Cássio Pantaleoni é escritor, bacharel e mestre em Filosofia, finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Deixo sempre à cabeceira uns pensamentos amarrotados que desprezei na noite anterior. Amanhecido, recolho alguns por pretensão de crer que talvez tenha deixado ali algum rudimento de ideia fértil. Não me ocupo mais do que me ocuparia com os sonhos, fossem vivos estariam gemendo de dor por estarem assim apertados entre tantas coisas com as quais preciso me ocupar. Dentre as inúmeras ocupações profissionais, a escrita é sempre algo avulso e, sendo avulsa, ajunta-se a mim pelas bordas do meu tempo. Pois que me disponho a correr nos parques antes de atirar-me às aguas do chuveiro, fazer o necessário asseio e escolher as cores adequadas para vestir. Depois, dou um beijo na testa daquele escritor que se demora na cama e que é meu alter ego resignado, imagem virtual que me acompanha à espreita de qualquer tempo concedido como pausa justa para reescrever aquilo que pretendo como projeto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente, escrevo melhor nas horas em que faço demorar em mim o escritor que me habita. Nos fins de semana ele acorda comigo e às manhãs todo o frescor das ideias revigora os meus textos. Durante a semana ele me visita quando pode e quando posso, e quando chegamos juntos, em tais dias, é sempre tarde, é sempre noite. Nessas horas, embora as ideias não sejam assim tão frescas, ocorre-nos revisitar os textos, fosse possível polir as palavras ainda cobertas de terra.
Para escrever, meu ritual é sempre uma demora sobre uma ideia, uma frase ou uma palavra. Abro o computador sem pretensão, recomponho-me diante do texto até então produzido e imito o leitor crítico, acompanho o ritmo e o som das palavras, repenso o sentido, sinto o repensado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não posso me impor uma disciplina para escrever como se fosse obrigação, nem posso crer que escreveria como se fosse máquina de produção em chão de fábrica sujo e manuseado por automatismo febril. Escrevo quando me ocorre a vontade ou quando se dá o tempo para a escrita. Assim, não me rendo à meta de escrita diária. Minhas metas são qualitativas. Tenho uma meta de forma e conteúdo. Escrevo resistindo ao fim da escrita, ao fim do texto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sempre começo um texto como se preparasse um canteiro. Jogo ali algumas sementes e as rego diariamente para ver se germinam. Às vezes a terra não é boa e tudo fica revirado e sem brotos. Se alguma semente germina eu cuido dela diligentemente. Ou seja, ao redor dela vou depositando notas e variações do mesmo tema, modos de representação ou de apresentação. Com o passar do tempo, todo esse adubo engrossa os caules, faz esverdear as folhas e fortalece as raízes. Essas agregações sempre encontram na pesquisa o ingrediente mais caro. Em geral me demoro nas pesquisas porque sempre tento representar, mesmo que fantasiosamente, a possibilidade da verosimilhança. É um trabalho árduo de dedicação, que exige a poda que se ajusta a um bonsai. Jamais pesquiso pensando em árvores frondosas, em geral, me interesso pelas plantas rasteiras, pelas flores vívidas, pelos musgos das pedras, pelos bulbos e tubérculos escondidos. Deixo os matos de lado, retiro as daninhas. Tal pesquisa exige ocupar o tempo com coisas pequenas que vão dar ao canteiro o aspecto de um jardim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu lido o tempo todo com a trava na escrita como se fosse a trava de uma porta que esconde algo que eu não quero ver: a minha irrelevância como escritor. A trava é gigante e fecha uma porta roída de cupins, com frestas irregulares e de cor desbotada. Receio abrir essa porta sem estar pronto para dizer as coisas ao modo de quem quer dizer algo que seja sutil e original. Como sei que as histórias são recontos de muito do que já foi escrito, duelo com a ansiedade de querer encontrar algo novo, de querer alguma originalidade de trama. Por outro lado, como sempre acho que toda a trama é apenas uma recomposição de tramas já escritas, dedico-me a encontrar um estilo narrativo que me fortaleça caso eu decida abrir a porta. Contudo, isso nunca parece ser o suficiente quando estou diante de projetos longos. Projetos longos pressupõem enchimentos necessários e suficientes, algo tão difícil para a grande maioria dos escritores, inclusive os grandes escritores. Se paro diante da porta tendo debaixo do braço apenas passagens que nem são assim tão necessárias para um texto longo, a trava engripa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso os meus textos como quem revisa o fim de uma cirurgia. Não posso esquecer nenhum instrumento dentro do corpo e preciso estancar qualquer sangramento de maneira a não causar gangrena. Reviso até me convencer de que o paciente vai se levantar no outro dia e caminhar normalmente, curado e saudável. Mas raramente faço isso com perfeição. Talvez pela pressão do tempo, sempre dou alta ao paciente muito cedo. Na verdade, nenhum texto meu fica definitivamente pronto. Toda a vez que o releio encontro a necessidade de reescreve-lo. Talvez por isso é que não mostre o meu texto para muitas pessoa antes de publica-lo. Sei que sempre haverá alguém que fará uma sugestão ou um comentário que me fará repensar todo o texto e assim retirar dele o sentimento legítimo que me ocupava no momento em que o escrevi. Os sentimentos são como rios, você nunca entra no mesmo rio e você nunca é o mesmo que entrou antes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre no computador, porque é mais fácil reescrever assim. Meu processo de escrita é sempre uma reescrita. Meu texto é sempre um rascunho. Ele nunca está acabado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vem das minhas raízes em sua grande maioria, histórias contadas pelos meus pais, avós ou tios que são transformadas em ficção de maneira que me agrade. Ocasionalmente sirvo-me de histórias ou causos que escuto de terceiros. Tudo o que merece alguma reflexão acerca da fragilidade da condição humana me cativa. Gosto muito de estar entre as crianças e escutar as narrações delas, a maneira como contam suas histórias. Isso atiça a minha criatividade. Aproveitar o tempo perto da infância é o que me faz criar e recriar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comecei a escrever eu era muito protocolar, usava estruturas seguras, formatos narrativos lineares, porque exigia menos e eu produzia mais rapidamente. Com o tempo descobri que protocolos, estruturas tradicionais e narrativas lineares é o lugar comum dos escritores. É seguro mas repetitivo. Então me recusei. Rebelei-me contra mim. Passei a exigir a reinvenção do jeito de dizer as coisas, porém, para dar algum calço ao leitor, incorporei algumas técnicas no texto que pudesse servir de bengala àquele que me lê pela primeira vez. Se eu pudesse encontrar o eu que me habitava há 20 anos atrás eu diria: “Ei! Aquela frase ali está com formigas! Não vê? E não tem nenhum tamanduá por perto? Vai procurar!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto infanto-juvenil que há muito está empoeirado. Trata-se de uma história sobre o sombreamento, porém sempre hesito em razão de não encontrar a voz da personagem. Ainda o escreverei se assim se der a vontade. Outro projeto, este para o público em geral, é um romance com o qual me ocupo há alguns anos e que já teve a sua introdução reescrita umas cinco dezenas de vezes. Guardo todas as versões no computador e ainda não me convenci se alguma delas é a ideal ou se preciso escrever outra. Sobre um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe? Bem, eu gostaria de ler algum texto inédito do Guimarães Rosa. Qualquer história curta dele.