamento pequeno, reclama de minha ausência. Meu bolso também reclama das multas que tenho que pagar por esquecer de pagar as contas. Não à toa, volta e meia ameaço minha mulher: vou morar num sítio pra poder escrever em paz. Ela, urbanóide, tem horror à ideia de morar em sítio e eu a ilusão de que morando num lugar afastado poderia ficar só escrevendo. Então, para que eu assuma compromissos desse tipo, escrever projetos longos, é melhor ter cautela. O pior é que tenho dois na gaveta!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depois de pronto, antes de passá-lo à minha mulher, que faz uma leitura meticulosa, leio-o em voz alta muitas vezes. Excluo palavras, acrescento detalhes, parágrafos, etc. Passo para minha mulher que o devolve com as sugestões e correções. Corrijo e altero o texto, se necessário, e passo para o crivo de meu assessor editorial que o revisa, sugere alterações que normalmente melhoram, e muito, o texto. Reescrito, mando para a última revisão, a gramatical. Claro, antes de mandar para publicação, faço nova leitura em voz alta e, eventualmente, algumas mudanças.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia não me produz nenhum estranhamento. Pelo contrário. Até achei, quando comprei o meu primeiro computador, um jurássico modelo XP, que poderia aprender a montar sistemas digitais mas desisti na primeira tentativa. Conformei-me à ideia de que seria um simples e limitado usuário da máquina. E ela ajudou muito. Especialmente no tempo que se gasta escrevendo. Na máquina de escrever, quando você errava, tinha a alternativa do corretor, que só funcionava quando eram poucas as letras a serem corrigidas. Quando muitas, a saída era datilografar a página novamente. A raiva era maior quando se errava na última linha. Aí era palavrão para todo o lado. Para escrever uma novela com cerca de cem páginas na máquina de escrever, levei seis meses. Com o computador, trabalhos semelhantes ficam prontos em dois meses! Então, só posso agradecer a esta máquina maravilhosa que veio facilitar nossas vidas e, para o bem ou para o mal, redefinir nossas relações.
Como dizia McLuhan, o meio é a mensagem. Até acostumar-me com minha máquina de escrever eletrônica – apesar de todos seus recursos, eu a uso mesmo como máquina de escrever – eu escrevia os primeiros esboços do projeto à mão. Depois, passei a transcrevê-los para os arquivos digitais. Até hoje, todavia, todos os meus projetos nascem da relação entre minha cabeça e minha caneta. No papel, esboço palavras, indicações, flechinhas indicando a relação entre um personagem e outro, entre uma ação e outra, que no computador não consigo. Depois, quando a ideia está amadurecida e o projeto pronto, digito a primeira versão da linha da história para dar prosseguimento com a construção da narrativa. Como sei se o projeto está pronto para ser redigido? Quando todos os papéis e seus pedacinhos anotados foram para o lixo durante a redação da sinopse, no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias podem vir de muitos lugares. Desde a observação da folha caindo da árvore, do jeito da mãe tratar o filho ou de uma conversa com alguém. Vem dos livros que li. E vem muito também do cinema. Especialmente dos filmes B e os de fantasia e ficção científica. Uma coisa eu observo: nunca nenhuma história ficcional minha nasceu de uma observação direta da natureza, orgânica ou animal, como nascem os poemas. Às vezes, de um galho balançando ao sabor do vento, nasce um poema, um haicai. Nasce, normalmente, de um único insight. A prosa ficcional não. Invariavelmente, ela nasce dos cruzamentos de conversas, experiências de vida, leituras de livros e filmes vistos. A prosa ficcional exige muitos insights, muitas relações, redes intertextuais. Apesar disso, acho mais fácil escrever prosa ficcional do que poemas.
Mas, seja poema ou ficção, a escrita exige hábitos diversificados. Exige leituras dos mais variados tipos, desde caixa de sapato, bula de remédio, passando por jornais, revistas e, claro, a literatura do mais alto nível. Conhecer os autores clássicos, os contemporâneos, os que são bons, mas desconhecidos. As pequenas editoras publicam muitos destes desconhecidos, verdadeiros criadores de pérolas literárias.
Outro hábito fundamental é aguçar a observação. Sobre as pessoas, sobre as coisas. Principalmente sobre as coisas que consideramos desimportantes, que não valem nada. Elas são grande fonte de sabedoria e excelente alavancadoras da criatividade.
E, hábito mais importante que todos, é a auto-observação. Olhar a si mesmo. Perceber-se na relação com o outro, com o mundo exterior. Quais são suas raivas, seus ódios, seus sentimentos negativos e seus amores e paixões, caráter e personalidades. Sem este mergulhar interior, receio que se fique à margem da vida que flui. Temos que dar o salto.
hora de ir
saltar no infinito
grande vazio
(Proesia, 2013)
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrever é um processo sem fim e nunca se está satisfeito com o resultado. Há sempre algo a ser melhorado. Inicialmente, jovem ainda, pouco mais de vinte anos, escrevia feito filósofo alemão, criticava-me um amigo, porque meus parágrafos ocupavam normalmente uma página, longos e pouco objetivos. Comecei a perder o amor por elas e a usar mais a tesoura. Com a experiência numa agência de notícias, traduzindo o noticiário internacional do inglês e do espanhol, a tesoura ficou mais afiada e meu texto ganhou outra dimensão. Pelo menos não era mais confuso. Depois, comecei a dedicar-me ao estudo das técnicas narrativas e das ferramentas literárias em geral. Tornei-me mais crítico ainda e mudei radicalmente minha forma de escrever.
Lembrando hoje dos primeiros textos, não sinto vergonha, nem me sinto mal por tê-los escrito. Para mim foram etapas necessárias no meu processo de formação como escritor e poeta.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos engatilhados. Todavia, desde o ano passado, decidi dar à luz a contos e novelas escritos há tempos e carentes de publicação. De modo que, neste ano quarentenário de 2020, lançarei Histórias de Quem, pela Desconcertos Editora, do Claudinei Vieira e, no segundo semestre, Raul e Eu, pela Algaroba, do Daniel Perroni Ratto.
Histórias de Quem são contos cujos eixos temáticos, duplicidade e plágio, interligam as várias histórias. Raul e Eu é uma novela vivida pelo personagem que se acredita Raul Seixas e seu processo de enlouquecimento ao tentar descobrir se matara a amante apenas no sonho ou se o crime aconteceu mesmo na vida real.
São tantos os livros a serem lidos que, confesso, o único livro que gostaria de ler, e ainda não foi escrito, é o próximo que escreverei (rs).