Catarina Cunha é contista, cronista e poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias de alma ensolarada acordo no horário da maioria dos trabalhadores mortais: às seis da manhã. Beijo o marido, afago os gatos, dou bom dia para a vida, as plantas, o céu. Sinto-me fofa. Faço minhas abluções humanas, leio o meu horóscopo e, como uma boa geminiana, esqueço imediatamente. Depois leio o jornal, reclamo das merdas que acontecem no país, rosno da boçalidade reinante, me pergunto o que posso fazer para voltarmos ao século XXI e por que ainda leio jornal. Vou para natação onde analiso meus personagens entre uma braçada e outra.
Nos dias de fúria é mais simples: não acordo, levanto de madrugada, tomo um café sem açúcar e martelo o teclado até o “word” me convencer de que estou lúcida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende da etapa da criação. A madrugada é a hora da louca, perfeita para desenvolver conteúdo, dar músculo ao texto, vomitar catarses, dilemas filosóficos e autoflagelo; é quando escrevo mais besteira. A tarde é a menina bem comportada, pois possibilita dar corpo às ideias, digitar os rascunhos, organizar e tirar a gordura, trabalhar o título, revisar, mastigar, cuspir, lamber e trocar a fralda do texto até que ele fique sequinho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todos os dias. Minha meta é me convencer diariamente de que sou uma escritora e escritores escrevem. Vale aqui comentar que fazer castelo de areia na praia, pensando em uma história, é escrever também. Não tenho períodos concentrados, sou fluida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Todos os meus contos nascem na rua. Passo mais tempo criando a história na cabeça do que digitando. Frequento praças, praias, bares; pesco conversas nas feiras e filas de mercados. Moro no Rio de Janeiro, o que facilita bastante. O carioca, se você der bom dia ele te conta a vida toda, quer saber da sua e ainda dá opinião. São “entrões” e apaixonantes. Sou alagoana, um povo corajoso, sem mais ou menos, ou é ou não é, direto e com pouco jogo de cintura; então ainda me admiro com a facilidade com que o carioca escorrega na vida.
O importante é determinar quando começa o começo para você definir se é difícil ou não. Criar é fácil, difícil é a primeira frase. A pesquisa é na internet ou ao vivo. Quer escrever sobre um mapa do tesouro? Vá à pinacoteca. Quer escrever sobre o medo? Vá a uma comunidade dominada pelo tráfico ou pela milícia, tanto faz.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não gosto da palavra “procrastinação”, prefiro a expressão “ócio criativo”, muito mais sensual. A procrastinação não atrapalha, o que arrebenta quem cria é criar juízo de valores sobre o que é certo e errado, tentar seguir fórmulas mágicas de estilo. Acreditar que se uma escritora escreve dez horas por dia e ficou milionária, o melhor é fazer um cursinho carcará oferecendo a fórmula do sucesso e você, e que se não seguir a onda morre afogado. Tentar encontrar o outro no espelho só pode dar em merda e bloqueio criativo. Fujo de coisas que me bloqueiam, como cursinhos milagrosos, lugares fechados, barulhentos e com muita gente. Não consigo me concentrar e nem ouvir nada direito, fico de mau humor e, antes que eu comece a dar defeito e desfaça preciosas amizades, saio correndo do lugar.
Ansiedade em projetos longos? Sou ansiosa para trabalhar em microcontos, quiçá romances. Tenho dois iniciados esperando meu humor estabilizar. Talvez nunca; o que não me preocupa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes, mas quando sinto que estão prontos e publico, descubro que não estavam prontos. No começo eu ficava com vergonha, mas agora, quando só percebo um erro depois de publicado, nem corto mais os pulsos, perdi a vergonha na cara. Se foi um leitor que percebeu, agradeço, conserto ou mantenho por achar mais interessante errado mesmo.
Eu jogo os meus contos, crônicas e poemas na rede, sem nenhuma leitura alheia prévia; poupo meus amigos. Não tenho vocação para ser leitora alfa, beta ou gama, logo não cobro de ninguém essa postura. Mas depois de publicado valorizo enormemente os comentários dos leitores. Aprendo com eles muito sobre mim e meu trabalho. Por esse motivo participo de projetos literários onde os leitores são comentaristas ativos, como Entre Contos, As Contistas e Janela de Poesia.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Começo com o pré-histórico: anotações mentais e mnemônicas, depois parto para a era medieval: rascunho no caderno com caneta. Quero crer que, quem me vê escrevendo em um caderno desbeiçado na rua, imagine que sou uma escritora sensível e intelectualizada e não uma desocupada maluca. Na falta de caderno e caneta, está valendo guardanapo, papel de cigarro, braço, perna, roupa, lápis, carvão, molho ou o que encontrar. Guerra é guerra.
Só na fúria crio direto no computador. Depois brigo com o “word” para arrumar as configurações. Nunca escrevo e nem leio textos grandes no celular. Quando vejo alguém digitando nesses pequenos mundos, com os dois polegares e o pescoço dobrado, desconfio porque os dinossauros foram extintos. Sempre desconfiei daqueles bracinhos curtos com dedões e pescoços duros.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu crio de fora para dentro. Preciso bater papo com pessoas interessantes (desinteressantes também ) e observar a cidade em movimento para gerar força criativa. Sou uma devoradora do meu entorno. Exemplos: Um comentário ouvido na fila do mercado: “Eu venderia minha alma pro Capeta por uma TV nova” deu origem ao conto “Cida e a televisão”, finalista do Concurso “Contos do Rio” do Jornal O Globo; Ou a declaração de uma apontadora do jogo do bicho no boteco: “De homem no mundo só presta o meu filho, aquele sim é macho, o resto é tudo bundão”, deu origem ao conto “Bichoman”, campeão do desafio “superpoderes” do site Entre Contos.
É importante frisar que o contexto em que as frases foram ditas não tem a menor relevância. E, na maioria das vezes, eu nem fico sabendo.
Também cultivo o hábito de caminhar sem rumo pela cidade, quando exercito a produção “de fora para dentro”. Mas é na natação que exercito de “dentro para fora”; como meditar em movimento.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Fui uma péssima estudante, vivia no “mundo da lua”, logo nunca entendi as regras gramaticais e muito menos as análises morfológicas e sintáticas. A gramática era para mim um enigma a me devorar constantemente, hoje ela não me assusta mais, convivemos pacificamente com nossas diferenças.
O autoconhecimento foi fundamental para desenvolver estilo próprio e técnica.
Se eu pudesse voltaria no tempo e falaria para aquela adolescente hiperativa: “leia mais, escreva mais e organize essa bagunça que são os seus escritos”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou?
Penso em criar um jornal virtual da resistência, sem censura, escrachado, sem Jesus na Goiabeira e cheio de liquidificadores assassinos. Um Pasquim pós-caos e antes do Dilúvio. Em estudo.
Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não existe nenhum livro que gostaria de ler e que ainda não existe. O que existe é a pretensão de escrever um livro com ideias inéditas. Quase uma aberração ufanista.