Cecília Floresta é escritora afrodescendente, candomblezeira e sapatão, autora de poemas crus (Patuá, 2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Divido casa com dois bichanos, a Tereza Batista Cansada de Guerra e o Macunaíma, e como é comum acontecer com pessoas que dividem casa com gatos, temos lá uma rotina matinal em que um deles me acorda pedindo comida, então a rotina começa por aí. Então vou passando um café, que tomo puro sem açúcar, e geralmente como ovos mexidos de manhã porque acordo morrendo de fome, sempre fui alimentada assim, com um café da manhã meio almoço, pois que as mulheres que me criaram também foram criadas desse jeito. Viemos lá de Alagoas, embora eu tenha nascido em São Paulo, capital. E por esses dias e meses tenho vivido as manhãs escrevendo mesmo ou editando textos ou lendo alguma coisa que inspire novos conjuntos de palavras. A depender da demanda, também começo o dia com algum livro que esteja editando, preparando, revisando ou eventualmente traduzindo, que é como pago as contas e compro a comida dos gatos, que foi por onde começamos aqui.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como disse, tenho trabalhado melhor pelas manhãs ultimamente, embora as noites beirando o silêncio da madrugada sejam momentos sempre muito produtivos. Pensando agora, dei conta que a bebida rege o momento do dia: se de manhã é café, à noite geralmente me acompanham umas latinhas de cerveja, que é pra tentar desligar as ideais das ordens mais burocráticas do dia. Mas esses períodos vão depender do estado da minha cabeça e também da quantidade & prazo de outros trampos além da escrita, então é meio questão de encaixe. Os rituais também variam, às vezes coloco alguma música, às vezes leio contos, poemas ou trechos aleatórios de algum livro que esteja ao alcance por aqui.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Isso depende se tenho um projeto em andamento ou se estou apenas naqueles momentos pré-escrita, que costumam ser longos às vezes. Mas geralmente tenho momentos concentrados, em que sento mesmo pra escrever e editar os textos. Importante dizer, no entanto, que mesmo esses momentos pré-escrita são caros pra mim, dá pra sentir que ando escrevendo mesmo sem escrever, e isso é muito importante, porque nem sempre a gente está disposta ou com tempo de parar diariamente pra se concentrar na ação mesma. Pensar assim não dá muito espaço pra frustração. Acho que vivemos num tempo capital muito acentuado, em que a cobrança de uma produção sistemática mais atrapalha o processo criativo que o contrário. Escrever também é vivenciar, estudar, contemplar. Tudo faz parte do processo, ainda que não estejamos munidos de caneta e papel ou diante de um computador escrevendo ou tentando desenvolver algo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho um livro publicado (poemas crus, pela editora Patuá), dois projetos finalizados e um em andamento, então vou falar a partir da experiência que tive com eles. Bem, tudo começa com um interesse muito grande, quase obsessivo mesmo, por algum tema que se desdobra naturalmente em outros, daí vou atrás de tudo quanto é referência a respeito, livros, filmes, artigos acadêmicos, notícias de jornal, documentários, o que for. Passo algum tempo (às vezes muito tempo) em contato com essa coleta de materiais e daí vou formando um quadro meio orgânico na minha cabeça, digo, não necessariamente esse processo de pesquisa é algo organizado, sistemático. Então, alimentada por essas referências, as histórias ou os versos e suas temáticas vão surgindo, sobretudo na espontaneidade, mas também quando me dedico à edição de textos anteriores, que vão servindo como deixas pros novos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Creio que a procrastinação, o medo e a ansiedade são três entidades que assombram a cabeça de muita gente que trabalha com criação. E eu não escapo às estatísticas, claro. A escrita, pra mim, demanda calma, energia e tempo, como qualquer outro trabalho intelectual. Mas, pra viver neste sistema que vivemos, grande parte dessas ferramentas precisam ser escoadas pra trabalhos que, embora intelectuais, deem