Caroline Policarpo Veloso é escritora, autora de “cartografia do silêncio” (Patuá, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha manhã perfeita começa devagar e cedo, mas é rara. Tomar café lendo alguma coisa, tentar não apressar muito o dia a começar. Acho que a pressa é uma coisa um pouco violenta. Mesmo quando preciso sair cedo acordo com bastante antecedência para poder ter essa lentidão (embora me prolongue nela e saia quase sempre em cima da hora, no fim das contas).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto do começo do dia, logo que acordo, mas também gosto de escrever em transporte público, em cafés, bibliotecas, qualquer intervalo. Gosto de entrelugares. Na verdade ando percebendo que não é uma questão de horário ou ambiente. Quando estou desconcentrada, costumo sair para uma caminhada longa, olhar a rua, ou ler algo – tudo isso envolve uma certa abertura ao acaso, um exercício de atenção e de dispersão que me ajuda a trabalhar. É importante que a concentração não seja tensa, que a divagação se permita presente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Rabisco sempre, no bloco de notas que carrego na mochila ou em rascunhos de e-mail no celular – mas prefiro papel, mesmo que seja pra anotar no ônibus em letra tremida quase ilegível. Não tenho uma meta diária, e geralmente os rabiscos demoram para virar textos. Já tentei ser mais “produtiva” e me propor metas, mas percebi que a pressão não ajuda. Preciso respeitar o tempo de falta de ideias, o silêncio.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que não é clara a fronteira que separa a pesquisa da escrita, a procrastinação do trabalho. O começo não é um ponto: é uma zona difusa, confusa. O antes com frequência é uma parte importante do que vem depois, e, portanto, talvez o antes já seja parte do começo. Acho que é difícil ver as coisas começando, porque muitas vezes estão em um estágio precário que pode não dar em nada, um monte de fragmentos anotados em folhas soltas, e de repente percebo uma maneira de costurar tudo e entendo qual era o eixo que procurava. Gosto muito de me permitir essa incerteza, essa deriva. Gosto de me perder. Geograficamente, inclusive, às vezes (tenho caminhado muito), mas também me refiro a escrever de forma um pouco perdida: sem objetivo certo, tateante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Começar um texto é quase fácil, mas continuar é difícil, terminar é uma jornada. Acho que tenho preferência pela poesia em parte pela brevidade, pela chance de começar e terminar quase no mesmo minuto.
Mas quando o projeto é longo, inevitavelmente a escrita é fragmentada. Tenho tentado encarar as continuações como recomeços, isso ajuda. Mas aceito que às vezes o ritmo de escrita precisa ser lento porque é um tempo necessário – pensar, duvidar, duvidar mais um pouco.
O silêncio é um momento importante para mim. Não ter o que dizer, ou carregar uma inquietação e não saber ainda formulá-la. Aprendi a aceitar a lentidão como uma característica minha, descobri a importância de conviver com ideias em estágio de rascunho. Mesmo que esse estágio dure meses, mesmo que envolva inquietações e inseguranças. Minha relação com a escrita envolve intuição, desejo, afeto, e é um processo também um pouco terapêutico, que me ajuda a me organizar mentalmente.
Momentos aparentemente improdutivos são parte necessária da escrita, penso. Intervalos, janelas, respiros, espaços de espera. Este ano pela primeira vez tive um prazo sério para uma escrita literária, com o edital do Proac para publicar cartografia do silêncio, e precisei me obrigar a escrever em alguns momentos. Quando escrevo com a sensação de compromisso acho os textos muito ruins, apáticos, entediantes, mas às vezes, em algum momento o desconforto da obrigação passa e começo a sentir desejo pela escrita, afeto, curiosidade para ver onde consigo chegar. Aprendi a insistir, testar a dureza dos meus silêncios, forçar um pouco as paralisias – mas não chamo isso de buscar produtividade, e sim de testar meus limites.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Alguns textos mudam pouco entre a primeira versão e a final, geralmente são os textos curtos escritos a partir de alguma urgência, um estímulo, uma intuição. Outros textos se reformulam completamente várias vezes. Com frequência fico orbitando ao redor de uma ideia por semanas, começo textos ruins, descarto, recomeço, até encontrar um tom para o que quero escrever.
Gosto de conviver com os rascunhos por um tempo, ter um período a sós com eles; depois envio para alguns amigos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Começo tudo à mão, a não ser que esteja sem papel e precise usar um bloco de notas no celular. Gosto do contato físico com o papel: sentir a textura, riscar palavras, acrescentar outras em letra miúda quase ilegível para caber nas margens da página… ter registrado o caos pelo qual os textos passam. Além disso, olhar para uma tela por muitas horas me cansa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Costumo procurar ideias lendo fragmentos de qualquer coisa, poesia, filosofia, um livro qualquer aberto ao acaso. Às vezes, em aulas ou palestras, vou pescando palavras, fazendo anotações que possam servir como ponto de partida. Também gosto de sair para andar, olhar a cidade, sentir sol ou vento ou chuva no corpo, ouvir conversas, tudo isso me ajuda a conseguir concentração – uma certa concentração dispersa, que convive bem com o caos, é meu estado preferido para escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tanta coisa… Não consigo descrever bem. Eu me diria para ter menos pressa. Para aceitar as demoras. Cobrar menos. Mergulhar com mais coragem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho algumas ideias vagas que não sei ainda como vão se organizar, nada verbalizável ainda. Também gostaria de explorar mais a ideia de diário de viagem, testar diferentes relações com lugares, diferentes estratégias de escrita, prolongar a pesquisa que testei no cartografia.
A lista de livros que quero ler entre os que existem é imensa. Não ando conseguindo diminuir essa lista, ela só cresce, e não tenho sentido falta de nenhum livro que inexista.