Casé Lontra Marques é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu convívio com a escrita é cotidiano, porém indisciplinado. Não tenho regras. Há manhãs em que algumas palavras me visitam ainda no início do processo de despertar, o corpo quente do sono – isso não é muito comum em mim, mas quando acontece me entusiasma. O mais frequente: levanto, tomo um café com pão e me deixo habitar pelo dia. Pelo que oferta (e/ou exige) o dia. Às vezes escrevo já nessas primeiras horas. Outras vezes – enquanto leio, por exemplo – vou acompanhando de longe um poema que parece se formar…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Cada texto tem uma história. E procuro me instalar em processos poéticos sensíveis ao que determinadas palavras sugerem: umas pedem uma atenção contínua, até o esgotamento; outras se desdobram melhor de viés, escorregando por entre as frestas da vigília. Desde que vi em mim o desejo de escrever, fui sacudido por uma certa clareza – a de não estabelecer um ritual. Para permitir que a pele esteja sempre aberta, independente da hora e da ocasião. Agora, eu me preparo, sim, para a escrita: interrogando o que me inquieta, investigando o que me impulsiona. Dia a dia. Sem pressa – e, antes de tudo, sem complacência.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias me encontro envolvido com a escrita (com o desejo e a perturbação que me levam à escrita), ainda que nem sempre eu anote palavras no papel – ou no computador, por exemplo. Há períodos mais profícuos, em que me concentro intensamente: podem durar dias, semanas ou meses (nunca me aconteceu, até agora, de passar disso). Mas há períodos em que o corpo esfria, sabe? É quando a vida dói e dói e dói. A violência ou a letargia, a velocidade ou a paralisia da vida. Pois a proximidade com a criação poética me dá um grande fôlego, apesar da angústia – igualmente imensa – que também advém daí.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como cada texto tem a sua história, meu processo é bem arredio. Mas costumo me dedicar a tomar notas sem um horizonte preciso: são frases (ou faíscas que podem vir a se tornar frases) reunidas aqui e ali, em diferentes cadernos – de papel ou pixel. Gosto bastante, inclusive, de levar palavras para caminhar, principalmente na praia. Trabalho muito de memória: antes de redigir algo, desenho em pensamento. Essa maleabilidade da escrita me encanta enormemente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sinto que preciso, texto após texto, reinventar a escrita em mim – ou melhor: diante do que talvez venha a constituir um texto, sei que preciso reinventar meu corpo para a escrita. Para essa escrita à minha frente. Questões novas se somam a outras antes experimentadas, mas não resolvidas. E – como não escrevo com prazo – começo tentando não apressar as palavras, nem a construção (ou mutação) do corpo que as receberá. O que me ajuda é não desejar senão a jornada. Um método: estraçalhar a meta.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Ainda desconheço a sensação de terminar um texto. Estão todos aí, inacabados – cada um a seu modo. Cuidadosamente inacabados, espero. Já me arrependi inúmeras vezes de não ter revisado o suficiente um material para publicação. E faz um tempo venho me esforçando para passar por isso com mais leveza, pois se trata de uma etapa inextirpável. Que não consigo quantificar… Todos os livros que editei até agora foram sim lidos antes por algumas pessoas, em geral bem poucas (e praticamente as mesmas).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Com a tecnologia incomensurável que é a linguagem verbal, minha relação é de fascínio. Já com a tecnologia digital… Diante de tanta informatização, ainda engatinho (apesar da geração a que pertenço). Mas tenho incluído em meu cotidiano de escrita diferentes suportes: caderno, computador, celular. E principalmente algo a que já me referi há pouco – a memória. No mais das vezes, vou modelando as frases atrás dos olhos. Depois parto para o papel, em seguida para o computador. Tem vezes em que redijo uma primeira versão no celular (se estiver à mão). Contudo, para elaborar textos longos os recursos eletrônicos são especialmente úteis.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Bom, adianto que responderei – como venho fazendo até aqui – meio que no escuro. Pois me falta certeza. O que me movimenta: o desejo e a dor de estar na vida, o vigor e a violência desse país no mínimo indigesto, a materialidade e o mistério de um mundo que me escapa. Não sei se tenho propriamente ideias. Ou sei: não as tenho… De toda forma, minhas meditações nascem daí. Desses atritos – que entretecem (que desestabilizam) a existência. E o esforço de me manter criativo se confunde com a vontade de continuar perto das palavras. Sobretudo daquelas palavras que me rasgam, indiferentes ao meu rosto. Ou aos ruídos que emito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos, busquei uma maneira de povoar a escrita com mais prazer que desespero. Mais êxtase que exasperação. Algo que ainda persigo, ciente, no entanto, de que não haverá paz. Com as palavras, não haverá paz; talvez alguma serenidade, em momentos específicos. Mas jamais paz. E – voltando a atenção para a criatura tateante que não deixei de ser – digo, como que para um espelho (o tempo?) vesgo: a calma que nutre não acalenta.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Antes que as palavras surjam (de onde?), não sei o que escrever. Uma frase, um começo de frase suscita o que, havendo sorte, será um sinal de caminho. Afinal provisório, até mesmo errático… Assim, o que eu gostaria de fazer tem pouca força diante do que se faz em mim – eu gostando ou não. Mas, retomando a pergunta, quero ainda alcançar uma sintaxe de dimensões propositivamente difusas, que acolha tanto a incisividade da concisão quanto o latejamento do que se desdobra. E desejo ler o livro de alguém que esteja nascendo agora para a linguagem.