algum retorno financeiro mais imediato, algo que, no meu caso, não acontece com a escrita em si, embora os projetos nos quais venho trabalhando só tenham sido possíveis em virtude da escrita, seguem orbitando ao redor dela. Agora, sobre o processo de criação em si, procuro sempre ter em mente a questão que já levantei a respeito de negar, em minha escrita, essa noção capitalística de produção em série, ainda que esse processo envolva prazos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Geralmente, depois de escritos, faço uma leitura silenciosa dos textos e, se sinto que algo não está encaixando, leio em voz alta ou gravo essas leituras pra ouvir depois. Daí deixo o texto dormindo uns dias e volto pra uma revisão final (que nem sempre é final, tem vezes que um texto ressurge na minha cabeça e não tenho escolha a não ser voltar nele). De qualquer modo, em algum momento a gente sente que tem que parar de mexer naquele texto e esse é um limite muito tênue e íntimo de cada escritor, precisamos conhecê-lo muito bem. E não tenho um processo de compartilhamento estabelecido, mas aposto muito nesse dividir com o outro. As oficinas de escrita, por exemplo, têm sua grande importância por isso mesmo, são espaços onde podemos compartilhar nossas produções com outras pessoas, algo que move e traz muita inspiração pra gente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço bastante uso da internet pras pesquisas pré-escrita e costumo editar e finalizar os textos no Word, mas não abro mão de um caderninho que sempre carrego comigo pras anotações de última hora.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Aqui voltamos praquela espécie de obsessão sobre a qual já falei. E é engraçado eu chamar de obsessão porque, desde que comecei a escrever, as temáticas que persigo são todas relacionadas às minhas vivências como mulher, sapatão, preta, macumbeira, nordestina, criada na periferia da Zona Oeste de São Paulo. Bem, daí já temos bastante material pra luta e escrita, que, no meu ver, caminham juntas. Pra mim, a escrita é militância também. Então, pra me manter criativa, eu diria que é essencial me manter alimentada em relação às identidades que me atravessam, e todas elas juntas, não em separado. E daí a escrita já entra, inclusive, como uma tecnologia ancestral de cura, entendimento, reencontro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Pelo que me lembre, escrevo desde uns treze ou catorze anos de idade, mas só aos quinze é que comecei a compilar os escritos num blog que tenho até hoje, minha gaveta aberta, o desconversas afins. Mas, claro, a princípio era algo totalmente despretensioso, eu nunca pensei em publicar nada por alguma editora porque ali, de onde eu vim, a gente não tinha direito a esse tipo de coisa, o sonho, objetivo, ou seja lá como encaramos o ser escritora. Porque faz pouco tempo que comecei a me apresentar pros outros – e me assumir pra mim mesma – como escritora, não foi um processo fácil. Daí uma amiga ajudou a me convencer que eu devia mandar o poemas crus pras editoras, mostrar o livro pras pessoas. Foi o que eu fiz e foi algo que me abriu uma infinidade de portas, as quais eu nem sequer entrevia lá atrás, no Rio Pequeno, quando criei o desconversas. Então eu diria pra mim mesma pra lutar contra o não pertencimento, um lance que sempre me rodeou. E isso é algo que eu ainda tenho que reafirmar todos os dias porque nós, mulheres, sapatões, pretas, macumbeiras, periféricas, feiticeiras, escritoras, precisamos estar sempre nessa luta pela existência, pertencimento e negação do silêncio que nos impõem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um dos projetos que eu gostaria de fazer e que acabei de começar, em parceria com a escritora Cristina Judar, chama-se Um quarto todo nosso, cujo objetivo principal é promover, criar espaços de troca e visibilizar as vozes de escritoras sapatões, sapatrans e bissexuais. Há outros também, ainda tomando forma na minha cabeça. Quanto ao livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, talvez ele exista e eu ainda não tenha lido, quem sabe?, mas tenho certeza de que ele foi ou será escrito por uma de nós.