Cássia Janeiro é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nada matinal! Sou definitivamente uma pessoa notívaga. Como tenho um problema de saúde raro, não tenho exatamente uma rotina, porque nunca sei como vou acordar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite e de madrugada. Durante o dia costumo reunir pensamentos e palavras em cadernos, blocos e pastas e, à noite, vou organizando as ideias no computador.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho uma intenção diária, que nem sempre é possível cumprir. Porém, escrevo todos os dias, seja pequenos textos, um poema, uma crônica ou apenas organizo as ideias sobre as quais falei na pergunta anterior.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Isso depende do texto que escrevo. Sou uma colecionadora de palavras e elas vão se ajustando, entrando num texto de acordo com o que escrevo. Pesquiso bastante quando estou escrevendo contos ou romance, mas primeiro deixo fluir para depois procurar o que é necessário para agregar elementos à história e/ou aos personagens (ambientes, características, contexto histórico etc.).
Como poeta, me preocupo com a melodia do texto, seja em prosa ou poesia. Então, depois que o material é concluído em seu primeiro formato, é hora de ler em voz alta e buscar a melodia do texto, de maneira que ela esteja em consonância com o conteúdo. Assim, por exemplo, uma situação mais tensa exige frases mais curtas; quando estou abordando uma situação mais travada, uso mais palavras com letras p, q, t, e assim por diante. Minha preocupação é sempre trabalhar o texto o máximo possível, para que forma e conteúdo caminhem juntos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é, de fato, um problema para mim. Procuro superá-lo escrevendo todos os dias, mas trabalhar num livro mais longo exige disciplina. Tenho procurado me afastar um pouco das redes sociais, que roubam um tempo grande sem que a gente perceba, e me impor prazos para concluir os livros. Nem sempre dá certo. Um exemplo: estou escrevendo um romance agora chamado “Os siameses”. Só que tive a ideia de um conto e comecei a escrevê-lo, mas ele já está maior que “Os siameses”. No meio de tudo isso, num encontro com a maravilhosa Stella Maris Rezende, tive outra ideia para um infantil, que acabou atropelando os outros dois. Agora preciso me organizar para que cada um tenha seu tempo. Parece meio confuso – e é mesmo! -, mas os livros acabam nascendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. O livro “As filhas de Eva”, por exemplo, teve 7 versões. Na 6ª, que eu achava que era a definitiva, eu li em voz alta e achei que o ritmo não estava adequado. Aí, mexi bastante.
Nem sempre é assim. “A pérola e a ostra” foi escrito de uma vez e mexi muito pouco. Creio que reviso mais prosa do que poesia.
Mostro para algumas pessoas muito especiais, que sei que são absolutamente sinceras. Gosto de opiniões diferentes. Assim, mando para amigos escritores, por conta da questão estética, mas também para outros que não têm a literatura como profissão e que são bons leitores, em meu julgamento.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Depende… Tenho blocos nos quais escrevo rascunhos, um caderno no qual escrevo as coisas mais prontas e outro caderno, lindo, em que escrevo o que acho que está realmente bom, digno da beleza do caderno (rsrs), nem que sejam apenas boas ideias.
Também acontece de ter uma ideia no mercado, num concerto ou restaurante e eu pegar guardanapo ou pedacinho de papel para anotar. Outro dia passei a limpo uns 50 guardanapos e pequenos papeis.
Às vezes, estou diante do computador e tenho uma ideia, então tenho várias pastinhas denominadas “Ideias – poemas”; “Ideias – infantis”; “Rascunhos – contos” etc. E aí tem as pastas de livros e, nessas pastas, eu tenho, por exemplo: “As filhas de Eva_definitivo1”, “As filhas de Eva_definitivo2”; “As filhas de Eva_final”, o que acaba sendo até um paradoxo, mas funciona comigo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A leitura e o contato permanente com todos os tipos de arte são uma fonte essencial para mim. Observar o cotidiano, as falas, as pessoas na fila do supermercado, no banco etc. também são uma fonte preciosa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A gente vai amadurecendo e exigindo mais dos próprios textos. E, claro, quanto mais a gente lê, mais elementos vai agregando à escrita. Se pudesse voltar aos primeiros textos, não diria nada, porque foi o meu processo e ele é importante para mim do jeitinho que aconteceu.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de fazer um poema épico sobre o preconceito. Tenho o roteiro na cabeça, mas ainda não comecei. Não tenho ideia de livros não escritos, mas gostaria que fosse algo que me arrebatasse, que me surpreendesse, em forma e conteúdo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu faço um planejamento não apenas do roteiro, mas também um mapeamento das personagens, suas características, personalidades etc. Mesmo que alguns elementos não entrem na história, eu preciso olhar para cada personagem como um ser único, que pensa, anda, come, fala e faz suas atividades diárias de uma forma única. Isso evita que a narradora não esteja presente nas falas dos personagens, ou seja, procuro um texto polifônico.
É claro que esse planejamento não pode me amarrar. É comum que, no decorrer da história, as coisas mudem de rumo. No entanto, um roteiro prévio ajuda. Também escolho previamente se a narração será em primeira, terceira pessoa ou uma mescla disso, porque há uma enorme diferença entre narrar em 1ª e 3ª pessoa.
Quanto à primeira ou última frase, para mim ambas são difíceis. Contudo, concluir uma história, que é a última coisa que o leitor vai ler, precisa de uma frase muito bem pensada. É não apenas a despedida do leitor, mas a do autor também, porque, entre uma história e outra, há uma espécie de luto, de um desapego a que gente precisa se acostumar.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não é fácil me organizar, porque sofro de uma doença imprevisível, genética e progressiva, com a qual tenho que lidar todos os dias e é muito limitante. Então, a minha prioridade é lidar com isso, até para que eu possa escrever, que é vital para mim.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Eu me lembro perfeitamente. Minha escola tinha uma festa do livro, quando recebíamos o primeiro livro, aos 7 anos. Minha emoção foi tamanha, que cheirei o livro e chorei. Aí, me veio à cabeça que eu queria fazer isso, escrever.
Tudo me motiva a escrever. Pode ser um pensamento, alguma coisa que me emocione, que me provoque algum sentimento (alegria, raiva, indignação etc.), alguma reflexão, enfim, acho que a vida oferece um material abundante para a escrita.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Muitos autores me influenciaram e continuam me influenciando. Quando leio um texto bem feito é emocionante, fico agradecida ao autor por ter escrito aquilo. Assim, é difícil falar em maior influência.
Quanto mais a gente escreve, mais chances temos de desenvolver um estilo próprio. Saramago falou, numa entrevista, de sua emoção quando em, salvo engano, encontrou seu estilo em Levantado do chão. Acho que isso vale para qualquer escritor. Encontrar seu estilo é encontrar consigo.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Bem, é difícil a gente recomendar livros e ficar apenas em três. Sul, de Veronica Stigger, uma autora por quem sou francamente apaixonada, é talvez o seu livro de que mais gosto. Walther Moreira Santos é outro autor gigante e dele eu citaria O metal de que somos feitos. Um livro que me deu muita alegria, que me fez, como diria Antonio Candido, companhia foi Conversa comigo, uma delícia de texto. Mas vou aqui também fazer uma pequena transgressão e citar um quarto, o meu As filhas de Eva, um livro que me é muito caro e que logo terá segunda edição.